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Filipe Catto: 'Não estou aqui pra ser a melhor, mas pra ser eu mesma'
Publicado em 19/07/2022

Artista fala à UBC sobre transição para pessoa trans não binária, criação, novo disco e política 

Por Alessandro Soler, de Madri

Filipe Catto: "Empoderada da pessoa que eu sou e da imagem que eu tenho." Foto: Lucas Silvestre

Filipe Catto passou há alguns dias por Madri, onde se apresentou para milhares de pessoas numa das principais praças da cidade durante o Orgulho LGBTQIA+ daqui, tido como o maior da Europa. Também fez um show intimista num centro cultural latino, onde reuniu uma plateia salpicada da diáspora brasileira, mas também de fãs de vários países. Em ambas as ocasiões, falou de política, de amor, e mostrou que seu processo de transição — ou transgressão, como define — para pessoa transgênero não binária lhe permitiu abrir-se ainda mais ao mundo, transmitir suas mensagens sem amarras, com uma liberdade de ser quem se é que salta aos olhos.

Cantora, compositora, poeta e orgulhosa intérprete também de canções alheias — "se eu não tiver a liberdade de cantar outros compositores, não serei eu" —, a gaúcha nascida em Lajeado há 34 anos, e radicada há mais de uma década em São Paulo, prepara um novo disco. Nele, promete trazer com crueza, visceralidade, doçura e estranheza (características que combina em si) suas mensagens sobre as relações humanas, depuradas com um genuíno olhar de cronista. Isso ficou claro com a apresentação exclusiva da inédita "Madrigal", faixa do próximo álbum que antecipou à plateia madrilenha.

Ela, que compõe mais frequentemente sem parceiros — "meu trabalho sempre foi muito ligado à reflexão da dor que eu estava vivendo, a expressão das minhas experiências, tinha mais sentido criar isso sozinha" —, busca na "bruxaria", nas religiões afro e fora da ótica do sentido comum as inspirações para construir seu universo marcado por uma forte homenagem à terra e ao feminino. 

É sobre isso, e mais, que ela falou neste papo com o site da UBC.

 

A tradição de grandes prosistas da nossa música é evidente na sua obra. As letras e o jeito de cantá-las parecem ser grandes conversas entre você e quem a escuta. É de propósito?

É natural, não sei como explicar. Música é a própria natureza. Não sou uma pessoa muito racional: “agora vou fazer uma música com essa forma.” Tem artistas que chegam a isso, mas sou muito visceral. Componho com as melodias que vêm de dentro de mim. É a pomba-gira que vive aqui (risos).

Nasce, então, sempre com a melodia?

Não. Sou muito da palavra também. Escrevo sempre, todo dia. Pus na minha rotina: uma palavra, uma melodia, um dedilhar do violão. Sempre tento estar próxima do instrumento, manter o hábito de estar em contato com o instrumento, para que as coisas aconteçam. A gente tem inspiração, mas tem que se dedicar, tem que praticar. O contato é diário, é sagrado, é físico, trabalhado, tem método e estudo.

Durante o show intimista realizado há alguns dias em Madri. Foto: Francisco Carvalho

Além de estar perto do violão e de escrever constantemente, que outras coisas fazem parte da sua rotina musical?

Sou uma pessoa dispersa, não consigo focar muito tempo nas coisas… tenho muitas atividades na vida que levam à interiorização e à reflexão. Moro sozinha, gosto de ficar só e viajar só, adoro o silêncio. A vida que eu levo é fonte para o meu trabalho. Não sou muito noiada, o que me dá prazer é que as rotinas sejam prazerosas. Faço exercício físico, diariamente, ele também faz parte da preparação de palco: respiração, academia. Meu trabalho como performer também ganha uma dedicação diária: fazer fotos, pensar a estética do show, da nova música, do disco, da minha própria manifestação como artista. Tem muito mais do que só música, no século XXI: tem as redes sociais, tem a imagem. 

A imagem que tem hoje foi planejada? Como foi essa construção?

Hoje eu me sinto uma artista muito fiel ao que desejava ser quando era adolescente e estava começando. Apesar de ser radicalmente diferente na minha forma, em relação ao que já fui, mais eu aprendo que a pessoa que me tornei é a soma de todas as pessoas que fui. O movimento (LGBTQIA+), ao colocar nomes nas coisas, foi um presente, (permitiu) uma revolução que a gente está vivendo coletivamente. Apesar de toda a potência que eu sei que tenho, sozinha não teria a chance de explorar quem eu sou, vinda do lugar de onde venho. Hoje tenho a compreensão de que sempre fui uma cantora, nunca fui “o” Filipe. "O" Filipe era o que eu podia ser naquele momento. Mas, quanto mais me liberto de catalogações, mais me conecto à Filipe com barba, que vestia calça jeans e camisa social, mas que já era eu. Eu era chamada de ele porque não sabia que podia ser chamada de ela.

Para além da sua estética, do seu modo de se vestir, do pronome que usa para si, algo mudou intrinsecamente no seu processo de criar depois que começou sua transição?

Sinto que recuperei minha voz como compositora. Hoje consigo contar minha vida em primeira pessoa, empoderada da pessoa que eu sou e da imagem que eu tenho. A arte é feita de muitos elementos. Compus muitas músicas durante esse processo de transgressão de gênero. Não é só transicionar, é transgredir, é fazer algo diferente. A partir de agora, me sinto muito mais forte e com a autoestima mais saudável. Ser uma travesti não é fácil. É difícil te veres como te vês, e que as pessoas insistam em te chamar pelo pronome errado, em reafirmar o que elas acreditam que é certo para ti. Eu caguei, na verdade, elas que façam terapia.

Em relação "ao" Filipe de antes, acha que tem mais verdade no seu eu atual?

São momentos diferentes. Cada era, cada fase, tem suas características e desafios e aprendizados. E todas tiveram verdade. Eu, quando comecei a cantar, era uma bichinha afeminadíssima, gordinha, de 9 anos de idade, numa churrascaria no Rio Grande do Sul, com o meu pai tocando um teclado. E eu cantando "My Heart Will Go On" (hit de Celine Dion). Sempre fui Carrie, a Estranha (risos). Depois, comecei a me ligar em PJ Harvey e Patti Smith, e então tive fase diva, quando descobri a Dalva de Oliveira... Aí veio o contrato com uma grande gravadora multinacional, e foi o momento de enlouquecer e me aventurar pelo mundo. Agora, (sou) a travesti-brasileira-pomba-agira que carrega tudo isso. Daqui a pouco estou no teatro, nas artes plásticas... 

No filme, Carrie, a Estranha, se vingou dos que fizeram bullying contra ela. A sua "vingança" qual foi?

Foi quando eu passei um batom pela primeira vez. "Acabou, esta sou eu." Ganhei ali o direito à expressão de ser quem eu sou, e ninguém nunca mais vai poder me fazer mal. Eu tirei esse poder das pessoas. Esse jeito de ser é o que me leva a este lugar como artista. Foi a minha vingança.

Você é uma artista tipo pessoa do Renascimento, que joga nas 11 e faz muitas coisas além de compor e cantar...

Sinto que tenho linguagem mais pessoal, me vejo como cantora que tem estética própria musical, porque faço também produção. Tenho consciência da estética: eu faço a foto, o vídeo, saio pra comprar figurino, saio para fazer produção. Não sou a diva que está cercada por uma equipe. Não tenho e não gosto (de ter vários assistentes), sempre achei meio cafona esse metiezinho assim. Tudo em que eu ponho a mão tem a minha cara. Cheguei a uma identidade muito pessoal. Se é grande, pequena, feia ou bonita, não é problema meu. Não estou aqui para ser a melhor, mas para ser eu mesma.

Você costuma compor mais em parceria? Ou mais sozinha?

Eu tenho alguns parceiros que são íntimos meus. Sou uma pessoa muito dada à intimidade. Mas sinto que meu trabalho sempre foi muito ligado à reflexão da dor que eu estava vivendo, a expressão das minhas experiências, o processo de me entender como pessoa trans... Tinha mais sentido criar isso sozinha. Agora que estou produzindo, e que tive outras visões, estou mais aberta a fazer coisas em parceria com mais desprendimento. Mas é aquilo: sou uma pessoa estranha e uma artista esquisitona (risos). Sou a que vai ao cemitério tomar um vinho. Existe estranheza, solidão, uma coisa natural da minha personalidade, prefiro manter um certo mistério. Não faço questão de buscar agradar a todo custo, fazer o feat que está bombando, o gênero que está bombando. Adoraria poder, juro pela deusa (risos). Sei que sou uma boa cantora, até queria arrebatar o Brasil com a minha voz, mas prefiro me manter fiel a mim.

Na praça onde se apresentou em Madri, durante a Semana do Orgulho LGBTQIA+. Foto: Francisco Carvalho

E a inspiração para isso vem de onde?

Sou uma pessoa muito curiosa com o inconsciente humano. Tenho histórias e vivências com a minha pomba-gira. Eu brinco com isso, é meio loucura, mas acredito nesses arquétipos. Sou espiritualizada, sou bruxa. O que eu faço com o meu trabalho é o que a arte significa: a arte sempre esteve junto da espiritualidade, do transe, do inconsciente, das visões xamânicas. A minha arte vem dessa energia, muito ligada à terra, à experiência do feminino. Falo da bruxaria como antítese ao conservadorismo cristão, que é usado muitas vezes de uma maneira horrorosa, macabra, profundamente opressora. Reflito sobre tudo isso escrevendo poesia: na verdade, jorro tudo, e a coisa meio que se escreve sozinha. 

Foi assim que surgiram todas as músicas do disco de 2023, cujo nome ainda não vou dizer. (A inédita faixa) "Madrigal" nasceu pronta. "Vou fazer o quê? Gravar com voz e violão." A música sabe o que ela é, eu só tenho que obedecer. O que vende, hoje, é o oposto do que eu faço e significo, mas prefiro sempre apostar no estranhamento. Além do mais, os artistas que eu sempre amei eram estranhos e demoraram muito para acontecer. PJ, Cat Power, Cassia Eller, que eu ouvia desde os anos 1990, quando ninguém a conhecia... Alguém tem que fazer esse trabalho de ser esquisita (risos). A gente está aí, cada vez mais: garotas góticas, bichas estranhas, estas sempre foram as minhas amigas, e sempre foram meu público também. Como eu amo ter a experiência de ser uma pessoa dissidente. E que lindo é ver como as pessoas pegam o que tu escreveste para elas, era o que acontecia comigo quando eu era adolescente e era público. Espero poder contribuir para a vida de quem passa por coisas parecidas — dá uma sensação tão boa de irmandade.

Essa irmandade você tem conseguido também nos momentos em que fala de política nos shows...

Artista é povo, arte é dia a dia, é comida. O que eu sinto sobre o artista que está em cima do palco é o que eu sinto sobre qualquer pessoa: tem que se posicionar, não pode se omitir. A gente está enfrentando o nazifascismo à brasileira, uma regressão brutal, uma idade das trevas. Acho uó artista dizer que não quer falar disso ou reprimir o público que faz manifestação política na plateia. Me decepciono (com quem o faz), paro de seguir. Pagar de isentão, como se nada estivesse acontecendo, é ignorante, fútil. Vira um artista supérfluo, vira um enfeite. Enfeite não pensa, enfeite enfeita, agrada. Não falo só da perseguição à classe artística, do genocídio de negros e indígenas; falo do povo em geral passando fome. Como não ter empatia? Ninguém da minha geração viu dinheiro de verdade. Eu sou artista de uma geração que mora no Centro de São Paulo, vive entre as pessoas reais. Tem artista que não pode se posicionar, do agronegócio, por exemplo. A máquina os mantém no primeiro lugar, o cachorro não late para quem o alimenta. Agora, existe arte, existe entretenimento, existem várias coisas. Eu só tenho a dizer que a história é a história, o tempo é o tempo, e a biografia de cada um falará por si. A gente não vive só do presente. A maior vaidade que eu tenho como artista é trabalhar para deixar uma trajetória que seja de contribuição. Quero chegar a ser uma cantora velha e ter orgulho de saber que eu pude contribuir para o progresso, para a civilidade. A hora de agir é agora, não dá mais para ninguém se omitir.

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