Tempo, literatura, pintura, “nordestinidade” e outros temas que habitam a mente inquieta do cantor e compositor pernambucano ilustram esta entrevista na semana em que ele estreia novo show
Por Bruno Albertim, do Recife
Foto de Aline Camargo, em Lisboa
Na canção “Agalopado”, do clássico álbum “Espelho Cristalino”, de 1977, Alceu Valença une, na sua verve popular e verborrágica, três referências literárias. Na dicção da canção, surgem os mineiros Guimarães Rosa (“viro rosa, vereda de espinhos”) e Drummond (“viro pedra no meio do caminho”) ao lado do espanhol Cervantes (“Dom Quixote liberto de Cervantes”). Leitor precoce e impressionado com o realismo fantástico da literatura de cordel nas feiras de São Bento do Una, sua
cidade natal no Agreste pernambuco, Alceu Valença devoraria muitas outras influências vindas dos livros. E, mesmo que inconscientemente, as devolveria na forma de canções.
Aos 74 anos, esse menestrel da canção popular brasileira estreia este fim de semana, em Natal, uma série de shows em que evidencia a relação de sua música com outras artes, sobretudo a literatura. Nas entrelinhas das canções, referências a Drummond, Quintana, Jorge Amado - autores que, como ele, ajudaram a construir um ideário da personalidade cultural brasileira. Nesta entrevista à UBC, Alceu fala sobre como literatura e música se encontram em sua obra.
Sempre tiveste consciência da influência da literatura na tua música?
ALCEU VALENÇA: Sim, às vezes mais, às vezes menos. Eu dediquei, por exemplo, “Lava Mágoas” a Drummond. Quando fiz “Papagaio do Futuro”, citei o “terno de vidro” do poema “José” (“Estou montado no futuro indicativo/já não corro mais perigo e nada tenho a declarar/Terno de vidro, costurado a parafuso/papagaio do futuro num papagaio ao luar/Eu fumo e tusso/fumaça de gasolina/olha que eu fumo e tusso...”). Depois, inclusive, encontrei-me com Drummond na (rua) Nascimento e Silva (em Ipanema, Rio). Quando você encontra “Vereda Rosa e Espinho”, é o “Grande Sertão: Veredas”. Esse aí eu nem notei, vi depois que tinha essa relação com Guimarães Rosa. Macunaíma sempre esteve na minha cabeça. Mais do que o Super-Homem ou o Homem Aranha, que já tinha nos cinemas da minha infância, eu sempre fui mais dos mitos brasileiros. Isso vem da primeira formação, da literatura de cordel, da cultura popular, cujos personagens têm o sórdido, a grandeza, as artes do povo. Meu avô não era profissional cordelista, mas escrevia cordéis, fazia sextilhas, decassílabos, tudo isso eu via na feira da minha cidade natal.
E os clássicos brasileiros, quando entraram na tua vida de jovem leitor?
Com 14 anos, eu ia à casa de meu tio Livio Valença, que foi, de certa maneira, meu mentor intelectual, me colocou em contato com Rubem Braga, citado em “Primeira Manhã”. A letra não tem nada a ver com a história, com a crônica dele, mas cita, por exemplo, “O Conde e o
Passarinho” de uma de suas crônicas mais famosas. Nos versos, aparece “Na primeira manhã que te perdi, acordei mais cansado que sozinho, como o conde e o passarinho”... Ele ouviu, ficou emocionado, queria marcar um jantar comigo. Eu faço poesia desde quando eu tinha 17 anos, publicava nos jornais do Recife. Adolescente, participei de um concurso de poesias e fui para Harvard. Escrevia poesias para o Recife. Outro dia, encontrei uma, que nem lembrava mais, e falava das pontes da cidade: “Ponte de encontro /Ponte / Realidade Concreta / Onde o Passeio / Por sobre as águas / Se faz / Humanamente impossível.”
Por que fazer agora esse show evidenciando a relação da tua música com a literatura e outras artes?
O grande problema é que as pessoas não conhecem as matrizes da música brasileira. O que bateu em mim de maneira muito natural foi o rádio, mas ele não saiu na minha música, mais marcada pela minha formação agrestina, sertaneja, olindense, recifense. Na minha época, todo mundo escrevia livros. Além da influência da minha família. Lembro que minha avó Sebastiana, o apelido dela era dona Gramática. Em “Canção de Fogo”, “Giramamundo”, “Malazartes”, é Pedro Malazartes, um
herói de cordel, um João Grilo de Ariano.
Jorge Amado chegou a escrever um release de divulgação para teu disco “Estação da Luz”, de 1985. Qual a tua relação com a obra dele?
Sim, ele escreveu. A letra de Pastores da Noite fala em “(…) pastores da noite / meu são Jorge Amado / livrai-me do ódio dos apaixonados ...”. Talvez, essa música não entre agora no show, por uma questão de timbre. Mas entrará depois. Uma vez, em Paris, eu passei mais de cinco horas conversando com Jorge por telefone (risos). Ele gostava de mim, eu gostava dele. Ele gostava muito de Pernambuco, passava temporadas na casa de um amigo na praia de Maria Farinha. Eu li todos os clássicos, de Jorge Amado a Graciliano, a nossa cultura nordestina está impressa ali. A literatura deles está realmente dentro do Nordeste. Como, depois, a de Ariano Suassuna.
Tuas letras são muito imagéticas, parecem se alimentar das artes visuais. Como na canção “Girassol” (1997), que nos faz lembrar Van Gogh...
Van Gogh é um dos de que mais gosto. Acho que a letra de “Girassol” aproxima Holanda de Olinda. Quando eu morava em Paris, ia muito aos museus, isso ficou em mim. Mas gosto muito dos pintores pernambucanos, alguns fizeram desenhos para o disco “Estação da Luz”. João Câmara, Delano, Badida... Mariza fez a capa de um disco. As frutas nos quadros de Sérgio Lemos também. A letra de “Tropicana” é fruto das mangas, cajus e outras frutas tropicais que brotam dos traços do artista plástico pernambucano Sérgio de Lemos.
Como a noção de “tempo tríbio”, do sociólogo Gilberto Freyre, entra na tua obra?
Eu li “Casa Grande & Senzala” muito cedo, fiquei bem impressionado com a antropologia dele. O tempo é um elemento que, se você procurar, vai encontrar 80% das minhas letras. E acho mesmo que o tempo é tríplice: passado, presente e futuro ao mesmo tempo. Por mais que eu queira me desligar, vivo sempre no meu passado, sou o Alceu de São Bento do Una, da Rua dos Palmares, no Recife, da Olinda dos barcos, e tem o passado recente, o presente que é aqui onde estamos conversando, e nossa conversa remete ao futuro: a essa série de shows que começo a fazer.
Show “Alceu, Amigo da Arte”. Primeiras apresentações:
NATAL. Teatro Riachuelo – Shopping Midway Mall. Sexta – 27 de setembro – 21h
Ingressos: Balcão Nobre: R$ 140 e R$ 70 (meia). Camarotes, frias e
plateia B: R$ 160 e R$ 80 (meia). Plateia A: R$ 180 e R$ 90 (meia).
Vendas na bilheteria ou uhuu.com
RECIFE. Teatro Guararapes - Centro de Convenções de Pernambuco.
Sábado - 28 de setembro - 21h. Ingressos: Plateia: R$ 160 e R$ 80
(meia), Balcão: R$ 120 e R$ 60 (meia). À venda na bilheteria do
teatro (segunda a sábado, das 9h às 17h), lojas Ticketfolia (shoppings
Plaza, Recife, Tacaruna, RioMar, Boa Vista) e www.eventim.com.br
JOÃO PESSOA. Teatro Pedra do Reino. Domingo – 29 de setembro - 19h.
Ingressos: Ecológica Manaíra Shopping ou eventim.com.br. Plateia :
R$160 e R$80 (meia). Balcão: R$120 e R$60 (meia).
BELO HORIZONTE. Grande Teatro do Palácio das Artes. Domingo – 03 de
novembro - 19h
Ingressos: Plateia I: R$ 150 e R$ 75 (meia), Plateia II: R$ 130 e
R$ 65 (meia), Plateia Superior: R$ 110 e R$ 55 (meia). Pontos de
venda: bilheteria do teatro (Av. Afonso Pena, 1537 - Centro - BH/MG) e
www.ingressorapido.com.br.
Mais datas em alceuvalenca.com.br.