Criação de agência para promover essa arte no país da Oceania teve colaboração da sociedade de gestão coletiva APRA AMCOS; entenda como foi
Por Alessandro Soler, de Berlim
Atualizada em 23/08/2023
Kylie Minogue, uma das mais conhecidas estrelas da música australiana: agência quer revelar novos talentos. Foto: Shutterstock
O atual governo australiano decidiu transformar a música em política de Estado — num modelo com potencial para ser replicado em outros países, o Brasil entre eles. No final de janeiro de 2023, o gabinete do primeiro-ministro Anthony Albanese (Partido Trabalhista, centro-esquerda) anunciou a criação da Music Australia, uma agência pensada para transformar a música do país numa potência global. Desde um plano de ensino de composição musical nas escolas à promoção dos artistas locais em festivais e na programação de rádios e TVs, muitas ideias serão coordenadas por esse novo órgão, que se soma a um pacote milionário de investimentos do governo nas indústrias culturais e criativas. E a gestão ficará a cargo dos próprios artistas: no final de agosto de 2023, nomes do pop australiano como Gordi, Mama Kin e Fred Leone foram escolhidos para liderar o conselho de administração da Music Australia.
Como tantos gestores públicos ao redor do planeta, Albanese parece ter entendido que as artes — e a música sobre todas elas — têm uma capacidade quase inigualável de atrair admiração, respeito, influência e negócios para a nação de onde provêm. Conhecido como soft power, ou poder brando, esse ativo ocupa um lugar de destaque nos debates sobre as relações internacionais do século XXI.
“A população da Austrália (26 milhões) é pequena. Então, uma das melhores maneiras para aumentar as receitas de um artista é ajudá-lo a ganhar projeção internacional. Isso inclui auxiliá-lo na busca por mais palcos em festivais ao redor do globo, por exemplo”, disse o ministro das Artes, Tony Burke, ao anunciar o Music Australia.
Por trás desse ímpeto de prospecção ativa de novos públicos está a constatação de que, apesar de beneficiar-se do fato de ter o inglês — língua franca do mundo — como idioma oficial, a Austrália não ocupa um lugar na “musicosfera” mundial que corresponda ao seu potencial. Agora, através da nova agência, o governo planeja investir inicialmente 70 milhões de dólares australianos (mais de R$ 240 milhões) em projetos para, entre muitas outras medidas:
Fomentar a música contemporânea e permitir que ela chegue a diferentes mídias;
Apoiar as casas de shows ao vivo, grandes bastiões do desenvolvimento e da promoção de novos talentos;
Criar uma coordenação central de acesso de bandas e artistas a esses palcos;
Difundir disciplinas de criação musical nas escolas, alimentando desde bem cedo o ciclo virtuoso da renovação de talentos;
Coletar e utilizar dados relacionados a festivais e grandes eventos musicais para pensar estratégias certeiras de difusão.
Tudo com metas pré-estabelecidas e mensuráveis. Como numa empresa de gestão eficiente. Um nível de detalhe e uma proximidade com as necessidades da indústria que só poderiam vir da direta participação dos principais interessados. Para elaborar o conjunto de políticas que a Music Australia porá em prática ou coordenará, o governo fez uma chamada pública. A sociedade de gestão coletiva do país APRA AMCOS entendeu a enorme oportunidade que isso significava e liderou os esforços.
Depois de um discurso inspirador da sua presidente, Jenny Morris, no parlamento australiano, em 2020, a APRA AMCOS esteve à frente de uma colaboração entre 18 entidades da indústria para elaborar a proposta unificada.
“Nossa proposta buscou revolucionar o apoio do governo à indústria musical, defendendo o desenvolvimento de um marco estratégico para investimentos de longo prazo”, descreveu à UBC, por e-mail, Dean Ormston, diretor-executivo da sociedade. “No centro do plano havia um chamado ao governo australiano para estabelecer uma nova agência de desenvolvimento musical com um orçamento anual significativo, a Music Australia.”
Deu certo. Acolhendo grandemente as reivindicações propostas pelos representantes da indústria, o governo incluiu ainda medidas de estímulo ao setor pós-Covid e outras para promover a música australiana no streaming, nas rádios e na TV do país, onde ela é minoritária.
“A música contemporânea, historicamente, tem estado ausente das políticas de desenvolvimento cultural na Austrália. O apoio à literatura começou em 1908, seguido pela criação do Conselho para as Artes e a Comissão de Cinema da Austrália, que foi fundada nos anos 1970. Não foi até 1985 que um comitê do governo recomendou o apoio à música contemporânea, mesmo assim sem qualquer tipo de investimento ou estratégia reais”, lembra Ormston.
Ele cita ações da APRA AMCOS levadas a cabo nos últimos 15 anos, como algumas voltadas para a música dos povos originários (aborígenes) da Austrália e a iniciativa de promoção das canções australianas no exterior Sounds Australia. Apesar de esta última ter sido criada em colaboração com o Conselho para as Artes e o governo, a maioria não teve eco entre as instituições do Estado. Portanto, a incorporação das sugestões da entidade ao plano público, agora, mostra uma mudança importante na visão estratégica do país em relação à música.
“Precisávamos mudar a abordagem do governo com urgência. Era preciso uma nova atitude em relação à indústria musical”, lembra o diretor-executivo da sociedade australiana. “(A nova política recém-divulgada) mostra que o governo abraçou as propostas de políticas públicas da indústria musical contemporânea com seriedade.”
Alguns dos dados reunidos pelas entidades lideradas pela APRA AMCOS traduzem em números a magnitude da música contemporânea para a produção artística nacional:
O setor de shows e concertos gera cerca de 16 bilhões de dólares australianos anualmente (R$ 55 bilhões);
A música contemporânea responde por mais de 50% das apresentações (incluindo artes cênicas e outras manifestações de performances ao vivo);
Para cada dólar australiano gasto na música ao vivo, três são devolvidos à comunidade.
“Foi vital para o sucesso da nossa proposta ter criado uma visão positiva sobre o que é possível, além de termos sido ambiciosos sobre o potencial do nosso talento musical”, raciocina Ormston. “A Austrália está numa posição única. É um país de língua inglesa que compete com duas das maiores potências da música global, o Reino Unido e os Estados Unidos, e também tem a cultura dos povos originários no coração da nossa história e criatividade, além de ser uma das sociedades mais multiculturais do mundo. O potencial futuro de exportação e colaboração com mais mercados inclui Ásia, América Latina, Oriente Médio. É uma oportunidade que não se pode desperdiçar.”
LEIA MAIS: As lições da indústria da música latino-americana para o Brasil