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Ana Cañas: 'Belchior ainda é preterido' em certos círculos
Publicado em 27/02/2023

Cantora e compositora comenta a obra do cearense, homenageado por ela em DVD, e fala sobre a desigual presença feminina na composição

De São Paulo

Fotos Reprodução redes sociais

Ana Cañas é fã relativamente recente, mas intensa, de Belchior — um dos mais autênticos e menos compreendidos gênios da criação musical brasileira, cuja morte completará seis anos em abril. Apesar de ter tido contato com as músicas dele ainda na adolescência, foi durante a a pandemia que elas começaram a povoar seu repertório, em sucessivas lives. Na “retomada”, ganharam os shows, e a presença do “sujeito de sorte” na vida da cantora e compositora paulistana ficou grande demais. Ela quis contar isso ao mundo com o recém-lançado DVD ao vivo “Ana Cañas Canta Belchior”, com performances de hits e lados Bs do cearense, incluindo uma inédita, “Um Rolê no Céu”, presente dos filhos deles para ela. Ney Matogrosso e Rael participam. 

Além do desejo de cantar obras que descreve como profundas, poéticas e atemporais, depreende-se na artista também o ímpeto de fazer Belchior ocupar mais espaços, ganhar ainda mais reconhecimento: 

“Atravessei o país cantando suas canções. E o que vi e senti com todas as forças é que ele faz parte do panteão da música brasileira, sem dúvida nenhuma. Curiosamente, percebo como ele ainda é preterido nos círculos que definem esse mesmo panteão.”

A UBC a entrevistou sobre Belchior, criação, mulheres na música e carreira. E Ana adiantou: já está trabalhando num novo projeto autoral que “reflete toda essa mudança vivida e absorvida nos últimos meses e anos. Deve ser lançado em 2024.”

 

Você disse numa entrevista recente que cantar o repertório de Belchior a transformou completamente, atingindo-a “no cerne”. Por quê?

ANA CAÑAS: O Belchior é um compositor extremamente profundo e intenso, escorpianíssimo. Ele altera as estruturas de quem o ouve e canta. Nos toca a alma, promove o pensamento, sua poesia é atemporal e bastante atual. Sua idiossincrasia reflete o refinamento de uma mente muito articulada, mas também acessível e simples. É um gênio que traduz o Brasil para o Brasil.

Desde quando você curte a obra dele?

Ele entrou na minha vida ainda na adolescência, pela voz de Elis. Eu nunca tinha parado para mergulhar em seu universo até a primeira live, na pandemia. Ouvi toda sua discografia, li muitas biografias, conheci seus filhos, Camila e Mikael, assisti a centenas de entrevistas no YouTube e me encantei pelo compositor mas, também, pelo ser humano gentil, bem-humorado, e por sua mente sagaz. Sou apaixonada por ele, com certeza!

Acha que o Belchior ocupa, no imaginário coletivo, o espaço que lhe corresponde por sua grandeza artística?

Não ocupa, isso é um fato. E deveria. Atravessei o país cantando suas canções. E o que vi e senti com todas as forças é que ele faz parte do panteão da música brasileira, sem dúvida nenhuma. Pelo legado, emoção e força. Curiosamente, percebo como ele ainda é preterido nos círculos que definem esse mesmo panteão. Há alguns dias eu tive a oportunidade de cantá-lo na Sala São Paulo, e foi algo inédito, pois é um espaço elitizado, acostumado a celebrar Chico Buarque, Caetano (Veloso) e Milton (Nascimento), por exemplo. Foi muito emocionante ver o Belchior adentrar esse espaço que tanto merece e ao qual pertence.

Se tivesse que fazer uma comparação, crê que haveria um equivalente feminino do Belchior? Há uma autora que tenha algo da pegada dele, em termos estéticos e de produção?

Acho que não há comparação possível. Nem feminina nem masculina. Ele é realmente único. Em termos de caneta mesmo, composição, é absolutamente idiossincrático. O que mais se assemelha, para mim, é o Nando Reis. Tanto no verso, popular e sofisticado, quanto na atitude gauche, na verdade e na poesia. São similares para mim. Mas Nando é homem...

Nos anos 70 e 80, quando ele estava no auge da criação, o cenário musical era ainda mais árido para as compositoras. O que acha que mudou?

Acho que a minha geração, 2005 a 2020, trouxe novas compositoras mulheres, as queridas Maria Gadú, Céu, Mari Aydar, Karina Buhr e tantas outras. Foi uma marca naquele momento esse cenário. Mas sabemos, por todas as estatísticas, que ainda somos minoria, tanto em arrecadação, execução pública ou line-up de festivais. É uma luta constante desbravar uma seara que ainda se revela bastante preconceituosa quanto ao trabalho feminino. Mas já há o que celebrar no mainstream, por exemplo, com Ludmilla, Marília Mendonça, Iza, Anitta, Pabllo Vittar e Luisa Sonza. É uma representatividade importante e inédita, já histórica.

De fato, sucessivos levantamentos da UBC para a pesquisa anual Por Elas Que Fazem a Música vêm mostrando uma estagnação no percentual de mulheres associadas: elas gravitam sempre ao redor dos 15%. Não representam nem 10% dos ganhos com direitos autorais, pouquíssimas músicas do top 100 das mais ouvidas anualmente são compostas por mulheres. Como se pode mudar isso?

Pois é, uma confirmação do que sentimos vivendo no meio e observando os topos das paradas no país. Fundamentalmente, seria necessário alternar e ocupar mais posições de decisão e poder, tanto em gravadoras, curadorias de festivais, rádios e televisão, por exemplo. Seria um fortalecimento importante e que, aos pouquinhos, está acontecendo. Já temos inclusive o WME, um prêmio para celebrar o meio musical feminino. Mas a realidade ainda é distante do que seria necessário para uma mudança mais efetiva.

O que a tem inquietado agora? Algum tema? Algum sentimento particular? O cenário político?

Estou vivendo um momento muito especial, de profunda realização artística e pessoal. Considero o momento mais bonito da minha vida e carreira. Foram mais de 100 shows até aqui, ganhamos o prêmio da APCA de "Show do Ano", lançamos o DVD com o show completo no YouTube, sem falar do retorno que tenho a cada show, em cada abraço que dou nas pessoas, das mensagens que recebo pelas redes. É muito emocionante viver tudo isso. Estou muito feliz! 

Costuma transformar essas emoções em criações? Como é o seu processo de composição?

É bastante aleatório e pontual. A inspiração surge em momentos muito curiosos. Às vezes, atribulados, às vezes, ociosos. Geralmente, alguma inquietação ou sentimentos vividos e não externados ainda. O meu lado autoral também se transformou bastante após interpretar o Belchior. Sigo com mais simplicidade, tentando capturar a essência das coisas nas canções do agora. 

Já tem disco novo autoral engatilhado?

Já tem! Um projeto engatilhado de dueto, possivelmente um EP, mas não posso contar muito ainda. E um disco autoral que reflete toda essa mudança vivida e absorvida nos últimos meses e anos. Deve ser lançado em 2024. 

 

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