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Blockchain: salvação da indústria criativa?
Publicado em 18/04/2018

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Por que o uso de uma tecnologia de dados global e descentralizada é vista como o fim da pirataria por uns e um sistema imperfeito que carece de controles e regulação por outros

Por Alessandro Soler, de Madri 

Entusiastas da era digital já chegaram a cravar que o blockchain será a salvação para o problema das violações de copyright na indústria criativa. Céticos creem que a inerente descentralização desse sistema pode dar margem a problemas de identificação e confiabilidade — e, pior ainda, o gigantismo que a coisa tende a alcançar poderia levar grandes conglomerados a se “apoderar” dela. Afinal, será totalmente dor ou delícia essa tecnologia que dispensa um ente regulador e é marcada por uma potencialmente infinita cadeia de “blocos” de transações virtuais globais?

Na teoria, a coisa funciona assim: eu, como autor de, digamos, uma música, posso registrar a minha criação diretamente no sistema, gerando um arquivo com uma marca indelével que se incorporará a um dos blocos de dados do blockchain. Com isso, mesmo que alguém use apenas uma infinitésima parte da minha música, haverá sempre um “nó”, um registro, que ateste que eu a subi ao sistema em tal dia e em tal hora e que é minha a alegada autoria. Os licenciamentos para uso por terceiros (da reprodução da minha canção num álbum à sincronização dela num filme ou série de TV) poderiam ser feitos diretamente por mim, assim como o recebimento do pagamento. Tudo sem intermediários, uma vez que o blockchain, por ser descentralizado, tem sua base de dados espalhada por milhões e milhões de computadores e servidores mundo afora.

A Intel, um dos grandes da tecnologia mundial, se soma à crescente lista dos que apostam num horizonte luminoso ligado a essa descomunal base de dados e que já tem investimentos potentes de inúmeras empresas, como as chinesas Zhongan e WENN Digital, ou de projetos como a Open Music Initiative, do Berklee College of Music e do MIT, ambos dos Estados Unidos. A gigante do Vale do Silício registrou mês passado no Escritório de Patentes estadunidense uma tecnologia de uso do blockchain para a identificação maciça e instantânea de imagens que circulam pela internet. Não é preciso muito esforço para imaginar que a compra do instantâneo de um fotógrafo diretamente por um site ou jornal representaria um golpe duro nas agências de notícias. Só para ficar numa das questões que podem ser levantadas. 

Na Austrália, uma empresa chamada Veredictum já anunciou estar participando de rodadas de financiamento para captar dinheiro e pôr em prática um aplicativo similar, desenvolvido por eles em Sydney. Voltada para o cinema e a música — cujas perdas anuais com pirataria, estima a empresa, ultrapassam os US$ 20 bilhões e US$ 12,5 bilhões, respectivamente, apenas nos Estados Unidos —, a ferramenta permitira o licenciamento de conteúdos mundialmente. Criadores de filmes ou músicas formariam parte da imensa rede baseada em blockchain, comprando e vendendo licenças para usos variados das obras sem a mediação de agentes, editores, estúdios ou outros entes que hoje oferecem esses serviços. 

Livre, mas não tanto

A ausência de intermediários, vista positivamente por muitos, é que pode ser, precisamente, o grande problema. Afinal, como atestar que os publicadores de um certo conteúdo — principalmente num primeiro momento em que o blockchain ainda será relativamente pouco conhecido e pouco usado pelas massas — são mesmo seus proprietários? Em caso de divergência, a quem se queixar? E, não menos importante, como garantir que o sistema descentralizado, público e colaborativo do blockchain permaneça assim?

No seminário “Consensus: Invest”, em dezembro passado, em Nova York, Raoul Pal, diretor da rede de notícias financeiras Real Vision, disse que a tendência é que, com a popularização do blockchain, empresas privadas passem a administrar e controlar as cadeias de blocos de dados (como, aliás, o aplicativo da Veredictum ou o sistema da Intel querem fazer). “As mais confiáveis, ou seja, as mais poderosas economicamente ou sob o guarda-chuva de uma grande corporação, seriam as preferidas na hora de fazer as transações”, descreve. Fim da descentralização, fim do caráter público e coletivo.

"Dada a complexidade da nossa indústria, os fluxos de trabalho e os processos envolvidos da criação até o pagamento, é improvável que cada parte da cadeia seja substituída efetivamente por blockchain ou qualquer outra tecnologia."

Robert Ashcroft, diretor-executivo da sociedade de gestão coletiva inglesa PRS for Music

Sociedades de gestão coletiva internacionais estão de olhos nestas questões e, ainda que cogitem o uso do blockchain para os licenciamentos, não o veem como ameaça à própria existência dessas entidades. É o caso da gigante PRS for Music, a maior do Reino Unido, com mais de 125 mil membros. “Vemos novas tecnologias como essa como facilitadoras, mas, dada a complexidade da nossa indústria, dos fluxos de trabalho e dos processos envolvidos da criação até o pagamento, é improvável que cada parte da cadeia seja substituída efetivamente por blockchain ou qualquer outra tecnologia”, diz Robert Ashcroft, diretor-executivo da PRS, em entrevista à UBC. “As sociedades de gestão coletiva manterão seu valor agregado, especialmente porque não são apenas entidades administrativas que movimentam dinheiro e dados. Desempenham, antes, um papel vital para garantir que o valor justo dos direitos autorais seja mantido; garantem que compositores, criadores e editores tenham uma voz coletiva; e garantem aos consumidores, por meio de atividades de licenciamento, amplo acesso à música.”

Em outras palavras, para pessoas como Ashcroft e especialistas céticos com o uso sem instâncias intermediárias, o blockchain poderá ser o meio tecnológico empregado para os licenciamentos, mas não conseguirá dar uma resposta total e autônoma à complexidade de usos que se fazem de produtos artísticos na indústria criativa. Ele explica mais sobre isso na entrevista que você confere a seguir. 

Robert Ashcroft, da PRS for Music

Se o blockchain é essencialmente descentralizado, como se garantirá alguma relevância às sociedades de gestão coletiva no processo de licenciamento sob essa tecnologia? Em resumo, se as transações forem feitas diretamente entre licenciadores e licenciados, por que precisaremos de associações como a PRS ou a UBC?

A chave para o sucesso da blockchain no setor de música é a adoção de novos fluxos de trabalho e comportamentos, bem como de uma metodologia acordada para aplicar as regras. Ao contrário da crença popular, a falta de dados não é o desafio dessa indústria. O problema real é a falta de dados consolidados, uma versão "verdadeira" das informações sobre a propriedade de direitos de uma composição ou gravação. Tradicionalmente, todas as entidades, não apenas as sociedades de gestão coletiva mas também as editoras e gravadoras, têm as suas próprias versões da "verdade". As sociedades de gestão coletiva provavelmente têm as visões mais consolidadas, por meio do padrão ISWC (o código global de registro de obras musicais), mas a falta de um recurso confiável e consolidado para todos é um problema. O blockchain oferece a oportunidade de ter esse recurso sem controle ou propriedade centralizados. Os dados ainda virão das mesmas fontes, principalmente editoras e selos, e ainda precisarão de regras e acordos entre as partes que possuem "pedaços" de composições e gravações. O blockchain pode abrir novas formas de fazer isso, mas isso não elimina a necessidade (da presença das sociedades). Qualquer pessoa pode configurar um blockchain; portanto, é preciso haver um mecanismo para verificar a propriedade dos direitos e permitir a adoção generalizada e a confiança nos dados que ela terá.

Quase toda vez que lemos sobre o uso da tecnologia blockchain em transações de música, parece se referir a plataformas de streaming e ambientes semelhantes. Que outras aplicações poderia haver?

O blockchain é tipicamente associado com (o mundo) on-line porque os dados e questões de transparência impactaram primeiro essas receitas, após a fragmentação dos direitos em acordos de licenciamento transacional. Dito isso, a identificação do uso e da receita digital on-line é extremamente alta em comparação com outros tipos de uso de música, como TV e audiovisual. Portanto, é viável que a tecnologia blockchain possa adicionar maior transparência e valor (também) a esses setores.

O senhor conta que a PRS for Music estuda muitas outras tecnologias além do blockchain para enfrentar os novos desafios trazidos pela era digital. Há alguma que reúna as mesmas soluções que o blockchain pode oferecer?

Não existe uma tecnologia única que resolva todos os problemas do setor, principalmente porque os problemas não são necessariamente causados pela falta de tecnologia. Eles são movidos por comportamento, oportunidade, legado, controle, hierarquia e processo. Estes são produtos da indústria em que operamos há mais de 100 anos. O que mudou foram o ambiente ao redor e a forma como a música é consumida. A tecnologia acarretou muito dessa mudança, mais rápido do que qualquer um poderia imaginar, então temos novas oportunidades diante de nós para adaptar e desenvolver a indústria da música através da tecnologia. Esta indústria não está quebrada, como alguns podem dizer. Está no meio de uma mudança e no limiar de uma oportunidade.


 

 



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