Instagram Feed

ubcmusica

No

cias

Notícias

A riqueza mais importante (e sustentável) a explorar na Amazônia
Publicado em 02/08/2019

Diversidade musical da região, desconhecida por muitos no Sudeste, é celebrada em documentários, livro, coletânea internacional e no Rock in Rio

Por Luciano Matos, de Salvador

Foto de Dona Onete por Bruno Carachesti, de Belém

Três documentários, um livro, uma coletânea internacional, show exclusivo no Rock in Rio e diversos novos discos. É com todas essas novidades que a música do Norte do Brasil, mais precisamente da Amazônia, deve voltar a ganhar os holofotes não só por aqui, mas também lá fora. Ritmos como carimbó, guitarrada, tecnobrega e beiradão podem até não parecer tão difundidos pelo país, mas são fundamentais para nossa música e presentes em diversas produções atuais. 

Em vários momentos de nossa história, artistas da região Norte chamaram atenção e alcançaram sucesso popular. Nomes como Carlos Santos, Fafá de Belém, Nazaré Pereira, Pinduca, Beto Barbosa, Calypso e Gaby Amarantos estão entre os que frequentam ou frequentaram rádios e programas de TV. Em comum, todos eles trazem o DNA amazônico incrustado em suas músicas.

Esses sucessos, no entanto, às vezes são eventuais e passageiros. Em épocas diferentes, as sonoridades vindas de estados como Pará e Amazonas ganham corpo nacionalmente e viram uma febre. Como toda moda, a onda passa, e aquela produção costuma ser colocada de lado. A riqueza da música da Amazônia, entretanto, é mais forte do que as efemeridades. Pelo menos desde os anos 1970, os ritmos que misturam influências negras, indígenas e caribenhas estão fortemente presentes na região com uma rica e ininterrupta produção.

Artistas, cineastas, produtores e jornalistas têm trabalhado em diversos projetos que devem contribuir para que a música e as sonoridades amazônicas deixem de ser tratadas como apenas modas passageiras ou folclore. O livro “Ondas Tropicais – A Invenção da Lambada e do Beiradão na Amazônia Moderna” e a coletânea “Jambú e Os Sons Míticos da Amazônia” resgatam artistas e ritmos fundamentais e mostram a importância deles para as bases da produção musical na região. Os documentários “Amazônia Groove”, “Ventos Que Sopram Pará” e “A Poética dos Beiradões” seguem nesse mesmo caminho, revelando ainda nomes da atualidade que mantêm e atualizam a riqueza musical amazônica. 

Assim como o show especial Pará Pop no Palco Sunset do Rock in Rio, voltado exclusivamente para artistas do estado. Nele, veteranos e novo nomes se revezam contando a história da música paraense nas últimas décadas. O show terá Dona Onete como anfitriã recebendo Fafá de Belém, Gaby Amarantos, Jaloo e Lucas Estrela. Esses são, aliás, alguns dos nomes que estão lançando ou preparando discos e material novos para esse ano. 

Lucas Estrela, Fafá de Belém, Dona Onete, Gaby Amarantos e Jaloo, que estarão no palco Pará Pop do RiR. Foto: Helan Yoshioka

Dona Onete, por exemplo, acaba de lançar seu terceiro álbum, “Rebujo”. Fafá de Belém soltou “Humana”. Gaby e Jaloo disponibilizaram singles e, até o fim do ano, lançam discos novos. Outros nomes como os veteranos Manoel Cordeiro e Nazaré Pereira, além de Juliana Sinimbú, Natália Matos, Keila e Guitarrada das Manas, do Pará; Alaíde Negão e Marcelo Nakamura, do Amazonas; Mini Box Lunar, do Amapá; entre outros, também estão com novidades engatilhadas ainda para este ano.

Diversidade

Outro com material novo é Felipe Cordeiro, que recentemente lançou seu quarto disco, “Transpyra”. Considerado um dos nomes mais relevantes de sua geração, ele é um dos que exaltam a importância da música com origem na região Norte. E chama atenção para o desconhecimento dela. “As pessoas não sabiam até um dia desses que a lambada nasceu e se desenvolveu na Amazônia a partir da década de 60. Ganhou o Nordeste e, posteriormente, o Brasil inteiro nos anos 80 e 90”.

Felipe lembra que a lambada é só uma das diversas sonoridades vindas de sua região. “Quando você mergulha, vê que o universo musical é infindável e consistente. Qualquer uma das mais de 200 músicas da Dona Onete nos remete a um Brasil que ainda não aparece, de maneira satisfatória, em nenhum livro de música brasileira.”

O recém-lançado “Ondas Tropicais” tenta dar conta disso. Nele, o jornalista Fernando Rosa se debruça em alguns dos principais ritmos, artistas e álbuns que formataram a sonoridade da música da região. E dá enfoque em especial à lambada, à guitarrada, ao beiradão e a seus “fundadores” e definidores.

“As pessoas não sabiam até um dia desses que a lambada nasceu e se desenvolveu na Amazônia a partir da década de 60. Ganhou o Nordeste e, posteriormente, o Brasil inteiro nos anos 80 e 90.”

Felipe Cordeiro

“Para mim, o mais importante de todos é Mestre Cupijó, por ser ele, talvez, o único brasileiro que funde a música das três raças, indígena, negra e europeia. Depois, tem Pinduca, que fez do carimbó um gênero pop; Mestre Vieira, o inventor da lambada e da guitarrada; Teixeira de Manaus, o 'pai' do beiradão com seu saxofone particular e, por fim, Curica, o mestre maior do banjo amazônico”, explica.

O livro foi lançado de forma independente por sua própria editora, a Senhor F Livros, e apresenta também artistas pouco conhecidos, mas essenciais, como Solano, André Amazonas, Barata, Pantoja do Pará, Manezinho do Sax e tantos outros. Traz ainda uma seleção de discos históricos, além de uma discografia direcionada para quem quiser mergulhar nesse rico universo.

Isolamento e preconceito

Com uma visão de quem não é da região, mas tem propriedade de causa, Fernando Rosa cita o isolamento e a distância como elementos que dificultam a manutenção do sucesso dos artistas do Norte. Mas, para ele, há algo mais. “Acredito que o principal fator é a sonoridade ter um acento mais regional, e menos pop, no sentido de uma mediação com o ouvido médio nacional.”

Felipe Cordeiro também aponta várias dificuldades para as sonoridades amazônicas não extrapolarem para fora da região. “Acho que a distância cultural entre o centro econômico-político-midiático do Brasil e Amazônia sempre dificultou muito as coisas. Os códigos são outros. A Amazônia sempre foi folclorizada, tratada de maneira residual, ignorada.” 

Para ele, a era digital possibilitou maior integração e ajudou a mudar um pouco as coisas. “As pessoas começaram a ver o que estavam perdendo: uma música com décadas de história, quase que independente da história do samba e da MPB, por exemplo, e experimentações consistentes, sobretudo no seu espectro mais popular”.

Felipe Cordeiro: "A Amazônia sempre foi folclorizada, tratada de maneira residual, ignorada.” 

Para o músico e cineasta paraense Marco André, diretor musical de “Amazônia Groove”, “a música nortista não entrava nunca nas programações das rádios, por ser considerada muito regional ou estereotipada”. Ele ressalta ainda que o Norte permanece sendo tratado pelo resto do país, principalmente pelo Sudeste, “como uma parte do Brasil que só serve para abastecer o centro mais desenvolvido.” 

Filmes

Contemplado pelo Edital Natura Musical 2018, ‘A Poética dos Beiradões’ é um dos novos documentários que fazem um raio x da música da região. O filme aborda a produção fonográfica realizada por compositores e músicos ribeirinhos amazonenses, denominados de “músicos dos beiradões”. O filme tem foco nesses artistas populares que se dedicaram a uma música com o sabor e o calor dos festejos das beiradas dos rios amazônicos. “Essa produção musical foi responsável por cristalizar no imaginário coletivo do estado o sotaque amazonense - elemento de estilo - de compor músicas que nos dias atuais é conhecido por ‘música do beiradão’, explica Rafael Ângelo, diretor do filme. 

Outro filme, “Amazônia Groove”, tem sido uma boa forma de levar a sonoridade da produção musical do Norte do país pelo mundo afora. O documentário musical, do diretor Bruno Murtinho, foi premiado este ano no South by Southwest (SXSW), em Austin, Estados Unidos. O diretor de fotografia do filme, Jacques Cheuiche, também foi premiado, sendo laureado com o Prêmio Zeiss de Melhor Cinematografia pelo seu trabalho no projeto. 

“Amazônia Groove” pode ser definido como um mergulho profundo e apaixonado na música da Amazônia, especialmente a do Pará. Um filme sensorial, como o diretor gosta de dizer, que trata da cultura das pessoas da Amazônia, focando na música, mas também na espiritualidade delas. O documentário investiga as origens dos sons da Amazônia, passeando pela floresta. Como resultado encontra desde músicos tradicionais responsáveis pelo boi-bumbá e por ritmos tradicionais até representantes das aparelhagens e do tecnobrega. Um panorama que inclui o rapper MG Calibre, o violonista Sebastião Tapajós e a cantora Dona Onete.

“Acredito que o principal fator(para o isolamento)  é a sonoridade ter um acento mais regional, e menos pop, no sentido de uma mediação com o ouvido médio nacional.”

Fernando Rosa, jornalista, autor de “Ondas Tropicais – A Invenção da Lambada e do Beiradão na Amazônia Moderna”

Idealizador do projeto, o cantor e produtor musical Marco André conta que a escolha dos artistas que aparecem em “Amazônia Groove” era a diversidade. "Como, ao longo desses últimos 20 anos, eu produzi inúmeros discos, dentre eles de vários artistas paraenses, eu privilegiei aqueles com quem havia trabalhado e que considerada relevantes à música local.” 

Outro filme que deve contribuir na expansão das sonoridades com origem na Amazônia brasileira é o documentário 'Ventos Que Sopram Pará', do documentarista Renato Barbieri. Com Felipe Cordeiro como curador e apresentador, o projeto mostra quase 20 artistas de várias gerações da música paraense, de mestres da guitarra como Manoel Cordeiro, Aldo Sena, Curica e Ximbinha, até nomes como Jaloo e a Aparelhagem Crocodilo. O filme ainda não tem data de estreia, mas terá exibição pelo Canal Curta.

Mestres da guitarra

Não é por acaso que os mestres da guitarra são destacados no filme, o instrumento é base da música local e um dos principais elementos que a caracterizam até hoje. A tradição vem de longe e é marcada em toda região amazônica, incluindo Brasil e Peru. Para Felipe Cordeiro, a guitarrada traz forte influência caribenha e ao mesmo tempo um ethos ribeirinho. “Acho que quando as novas gerações (eu me incluo nisso) perceberam que podiam explorar esse caminho para fazer seu som, conseguiram achar um lance original e que teve impacto na produção nacional. Hoje muita gente bebe na fonte da guitarrada”, afirma.

Mulheres

Além de Felipe, outro nome surgido nos últimos anos é Dona Onete. Já veterana, ela só conseguiu lançar o primeiro disco em 2012, aos 73 anos, mas hoje é um dos maiores expoentes da música paraense. Este ano, ela lançou o terceiro álbum de estúdio, “Rebujo”, consolidando uma carreira tão fulminante quanto brilhante. 

Dona Onete tem se apresentado não apenas em festivais pelo Brasil, mas em pouco tempo construiu uma carreira no exterior. Em 2017, a cantora e compositora emplacou seu segundo disco, ‘Banzeiro’, na primeira posição do World Music Charts Europe. Naquele ano, foi capa de uma das maiores revistas de world music no mundo, a “Songlines”, e, pela quarta vez, circulou pela Europa, com shows em Inglaterra, Alemanha, França e Holanda. Em outubro deste ano, ela vai para a Finlândia representar o Brasil na tradicional feira Womex. Antes, vai comandar o show Pará Pop no Palco Sunset do Rock in Rio, com outros artistas paraenses.

Onete é uma das poucas mulheres de sua geração que conseguiram furar um espaço ocupado preponderantemente por homens. Ela não reclama, lembra que o marido não deixava expressar seu lado de compositora, mas acha que as coisas foram acontecendo como tinham que ser na carreira. “Eu vivi e fiz muitas coisas. Nem imaginava gravar um álbum. As coisas foram caminhando naturalmente. Nas rodas de carimbó existia, sim, um pouco de preconceito. Somente os homens podiam ser mestres, cantar... Hoje em dia, acredito que quebrei um tanto dessa barreira e abri algumas portas”, afirma a artista. 

Antes de ela ganhar os holofotes, poucas outras mulheres se destacaram na música vinda do Norte. A cantora Fafá de Belém e a cantora e compositora Nazaré Pereira, nascida no Acre e criada no Pará, que fez sucesso nos anos 70 e 80, são dois dos poucos exemplos. Isso, porém, tem mudado nos últimos anos. Nas gerações mais recentes, vários outros nomes vêm ganhando destaque no cenário nacional, como Gaby Amarantos, Lia Sophia, Luê, Juliana Sinimbú, Aíla e Natália Matos. 

Cartaz do documentário "Amazônia Groove": prêmios no festival South By Southwest, nos Estados Unidos

Coletânea

A coletânea 'Jambú e os sons míticos da Amazônia', lançada este ano na Europa pelo selo alemão Analog Africa, segue o mesmo caminho dos filmes e do livro, traçando um bom resumo da produção nortista. Não só pela riqueza musical, mas como exemplo de como era um ambiente totalmente dominado pelos homens. Idealizada por Samy Ren Redjeb, fundador do selo, e pelo DJ australiano Carlo Xavier, que se encantou pela música da Amazônia numa viagem a Belém em 2012, a compilação se concentra na produção musical da década de 70. A coletânea foi lançada em streaming, CD e vinil duplo, acompanhado de um livreto de 24 páginas com anotações, entrevistas e fotos de arquivo. Uma boa contribuição para a disseminação da maior riqueza dessa região para além da floresta vital que ela habita: sua cultura. 

LEIA MAIS: Sustentabilidade e mistura de tradição e contemporaneidade marcam o trabalho da DJ mais famosa do Norte, a amazonense May Seven. Na Revista UBC


 

 



Voltar