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Morre Rita Lee, aos 75 anos, em São Paulo
Publicado em 09/05/2023

'Mãe' do rock brasileiro deixa legado de mais de 300 composições, seu nome na história da música, milhões de fãs e uma família unida

De São Paulo

Fotos de Guilherme Samora

O rock brasileiro perdeu sua “mãe”. A cantora e compositora Rita Lee morreu na noite de segunda-feira (8), em São Paulo, como revelou a família num comunicado no seu perfil oficial do Instagram nesta terça. Há quase três anos lutando contra um câncer no pulmão, ela enfrentou complicações recentes, que a levaram inclusive a ser internada em fevereiro. O velório, ainda de acordo com o comunicado, será aberto ao público nesta quarta-feira (10), das 10h às 17h, no Planetário do Parque do Ibirapuera. Já a cerimônia de cremação, no dia seguinte, será restrita aos familiares.

A grande artista deixa, aliás, uma família unida, formada por seu parceiro de música e vida Roberto de Carvalho e seus filhos, Beto Lee (músico, cantor e compositor), João Lee (DJ e produtor) e Antonio Lee (artista visual, único deles não envolvido diretamente com a música). Mas deixa também, a seus milhões de fãs no Brasil e no mundo, um legado de mais de 320 composições registradas na UBC e seu nome definitivamente escrito na história do pop-rock em português.

Em abril de 2021, Beto chegou a ir às redes sociais para celebrar a remissão do câncer de Rita. “A cura da minha mãe me emocionou pra car*lho. Melhor notícia de todos os tempos. Manteve a cabeça erguida, com vontade de lutar, e encarou tudo com seu bom humor habitual, tanto que apelidou o tumor de ‘Jair’. That’s Rita.” 

Já no início de fevereiro, Roberto de Carvalho publicou uma fotografia na sua conta no Instagram em que se via Rita com os cabelos curtos por conta da quimioterapia. Ela mesma também fez uma postagem recente: foi na semana do carnaval, com uma foto em que aparece com as unhas pintadas sobre a legenda: “Em clima de folia.”

FAMÍLIA DE MENINAS SUPERPODEROSAS

Nascida em São Paulo, num 31 de dezembro, a poucas horas de terminar o ano de 1947, Rita era filha do dentista Charles Fenley Jones, membro de uma família de imigrantes do Sul dos Estados Unidos, e da pianista Romilda Pádua Jones. Em seu livro “Rita Lee: Uma Autobiografia”, publicado pela Globo Livros, ela descreve a infância feliz numa casa em que o pai, sério, severo, carinhoso, mas algo distante, destoava da maior parte da população: todas eram mulheres com personalidades variadíssimas, sendo Rita a caçula das três irmãs. 

Os dotes artísticos, diretamente herdados da mãe, ganharam um toque que só a sempre rebelde Rita poderia ter dado. O instrumento que ela decidiu estudar, aos 15 anos, era tudo menos comum para uma menina dos anos 1960: a bateria. Era o começo de uma estrada que não poderia derivar em outra coisa, senão no sucesso na música. 

Em 1966, fundou com os irmãos Arnaldo e Sérgio Batista uma das bandas mais influentes da história do rock brasileiro, Os Mutantes. No ano seguinte, acompanhando o já famoso Gilberto Gil na apresentação da música “Domingo no Parque”, segundo lugar no III Festival da Música Popular Brasileira, veio o estouro. Em 1968, foi a vez de subirem ao palco com Caetano Veloso na apresentação de “É Proibido Proibir”, no Festival Internacional da Canção (FIC). 

Nesse mesmo ano, ela e os companheiros de banda assinaram seu primeiro contrato com uma gravadora, a Polidor, para lançar o seminal “Os Mutantes”. A carreira da jovem banda foi intensa mas durou relativamente pouco. Em 1970, pouco depois de os companheiros de grupo participarem como músicos do primeiro disco solo de Rita, “Build Up”, foi anunciada a separação. 

A sequência de discos que ela lançou na fase posterior aos Mutantes, ao longo da década de 1970, como “Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida” (1972), “Atrás do Porto Tem Uma Cidade” (1974) e “Fruto Proibido” (1975), foi o cimento sobre o qual começava a se construir o mito. Os dois últimos álbuns foram parcerias com a banda Tutti Frutti. E, em “Fruto”, além da faixa-título, Rita encadeou hits como “Ovelha Negra”, “Agora Só Falta Você”, “Dançar Pra Não Dançar” e “Esse Tal de Roque Enrow”. Foi um estouro e vendeu mais de 700 mil cópias nos primeiros meses de comercialização. Em 2007, a revista Rolling Stone elegeu o disco o 16º melhor já lançado no Brasil. 

UMA PARCERIA QUE MUDARIA TUDO

Em 1977, ela conheceu Carvalho. E o que veio a seguir foi o início de uma das mais profícuas colaborações do pop brasileiro — gênero que Rita abraçou e ajudou a moldar ao longo da década de 1980. A sucessão de hits que os dois lançaram juntos — “Miss Brasil 2000”, “Mania de Você”, “Chega Mais”, “Doce Vampiro”, “Baila Comigo”, “Lança Perfume”, “Nem Luxo Nem Lixo”, “Banho de Espuma”, “Flagra”, “Cor de Rosa Choque”, “Bwana”, “Pega Rapaz”, “Perto do Fogo”, entre tantíssimas outras — fala por si. 

Com uma mistura de ritmos e um caldeirão de influências que faz jus à diversidade paulistana, a big mama do rock elevou o gênero a outro nível, ajudando a tirá-lo do underground, abrasileirando-o e fundindo-o ao pop de um jeito único. Santa Rita de Sampa fez o milagre da multiplicação do rock e, sobretudo, das roqueiras brasileiras, que surfaram suas ondas e desfilaram por avenidas abertas por ela.

Mas nem tudo foi fácil. Rita enfrentou barras pesadas logo no início de sua carreira, principalmente por dois fatores: ser uma mulher no mundo predominantemente masculino do rock e ousar defender a liberdade durante a ditadura militar. Foi presa em 1976, para servir de exemplo a outras como ela. Afinal, uma mulher livre e dona do seu nariz, cantando o que bem entendia, era um grande perigo para os militares.

Rita e Roberto no sítio dos dois no interior de São Paulo, em foto sem data

NA DITADURA, PRISÃO, PERSEGUIÇÃO E CENSURA

Na época em que passou alguns dias presa e foi condenada a um ano de prisão domiciliar, ela estava grávida de Beto Lee, seu primeiro filho com Roberto de Carvalho, e teve a ajuda inesperada de outra grande da música brasileira.

“Fiquei grávida e fui presa. Foi um carma louco. A primeira vez que engravidei na vida fui presa inocentemente. Naquela época dos festivais da Record, Mutantes, Tropicalismo, Elis (Regina) passava pela gente virando a cara. Ela fez parte daquela passeata contra o uso da guitarra elétrica na música brasileira. A última pessoa que eu esperava que fosse me visitar na cadeia era a Elis. (Foi) quando o carcereiro falou ‘oh, ovelha negra, tem uma cantora famosa aí que está rodando a baiana, dizendo que vai chamar a imprensa. Ela quer te ver’”, riu-se Rita, ao relembrar a história durante uma live com o cantor Ronnie Von em 2020.

Como expresso em documentos do regime militar, organizados no livro “favoRita” (Globo Livros), a paulistana foi a criadora musical brasileira que mais sofreu com a tesoura dos censores. Farta documentação produzida no processo de cortes e vetos às suas letras atesta: Rita era vista como uma mulher perigosa por questionar os papéis sociais, comportamentais e políticos.

Um dos exemplos de marcação cerrada a Rita está em “Saúde”, disco de 1981 da dupla Lee & Carvalho. Eles compuseram 25 músicas para conseguirem que a censura liberasse oito. Ainda assim, com ressalvas. “Banho de Espuma”, hit indiscutível da série “canção erótico-biográfica” do casal, quase não foi gravada. 

Na primeira versão, batizada de “Afrodite”, a censura implicou com tudo, título e letra. Diziam os censores em documento oficial: “É transposta a barreira da conveniência, com um mergulho mais fundo no erotismo”. Rita, então, mudou a letra: trocou “em qualquer posição” por “com toda disposição”; “bolinando”, por “esfregando”; e o título foi de “Afrodite” para “Banho de Espuma”. Passou depois de três recursos. Várias outras – do “Saúde” e de tantos outros discos – não tiveram a mesma sorte. Permaneceram com o carimbo de vetado e acabaram nunca sendo gravadas.

Chama a atenção que os militares a quisessem colocar no seu “lugar” como mulher. Espiritualizada, Rita disse, certa vez, que esta foi sua primeira encarnação como mulher na Terra.

“E, se tiver que voltar, que seja como mulher novamente”, resumiu.

Afinal de contas, como ela canta em “Cor Rosa Choque”, com a ironia e a irreverência que marcam boa parte de suas músicas, o “sexo frágil” não foge à luta. Na letra, Rita ainda usa e abusa do bom humor para demolir visões ultrapassadas. “Mulher é bicho esquisito/ todo mês sangra”, canta um pouco à frente, em um verso que, como ela lembra, deu trabalho para ser liberado pela censura.

Se, naquela música, Rita cantou a menstruação, pouco mais de 10 anos depois ela mexeu com outro tabu, a menopausa. Na canção “Menopower”, brinca com as palavras para empoderar as mulheres de meia idade que enfrentam com bravura a série de mudanças físicas e psicológicas que marcam essa fase da vida. Desafia, portanto, de novo, os papéis reservados pela sociedade a elas. “Menopower/ Pra quem foge às regras (...)/ Melancólicas/ Vocês são piegas”, sentencia.

O segredo para captar a empatia imediata de quem a ouve é simples: Rita escreveu e cantou sobre ela mesma, suas vivências, deixando claro seu olhar sobre o mundo e as coisas. Essa transparência cativa gerações em sequência, garantindo à cantora e compositora uma contínua renovação de público. 

E de fãs entre as novas artistas nacionais também. De Pitty a Letrux, de Felipe Catto a Luisa Sonza, de Manu Gavassi a Duda Beat, não há cantora brasileira de gerações posteriores a Rita que tenha militado no pop rock e não a considere “a” influenciadora. A rebeldia e a naturalidade que sempre transmitiu em suas letras, o fato de ter assumido as rédeas da própria carreira há várias décadas, sem dar bola para tendências de mercado, e a atitude pessoal da “mãe do rock brasileiro” deixaram marcas. 

“A Rita é muito mais que só uma lenda do rock. Eu acho que ela é uma das maiores artistas que nosso país já teve, em termos de potência criativa e feminina. É por isso que me emociona muito falar da Rita, e por isso que eu sou muito grata de ter esse exemplo que fala minha língua, em meu próprio país, uma brasileira que fez tudo isso, que brincou com a arte, de diversas formas, construindo um legado só por produzir, por vocação, né?”, resumiu Gavassi à edição de novembro passado da revista Rolling Stone, toda dedicada à artista.

Em declarações à UBC, Fernanda Takai, outra artista que teve Rita como referência, deixou uma despedida emocionada: 

"Ô, Rita... não deu pra gente se encontrar pessoalmente nos últimos anos, mas saiba que você sempre esteve com a gente nos palcos, nos nossos shows, com suas canções encantadas. Você foi uma estrela brilhante por aqui e, agora, estará viajando pelo Universo, mais presente do que nunca em nossas vidas. Um beijo. E não comporte-se!"

Paula Lima, presidente da UBC, da qual Rita era associada, também homenageou uma das mais importantes compositoras do pop-rock nacional.

"Rita Lee, ícone, referência, inspiração. Rainha entre as mulheres, uma mulher genial, amorosa, politizada, com um humor delicioso, absolutamente generosa. Nossa voz! Que dor… uma profunda tristeza. Como fã, sempre a admirei. Quando a conheci, a amei ainda mais. Que mulher! Revolucionária, feminista, livre. Que grande sorte tivemos todos de vivenciar essa existência tão orgânica, tão única e tão mágica. Saudades já. Um imenso obrigada por tanta grandiosidade e poesia. Um legado maravilhoso e admirável. Te amo, te amamos, pra sempre."

Manuel Abud, presidente da Academia Latina da Gravação, responsável pela entrega do Grammy Latino — que, em sua última edição, homenageou Rita Lee — foi outro a lamentar a morte. 

"Rita Lee foi uma artista visionária e uma das cantoras-compositoras de maior sucesso na história musical brasileira. Ganhadora do Grammy Latino e indicada em múltiplas ocasiões, a 'rainha do rock brasileiro' desencadeou o movimento Tropicália com os grupos Os Mutantes e Tutti Frutti. Nossas sinceras condolências à família, amigos e todos os amantes de sua música. Descanse em paz, Rita Lee!"

O cantor e compositor Simoninha também enviou à UBC uma homenagem a Rita num texto exclusivo: 

"Rita Lee. Mulher poderosa, mulher forte, ao mesmo tempo doce, intensa. Representou tão bem as mulheres, o rock 'n' roll, representou tão bem tantas coisas da música brasileira, Mutantes, Tutti Frutti… Junto a Roberto de Carvalho, uma obra espetacular. Que poder. Maravilhoso.

Uma das coisas que me marcaram muito, logo após a morte do meu pai, em uma homenagem durante uma apresentação, foi que Rita me chamou de canto e me contou algumas histórias dele. Uma foi especial. Na canção 'Festa de Arromba', ela faz uma citação em que diz '…o velho e chato Simonal…'. Era uma frase que, quando eu era criança, me deixava chateado. E ela explicou que o real motivo de ter cantado assim é que era a única maneira em que podia se referir a meu pai na época. Era proibido se referir a ele. E, para ela, ele era um artista fundamental para a música brasileira. Guardo com carinho suas palavras.

Sou um fã e também um dos milhões de filhos de sua música. Viva Rita Lee."

LEIA MAIS: Reveja a reportagem de capa da mais recente edição da Revista UBC, sobre Rita


 

 



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