A cantora e compositora lança seu segundo álbum de estúdio, “O velho e bom novo”, no qual reflete com profundidade e simplicidade sobre sentimentos que têm tudo a ver com este momento, como vulnerabilidade, luto e saúde mental: “são temas ancestrais e mal resolvidos”
Por Alessandro Soler, de Madri
O recém-lançado álbum de Kell Smith, segundo de estúdio na sua carreira, se chama “O velho e bom novo”. Mas poderia ser “O novo e bom velho”. Ao falar de sentimentos, estados mentais, físicos e astrais profundos, evoca o momento atual mas vai muito além: é uma obra sobre questões humanas ancestrais, como vulnerabilidade, autoconhecimento, luto e saúde mental. “São assuntos velhos, maltratados. O vírus veio evidenciar que tudo o que a gente precisava resolver ainda está pendente. Compus antes de (a pandemia) acontecer. E falar disso teve um efeito terapêutico sobre mim”, disse a compositora, cantora e produtora num longo papo com a UBC por telefone.
Com 12 faixas ao todo (das quais seis foram lançadas agora), 100% delas autorais e algumas compostas em parceria com o maestro e produtor Bruno Alves, o disco mostra a evolução desta cantora com formação em música religiosa que estourou em 2018, numa parceria explosiva com Rick Bonadio (em hits como “Era Uma Vez” e “Respeita as Mina”), e abraçou um pop cheio de estilo e letras marcadas por várias camadas de significado. “Um artista não pode se omitir, precisa abordar temas que toquem as pessoas, que sejam importantes para elas. O artista, depois que perde o CPF, às vezes se desconecta do que é a vida real. Eu quero estar próxima. Este álbum e o que eu faço são muito mais sobre a minha relação com o público do que sobre mim especialmente.”
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Confira a entrevista completa:
Repassar os temas do disco é quase fazer uma lista dos tópicos deste momento de distopia política, sanitária e social que o Brasil vive. Mas tudo foi escrito antes. Foi uma espécie de antecipação?
Este álbum é um encontro com temas que a gente precisa enfrentar há muito tempo. E serve como um acolhimento para a epidemia. Não há como fugir. As fugas foram roubadas de nós. Coisas inevitáveis, como o luto, (foram tomadas) pela quebra dos nossos rituais... E a saúde mental já é um assunto muito antigo, mal resolvido. No início do processo, rolou uma grande insegurança sobre se eu deveria ou não abordar temas tão densos. Penso que meu papel é reverberar amor, energia positiva, palavras de esperança, do bem. Mas agora eu tenho certeza de que era necessário tocar em profundezas, me sinto grata por ser mensageira dessas coisas. O nome do disco, na verdade, é um deboche, porque os temas são precisamente ancestrais. Agora, terá um lado B também, com muitas canções de amor, que não deixa de ser, também, um tema mal resolvido e que precisa ser reverberado com constância.
As experiências que embasam as composições são sempre suas?
Tem histórias minhas, coisas que eu vivi, e também muitas coisas que vieram de outros… “Seja Gentil”, por exemplo, eu escrevi depois de sofrer uma crise de ansiedade. Eu sofro de ansiedade patológica. Foi um pedido para mim mesma, mas que quis dividir com outros. A música “Carta Pra Você” foi inspirada na história do produtor e maestro Bruno Alves com o irmão dele, que ele perdeu ainda criança. O irmão o incentivou a entrar na música, a viver dela. Hoje eu consigo produzir com essa pessoa genial por causa da sensibilidade que o irmão, ainda criança, teve. Então, falo de luto a partir de uma experiência alheia. Todas as vezes em que lançava uma enquete nas redes sociais, que abria a caixa para os fãs opinarem, depressão, sempre, foi esmagadoramente o tema mais pedido. Que bom que as pessoas querem falar a respeito. A cura começa quando se fala. Ou seja, as histórias não são necessariamente minhas, mas são urgentes.
É possível cantar e falar sobre coisas amenas no Brasil de 2020?
Só se for para se sentir aliviado dos outros males. O universo que existe dentro das pessoas é muito particular, é possível cantar sobre tudo. Agora, para mim, Kell, não existe a possibilidade de conversar sobre coisas amenas. Tudo requer uma profundeza maior, porque estamos em profundeza. Se eu pudesse dar um conselho, eu diria: vamos falar menos de ódio.
Toda essa loucura da violência institucional, o descaso com a vida, o caos e o extremo desequilíbrio na tomada de decisões que afetam todo mundo a inspiram a criar música? Ou é tudo tão inacreditável que nem dá para escrever sobre isso?
Eu tento passar mensagem de poesia e leveza. Mas os assuntos são sérios e, sim, me inspiram. Me dá vontade de falar, discutir, levar informação, ter informação. É um momento extremamente complexo. De ódio. A gente acorda, tem uma notícia de ódio. No dia seguinte acorda, e tem algo pior. Tem gente, hoje em dia, em 2020, saindo à rua para fazer apologia da supremacia branca, pedindo AI-5, pedindo ditadura. Você tem noção do que está acontecendo? Eu não consigo digerir. Quero assimilar, mas me sinto impotente. Nunca imaginei que em 2020 estaríamos falando de Terra plana, estaríamos desrespeitando nossa história, nossa ancestralidade, tratando tão mal nosso patrimônio natural, nossos indígenas, as mulheres, os negros. Não dá para acreditar que alguém como Jair Bolsonaro é o nosso presidente. É só provocação, só enfrentamento. Colocando pessoas vulneráveis para sofrer, movido pelo ódio. A gente vai se acostumando a essa barbárie pouco a pouco, e me sinto péssima por isso. Não seremos perdoados pela História.
A sociedade parece cansada. O discurso de ódio ao qual você se refere se banaliza...
E temos a culpa disso, como sociedade. Intolerância, machismo, fascismo e homofobia não podem ficar sem resposta. Tudo isso é aprendido, não há falha genética que faz o meu tio ser naturalmente intolerante. As pessoas não nascem assim. Elas são ensinadas. A violência doméstica aumentou em 400% durante o confinamento. Esses agressores foram instruídos a fazer isso. Nós, mulheres, fomos instruídas a arrumar homem para sermos felizes. Bolsonaro só personifica um traço cultural difundido nesta sociedade. Então, a responsabilidade é de todos os que não se envolvem numa batalha ativa, e amorosa, para educar, informar, difundir conhecimento. Sabe qual é a maior revolução mesmo, neste momento? Amar. Protestando. Mas amar. Interrompendo o ciclo do ódio, colocando sua influência para jogo, para falar de amor em todas as formas. Seja o amor próprio. Pelo outro. Pelo seu planeta. O ódio é mais contagioso que a Covid-19. Precisamos responder com amor.
A paralisação do setor musical, dos eventos, dos shows, pode representar a maior crise da música em muitas décadas. Você se vê preparada de alguma maneira? É possível estar preparado para algo assim?
É difícil estar preparado para qualquer coisa que é desconhecida. O desconhecido assusta, mas é, também, o que mais nos ensina. Sabemos que por aí vem um momento muito complicado. Não sei se estou preparada. Eu sou filha de missionária. Estou acostumada a viver na incerteza, mas por um propósito. O meu é dividir música com as pessoas, que sejam acolhidas por elas e que façam diferença na vida delas, que façam pensar, que falem sobre o bem, que sejam o bem. Não estou imune à crise, ninguém está: é econômica, sanitária, social, mental, global. Estamos enfrentando, vulneráveis, toda essa coisa. Espero que estejamos dispostos a aprender com tudo e criar um novo normal. Porque o tipo de vida que as nossas sociedades levava antes era tudo, menos normal.
Você foi um dos muitos artistas que participaram do festival de 24 horas de duração Juntos Pela Música, promovido pela UBC para arrecadar fundos para artistas da música particularmente vulneráveis neste momento. O que achou da iniciativa?
Foi de extrema importância. Talvez as pessoas não tenham acesso a essa informação, mas a gente, que trabalha na cadeia musical, sabe quem faz realmente a arte acontecer. Muitas pessoas estão envolvidas nos bastidores. E estão muitíssimo vulneráveis. Como manter isolamento sem arte? Sem live, sem imprensa, sem séries, sem filmes, sem música, sem entretenimento… A música, então, pode te tocar e mudar o teu momento, ela é liberdade, é cura, é muito maior do que nós que a fazemos. Então, neste momento, é vital voltarmos nossos olhos a quem faz a arte acontecer e está precisando de ajuda. Achei uma iniciativa fantástica da UBC e do Spotify (o fundo Juntos Pela Música). Me sinto muito grata por fazer parte e muito honrada por saber que a UBC se preocupou. Parabéns demais à UBC pelo papel que vem desempenhando nesta crise.
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