Ao misturar Beethoven com Michael Jackson, rock e até axé, orquestras cativam público não habituado à música de concerto e lhes abrem as portas para os compositores eruditos
Por Kamille Viola, do Rio
Desde 2006, em 5 de março comemora-se o Dia Nacional da Música Clássica. A data foi escolhida por marcar o aniversário de Heitor Villa-Lobos, um dos mais importantes compositores brasileiros do gênero, nascido neste dia em 1887. E, se Villa-Lobos buscou transpor os limites entre a música erudita e popular, essa aproximação entre os dois gêneros musicais tem sido cada vez mais frequente em orquestras pelo país. Orquestra Petrobras Sinfônica, Orquestra Sinfônica da Bahia, Orquestra Ouro Preto, Johann Sebastian Rio, Camerata Laranjeiras e Orquestra de Violoncelistas da Amazônia são alguns dos nomes que procuram, no encontro com o repertório popular, expandir os limites de sua música e formar novas plateias.
A Orquestra Petrobras Sinfônica, por exemplo, lançou há cerca de cinco anos a bem-sucedida Série Álbuns, em que apresentou repertório de discos como “Thriller”, de Michael Jackson, “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, “Black Album”, do Metallica, e “Ventura”, do grupo Los Hermanos, o primeiro nesse formato. Depois vieram “Bohemian Rhapsody”, com a trilha do filme sobre o Queen, e o novo projeto, “Coldplay”, com sucessos do grupo inglês, que estreia dia 4 de abril no Rio, na Jeunesse Arena.
“Hoje, uma uma orquestra sinfônica não pode estar presa à música de concerto. Ela nasceu disso, não pode esquecer disso e quer trazer cada vez mais público para esse tipo de música, mas é um organismo que pode se adaptar a qualquer estilo musical”, analisa Felipe Prazeres, spalla da Orquestra Petrobras Sinfônica e maestro dos concertos com releitura de música popular. “Botamos quase 7 mil pessoas no Allianz Parque, em São Paulo, no ano passado, sem ter nenhum solista, só com a orquestra. Isso é muito legal”, comemora.
Priscila Plata Rato
Spalla da Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA), Priscila Plata Rato concorda com esse ponto de vista. Ela observa que ainda existe um estereótipo da música de concerto como algo elitista. “E essa definição, para mim, é muito equivocada, não é para existir. Quantas pessoas deixaram de ir a alguma sala de concerto assistir a alguma orquestra porque achavam que não estariam preparadas, porque não conhecem o compositor X ou Y? Ou quantas pessoas achavam que não estariam vestidas de uma forma elegante para assistir a um concerto?”, questiona.
A OSBA tem projetos como o CineConcerto, em que os instrumentistas se apresentam fantasiados e tocam releituras de músicas marcantes de trilhas sonoras de filmes. Também realizou apresentações em conjunto com o grupo BaianaSystem, o “São João Sinfônico”, com sucessos da música popular nordestina, e o “Baile Concerto”, que une música de orquestra ao repertório popular carnavalesco (este ano, o repertório homenageou os 35 anos da axé music).
“A gente tem que saber atrair o público, justamente para quebrar essa visão errada que foi criada. Então, eu acho extremamente importante a gente tocar música popular. Não digo fazer com que uma orquestra sinfônica mude a missão de tocar Beethoven, Mozart, Shostakovich, Schoenberg, por exemplo, a passar a tocar só música popular. Vou citar um exemplo. Tocamos com o BaianaSystem, que é um grupo excepcional, foi um show inesquecível na Concha Acústica (do Teatro Castro Alves, em Salvador). Entre uma música e outra do Baiana, a gente tocou Beethoven, Villa-Lobos. A pessoa que vai assistir a um show e, de repente, ouve um Beethoven com a orquestra passa a conhecer ali um pouquinho da música de concerto. E vai voltar para os próximos concertos”, defende a instrumentista.
Para Felipe Prazeres, é uma grande responsabilidade lidar com pessoas que vão assistir a uma orquestra pela primeira vez. “Tem que ir com muita calma e carinho com esse ouvinte leigo. Esse público, se for tolhido, não volta nunca mais. Então eu apresento isso de uma forma para começar desmitificando. As pessoas já vêm com uma ideia de uma coisa muito pomposa, porque foi em algum momento colocado que era algo de elite. Tento deixar da forma mais leve possível, porque na orquestra já existem muitos protocolos, é cada um no seu lugar, não dá para ficar dançando ali e olhando a partitura, por exemplo”, conta ele
Ele também frisa que busca levar informação sobre música erudita para essas plateias. “Faço questão de dar um briefing para o público da importância da orquestra sinfônica, do universo de cada instrumento ali. Em todos os concertos, falei na efeméride de Beethoven (em 2020, celebram-se os 250 anos de nascimento do compositor alemão) e falo sobre a experiência de ouvir a música de concerto sem amplificação, com as composições dos grandes mestres, que é algo único”, diz.
Mateus Ceccato
Violoncelista da Orquestra Petrobras Sinfônica, Mateus Ceccato acredita que esse movimento de aproximação da música popular pode fazer com que mais gente passe a se interessar pela música de concerto. “Muita gente que vai a esse tipo de apresentação, por conta do repertório ou do artista convidado — quando há um —, nem sabia da existência da Petrobras Sinfônica ou de orquestras no Rio de Janeiro, por incrível que pareça. A gente tem orquestras importantes aqui, mas tenho a impressão de que a maior parte da população desconhece, ou até sabe que existe, mas nunca viu nem sabe exatamente o que é uma orquestra sinfônica”, lamenta.
Uma vez que esse público se interesse em conhecer a música de concerto, é preciso, novamente, ter delicadeza com ele, para que continue frequentando as apresentações.“A gente percebe, em lugares como o Theatro Municipal e a Sala Cecília Meireles, um público mais jovem. Cabe a nós, nos concertos de música clássica, não irmos com tanta rigidez. Se a plateia bateu palma entre dois movimentos, tudo bem. Tolher na hora é a pior coisa. Aos poucos, ela vai aprender que a música de concerto necessita de mais recolhimento para ser escutada”, afirma Felipe Prazeres.
E não é só para a formação de público que os encontros entre música popular e erudita são importantes: para os músicos, a troca com outros estilos é engrandecedora também. “O músico clássico passa a vida inteira se dedicando a um instrumento, estudando, criando técnica, interpretação de repertório. Quando a gente entra na música popular, nesses outros gêneros, enriquece o nosso conhecimento musical, porque é uma outra forma de tocar, de interpretar”, analisa Mateus Ceccato.
Sem contar a experiência de sentir o calor dessas plateias. “Reger público de show é muito legal. A gente, que não está acostumado, sai com a autoestima lá em cima”, diverte-se Felipe Prazeres.