O quase centenário ofício de criar música para audiovisual se equilibra entre a esperança de crescimento e o desejo por estabilidade
Por Eduardo Lemos, de Londres
É só rolar o feed para perceber: nos últimos tempos, um vídeo no TikTok ou no Instagram quase sempre vem acompanhado de uma música de fundo. Ao se preocuparem com a escolha da canção que irá tocar no seu vídeo, o que os criadores de conteúdo estão fazendo é colocar em prática um velho ensinamento do cinema: o de que a música é capaz de transmitir ao espectador sentimentos e sensações que a imagem em movimento, sozinha, não alcança.
Criar o som que combina melhor com uma cena é, na verdade, uma das profissões mais valorizadas na indústria da música atualmente. No Brasil, os compositores de trilha sonora original para filmes, séries e produções audiovisuais viram este mercado crescer vertiginosamente nos últimos trinta anos — primeiro a partir da retomada do cinema brasileiro, nos anos 90, depois com a popularização da TV a cabo, nos anos 2000, e na década seguinte, no boom das plataformas digitais, como HBO e Netflix. Segundo o Ecad, em 2021, dos R$ 901 milhões distribuídos em direitos autorais, quase 59% foram relacionados à música no audiovisual, o que inclui TV aberta, fechada, cinema e streaming de vídeo.
Nos Estados Unidos, um relatório encomendado pela PMA (Production Music Association) em setembro do ano passado revelou que 46% das músicas que tocam em produções exibidas na TV local são trilhas originais, e apenas 7% são faixas que foram lançadas anteriormente por selos e gravadoras, chamadas no meio de "licenciadas", como aquelas que os tiktokers e instagramers usam em seus vídeos.
"O mercado evoluiu exponencialmente nos últimos 10 anos. Destacaria a entrada dos players de streaming como o grande fomentador do mercado de trilhas sonoras atualmente", diz Gustavo Garbato, músico e um dos sócios da produtora Loud.bz, que assina a trilha de séries como "Rota 66" (Globoplay) e de filmes como "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", além de trabalhos para Netflix e HBO.
O otimismo vem depois de um período de incertezas. É unânime no meio a avaliação de que o mercado brasileiro teve um teste de fogo nos últimos 4 anos.
"Passamos por um período crítico no último governo federal. O novo governo já se mostra mais atento e aberto à cultura. Acredito que nos próximos anos nosso mercado deva ter um crescimento significativo", explica Otávio Carvalho, músico e sócio do Submarino Fantástico, que tem em seu portfólio produções musicais para séries como "3%" (Netflix) e "Zoo da Zu" (Cartoon Network) e para o filme "Confisco" (HBO).
"Com a volta de um governo que valoriza a cultura, o mercado vai crescer", avalia Gui Amabis, fundador da Temática Áudio junto com os irmãos Rica e Mariana. A produtora é responsável por dezenas de trilhas sonoras para a TV e o cinema, com destaque para as séries "Irmandade" (Netflix) e "Manhãs de Setembro" (Amazon).
"A produção de trilhas sonoras resistiu a esse período e à pandemia de maneira surpreendente", comemora Gustavo Garbato.
Gustavo (no alto, segundo a partir da esquerda) e seus sócios na Loud. Foto: divulgação
História antiga
A relação entre som e cinema remonta à virada do século XIX para o século XX, quando, durante a exibição do filme, era comum ter um pianista tocando ao vivo no espaço de exibição. Em alguns casos, chegava-se a montar uma orquestra inteira. Tudo para que a música ajudasse o público a sentir ainda mais as emoções representadas na tela.
Foi em 1926 — portanto, há quase 100 anos — que "Don Juan", o primeiro longa-metragem com trilha sonora de música e ruídos, foi lançado em Nova York. A partir dali, a música para cinema tornaria-se um gênero e ganharia status de arte nas mãos de compositores como Nino Rota e Ennio Morricone, para citar só dois mestres europeus que até hoje são influências inescapáveis do estilo.
No Brasil, Radamés Gnatalli e Remo Usai foram dois nomes muito presentes na ficha técnica de diversas produções, incluindo as pornochanchadas. A partir dos anos 1960, a música popular também passou a ser utilizada nos filmes — Chico Buarque, Edu Lobo e Francis Hime se destacaram como compositores para o cinema nacional. Nas décadas seguintes, profissionais brasileiros como Antonio Pinto, Plínio Profeta e Heitor TP tornaram-se referências internacionais do gênero.
Crescer e se estabelecer: os desafios de um mercado relativamente novo
No entanto, é pequena a lista de profissionais que conseguem viver apenas da criação de trilhas para cinema e TV. No geral, essa atividade acaba se somando a outras, como a gravação de projetos autorais, apresentações ao vivo e produções publicitárias.
Se dar conta de diferentes tarefas pode ser desgastante, por outro lado acaba alimentando a criatividade.
"Eu atuo em diversas frentes relacionadas ao áudio e à música, acho isso muito divertido e inspirador. Num dia estou compondo uma trilha, no outro mixando uma série, no outro fazendo um show ou mixando um disco. E a troca com pessoas que têm bagagens musicais diferentes agrega muito", analisa Otavio Carvalho.
Otávio Carvalho: produções para "3%" e outras séries famosas. Divulgação
É um segmento que, embora esteja em crescimento, também está em busca de estabilização, segundo Rica Amabis, da Temática:
"Ainda é um mercado não muito grande, com poucos profissionais que conhecem o meio e sabem como funciona todo o processo de criação de uma trilha", explica o produtor, que vê potencial para que o segmento se torne ainda mais forte dentro da indústria musical. "Eu acho que com o tempo, o mercado de trilhas vai crescer e ser tão estável como o de música gravada e de shows. E estável para todos, que é o mais importante."
Otávio Carvalho destaca que a tecnologia — fator determinante para o surgimento e a evolução da arte de criar trilhas sonoras — tende a deixar a área ainda mais democrática.
"Hoje temos tecnologia para você criar suas composições em casa. É possível começar compondo para o vídeo de um amigo ou baixar um vídeo e criar uma trilha nova como exercício de estudo, e a partir daí evoluir", diz.
Compor para série é diferente de compor para filme
Criar trilha sonora para filmes e séries é um misto de sensibilidade artística e briefing. Na primeira, entra em cena todo o conhecimento do músico para captar e transformar em sons as diferentes atmosferas daquela história. Na segunda, é hora de conversar com o(a) diretor(a) para saber quais são as referências sonoras imaginadas para determinado personagem ou cena.
"A gente compõe para a história e para o que está no filme. Para mim, a imagem é a própria melodia. Eu componho respeitando muito isso", diz Gui Amabis.
Para os profissionais que querem começar a compor para o audiovisual, é importante saber que o processo de criação para uma série guarda diferenças significativas em comparação ao que pede um longa metragem, por exemplo.
"Em ambos, a gente costuma entrar no projeto depois que o roteiro está pronto, aprovado para filmar e está sendo produzido. Temos reuniões com o diretor para descobrir qual é o ambiente sonoro do projeto. Feito isso, a gente começa a separar um banco de referências do ambiente sonoro para o montador ver se funciona", detalha Rica Amabis.
Gui Amabis: previsão de crescimento para o mercado. Foto: Júlia Braga
É a partir desse ponto, segundo ele, que os processos criativos de séries e filmes se separam.
"No filme, a gente manda o banco, o editor edita o filme, testa, faz as edições e entrega o filme pronto, aprovado já com as referências no lugar. E a gente compõe a partir daí. Já na série, no fim da pesquisa de ambiente sonoro, a gente já começa a compor, antes da montagem. Isso porque a série é muito maior, com mais capítulos e se espera que a gente já comece a compor com as referências iniciais."
Além de estar por dentro dos diferentes processos criativos, um bom profissional está sempre consumindo trilhas sonoras.
"A minha dica é assistir a muito filme prestando atenção nas trilhas e tentar achar algum estúdio que faça trilha, para que você possa frequentar este ambiente e aprender. Foi assim que eu fiz, fui atrás de um estudo que fazia trilha pra aprender, porque é um ofício muito diferente de disco: como se grava, como se edita, como se organizam as sessões… Eu acho mais complexo trilha do que disco", diz Gui Amabis.
E em 2023?
Gustavo Garbato lista alguns desafios para o ano que já começou.
"Primeiro, entender como se comportarão os players de streaming depois do boom dos últimos anos. E aguardamos ansiosamente uma melhor definição na questão de direitos autorais nesse tipo de mídia".
Há também uma preocupação com o cenário econômico:
"Acho que temos alguns desafios econômicos que passam pela inflação galopante e a alta do câmbio, que impacta diretamente em investimentos de infraestrutura", alerta.
Por outro lado, o setor crê que o retorno da cultura à pauta política trará resultados positivos. "Acreditamos que o novo governo reconstruirá o trabalho de fomento ao audiovisual no país, com a reconstrução do MinC, Ancine e o retorno de leis de incentivo no país."
Rica Amabis, sócio da Temática. Foto: divulgação
Como não poderia deixar de ser, a evolução da inteligência artificial (IA) também está na pauta. Embora a tecnologia por trás de aplicativos de criação por robôs, como o já célebre Chat GPT (para letras) e outros que compõem acordes, ainda não substitua os humanos, há uma percepção geral de que a IA terá influência no setor nos próximos anos.
"Com certeza haverá algum tipo de impacto. Mas não temos uma visão fatalista disso, como se fosse substituir um compositor por exemplo, pelo menos a curto ou médio prazos. Mas sim como uma ferramenta que auxilie na concepção dos arranjos, sugira variações de melodia ou harmonia ou até solucione problemas de mixagem baseado em referências", exemplifica Gustavo Garbato.
Otavio Carvalho lembra que a escalação dos músicos que vão gravar determinada trilha passa frequentemente por critérios humanos e subjetivos, e não somente técnicos.
"Muitas vezes, você chama alguém para o projeto por conta da sua bagagem cultural. Chamar alguém do Nordeste para tocar uma rabeca, ou um uruguaio para tocar bumbo leguero, faz toda a diferença no resultado. Essa bagagem humana é o que não vem na inteligência artificial", argumenta.
"Acredito que o fator humano, a sensibilidade, entendimento de briefing e/ou correção de rumos ainda estão muito longe de ser emulados", finaliza Gustavo Garbato.
LEIA MAIS: Música para videogames: uma nova fase