Vertente que reúne artistas LGBTQIA+, como Gabeu (foto), Bemti e Alice Marcone, ganha milhares de fãs e abre espaço a novas vozes num gênero tradicionalmente dominado por homens heteros
Por Isaque Criscuolo, de São Paulo
Era maio de 2019 quando Gabeu lançou sua primeira música, “Amor Rural”, pegando de surpresa a comunidade LGBTQIA+ e, especialmente, a comunidade de música sertaneja. Sua proposta de fazer música caipira e sertaneja com humor e representatividade lhe trouxe ainda mais holofotes. Filho de Solimões, da tradicional dupla Rio Negro e Solimões, ele encontrou uma voz própria e se tornou um dos principais representantes do chamado queernejo.
Jogo de palavras entre queer (estranho em inglês, aplicado no contexto da luta identitária às pessoas que não se encaixam nas normas de gênero) e sertanejo, este subgênero reúne artistas LGBTQIA+ que querem levar a música caipira e suas vertentes a um público que nunca se sentiu representado em sua cultura e suas composições.
O objetivo do movimento é também abraçar outros gêneros musicais além do sertanejo, abrindo as portas para o pop, o eletrônico e outros estilos.
Para Gabeu, os artistas do queernejo, ele incluso, querem ressignificar algumas coisas. "É a nossa tentativa, o nosso desejo de nos enxergar de forma clara e sem tabus no contexto sertanejo. Estamos buscando nos reconectar e fazer as pazes com nossas raízes, com as quais durante muito tempo tivemos uma relação conturbada. É muito complicado quando você é LGBTIA+ e realmente foge do esperado nessa sociabilidade interiorana, rural, quando você mal consegue se camuflar e você sente que aquele espaço não tem nada pra lhe oferecer”, analisa o cantor e compositor, que lançou na quinta-feira (7) um novo single, “Cowboy”, cover da canção criada pela Banda Uó com direito a videoclipe, ou videoperformance como ele descreve. “Então acredito que é muito sobre esse resgate, sobre entender que negar essa raiz também é muito cruel com quem vem desses lugares, é quase como apagar parte da nossa história."
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Gabeu gosta de definir seu trabalho como a valorização das narrativas queer em que a figura heteronormativa é questionada, uma mistura entre a moda de viola e o pop. "Mas gosto também de deixar que as pessoas me digam sobre o que é o meu trabalho. O termo pocnejo, por exemplo, surgiu quando as pessoas começaram a me descobrir, foi algo que me foi dado e eu abracei com todo carinho", diz o artista, mencionando o termo poc, frequentemente utilizado na comunidade gay para designar rapazes afeminados e de estética acentuadamente pop.
Tão óbvio é o domínio de homens heterossexuais no mundo sertanejo – com letras que falam sobre relações, celebrações hedonistas, amizade e outros temas quase sempre desde a ótica deles – que as mulheres do gênero precisaram criar seu próprio rótulo, o feminejo. Agora, outras narrativas, como o queernejo, começam a se construir para tentar abocanhar parte de um mercado gigantesco, que se traduz na esmagadora maioria de audições de canções sertanejas no streaming nacional, segundo o Spotify, e 33 dos 50 maiores hits das rádios e de outros meios no último ano, segundo a Crowley.
Bemti: moda de viola e reivindicação. Foto de Fábio Audi
O mineiro Bemti, outro expoente do queernejo, sabe bem disso. Através da viola caipira, vem criando novas sonoridades e experimentações que levam a música sertaneja a outros horizontes. "Estou fazendo uma música que é complexa, difícil de ser definida e encaixada num único gênero, mas minha referência é a moda de viola tradicional. Cresci ouvindo Rio Negro e Solimões, por exemplo. E é muito bonito hoje ver pessoas como o Gabeu, Alice Marcone e Gali Galó desconstruindo um gênero, gerando experimentações sonoras e estéticas", afirma.
O artista em breve lançará seu segundo disco, “Logo Ali”, através do edital Natura Musical. E, com o novo single "Samba!", com previsão de lançamento no dia 2 de junho, segue revelando o universo sonoro e conceitual que teve como ponto de partida o single “Catastrópicos!”, primeira faixa com participação de Jaloo e que já conta com mais de 170 mil audições no Spotify.
O objetivo de sua música é ir além dos clichês da música brasileira, dialogando com o universo LGBTQIA+ num contexto histórico e político. "A coluna deste novo disco é a viola caipira, e a partir dela estou experimentando várias coisas, chegando a um som que é caipira, um caipira atualizado, mas continua sendo caipira. O meu lugar no queernejo é uma intersecção, um diálogo, uma nova experimentação", diz Bemti.
Alice Marcone é outra representante do movimento, além de ser a primeira mulher trans a lançar uma carreira no sertanejo, com os singles "Pistoleira" e "Noite Quente". Em entrevista à coluna do jornalista Fefito, no UOL, Alice pontua o objetivo de sua arte: "Quero engajar o público LGBT mesmo. Quero marcar que tem uma travesti fazendo sertanejo. Eu, enquanto caipira na capital (de São Paulo), percebo também que tem um preconceito em relação ao universo sertanejo, um preconceito da cidade grande contra o interior".
Alice Marcone, primeira mulher trans a se lançar no queernejo. Foto de Daniel Philip Weber
Questionado sobre como lida com o fato de seu trabalho já ser considerado uma referência para pessoas LGBTQIA+, Gabeu fala que em alguns momentos se dá conta da responsabilidade que carrega, mas que ela já não o assusta mais. "Já teve uma época em que isso me apavorou um pouco, mais no começo, mas eu me vejo muito nas pessoas que me acompanham, que estão ali nas redes sociais, interagindo, indo aos meus shows. A relação entre artista e público é tão próxima que eu consigo enxergar essa responsabilidade com mais leveza.”
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