Cantor e compositor finalmente tem cerimônia de entrega do Prêmio Cervantes, com a presença dos presidentes de Brasil e Portugal
Do Rio
Foto: reprodução RTP
Este 25 de abril, dia em que se celebram os 49 anos da Revolução dos Cravos — a revolta pacífica que pôs fim à ditadura portuguesa —, será especial para Chico Buarque, autor da mais célebre canção brasileira sobre aquele evento histórico, “Tanto Mar”. Quatro anos depois do seu anúncio como vencedor do Prêmio Camões, principal honraria literária do mundo lusófono, ele pôde finalmente ter uma cerimônia de entrega, nesta segunda-feira (24), no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, 30 quilômetros a noroeste de Lisboa.
A demora se deveu à recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro em assinar o diploma de premiação, condição obrigatória para a realização da festa — mas não para a entrega do prêmio de € 100 mil (R$ 556 mil, no câmbio desta terça-feira), que já está com Chico. Quem acabou deixando sua assinatura pelo lado brasileiro foi o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que participou da cerimônia em Sintra junto do presidente e signatário português, Marcelo Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro luso, António Costa, dos ministros da Cultura dos dois países, Margareth Menezes (Brasil) e Pedro Adão e Silva (Portugal), e do presidente do júri do prêmio, o escritor português Manuel Frias Martins.
Muito emocionado, Chico chegou a chorar no início do seu discurso, ao mencionar as autoridades e também o gesto da mulher, Carol Proner, que atravessou a avenida do hotel onde estão hospedados, horas antes da cerimônia, para ir comprar uma gravata para ele.
“Isso me emociona”, disse.
Em seguida, ele citou o pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, “de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa”:
“Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para, em seguida, indicar-me leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo pessoal de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja a me ver hoje aqui. Se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência, e ele cá, no meu posto, a receber o prêmio hoje”, afirmou, aos risos.
Celebrando a pluralidade dos povos lusófonos e da própria sociedade brasileira, Chico evocou em seguida seus antepassados negros e indígenas, “cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. (...) Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.”
Logo depois, lembrou a relativamente recente descoberta de antepassados judeus sefarditas portugueses, o que poderia lhe garantir a cidadania lusa por uma lei de reparação histórica publicada há alguns anos. A menção ao eventual pleito de nacionalidade, num país onde a comunidade brasileira vive um momento de forte expansão, arrancou gargalhadas da plateia.
O premiado citou ainda João Cabral de Melo Neto, primeiro brasileiro a receber o Camões, e autores como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, que contou terem-no apadrinhado em seu salto literário, no início dos anos 1990, quando publicou seu romance de estreia, “Estorvo”.
“De vários autores aqui premiados fui amigo; e de outras tantas e outros tantos do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde sou leitor e admirador. Mas, por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como um gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.”
Depois dele, Lula e Rebelo de Sousa também discursaram. O presidente brasileiro chamou o prêmio a Chico de “resposta do talento contra a censura, do engenho contra a força bruta.”
“Chico transformou em patrimônio literário comum os amores de nossos povos, as alegrias de nossos carnavais, a beleza de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossos cidadãos e cidadãs pela liberdade e pela democracia”, afirmou Lula.
Rebelo de Sousa, em sua intervenção, citou a entrega do Camões a um autor predominantemente ligado à música, algo que já havia provocado discussões e análises mundo afora quando Bob Dylan recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2016:
“(Na ocasião) foram pedir reação a Leonard Cohen: 'Foi como dar medalha ao Everest por ser a montanha mais alta'. Se todos consideramos o cancioneiro de Chico parte integrante do nosso patrimônio, em patamar que poucos se comparam, haveria de sentir alguma dissonância? Mesmo aqueles que alegam deméritos técnicos para contestar o prêmio e as opiniões de Chico contestam as ideias de quem deu a cara contra a ditadura?”
Entre as muitas personalidades presentes à entrega, a cantora Fafá de Belém festejou a retomada da normalidade no Camões — que, agora “destravado”, poderá realizar as cerimônias das edições 2020, 2021 e 2022, paralisadas por conta da situação de Chico.
“É um ato simbólico, finalmente o resgate da democracia e do respeito às artes como fundamentais para o desenvolvimento de um país”, disse Fafá ao jornal “O Globo”.
Daqui do Brasil, a presidente da UBC, a cantora e compositora Paula Lima, também celebrou a premiação ao associado Chico:
"Chico Buarque, com o importantíssimo Prêmio Camões em mãos, representa o resgate da cultura no Brasil, nos representa com habitual maestria. Sua capacidade, através da música e da literatura, de espelhar o que somos é uma arte reverenciada no mundo inteiro. Obrigada pelo legado e pela história que segue escrevendo com sua sensibilidade e honradez. A UBC agradece e parabeniza o mestre por mais esta conquista. Viva Chico, brasileiríssimo!"
Criado em 1988 pelos governos de Brasil e Portugal, o Camões é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países da CPLP — Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Ao longo das suas 34 edições, premiou nomes consagrados como José Saramago, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, Maria Velho da Costa, Rubem Fonseca, Mia Couto, António Lobo Antunes e Paulina Chiziane.