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Duas décadas que mudaram tudo na indústria da música
Publicado em 14/07/2023

Especialistas comentam aspectos artísticos, técnicos e financeiros da revolução digital, tema de livro que mapeia a produção brasileira atual

Por Eduardo Lemos

Detalhe da capa do livro "Avalanche - A Revolução do Streaming - 51 Nomes Para Conhecer a Novíssima Música Brasileira"

Os Boogarins lançaram a música "Avalanche" no ano de 2015. Estávamos no meio do caminho da década que inaugurava uma nova era para a indústria da música. O motivo? A revolução digital, que democratizou as ferramentas de gravação, ampliou os modelos de divulgação através dos blogs e redes sociais e consolidou o streaming como principal meio para se escutar música no Brasil e no mundo.

As redações dos jornais brasileiros passaram a receber um sem-fim de emails que anunciavam novos artistas e seus lançamentos. Marcelo Monteiro, na época trabalhando no jornal O Globo, e os colegas Ricardo Calazans e Eduardo Rodrigues propuseram ao jornal  criar em 2012 o blog Amplificador, 100% dedicado aos novos sons contemporâneos brasileiros.

Foi a semente de 'Avalanche - A Revolução do Streaming - 51 Nomes Para Conhecer a Novíssima Música Brasileira', livro que Monteiro lançou há pouco sobre a influência da tecnologia na geração 2010-2020. Na obra, o autor mapeia o melhor da música contemporânea brasileira e os impactos da revolução digital na indústria fonográfica. 'Avalanche' está em campanha de crowdfunding até o próximo dia 22 de julho (link: https://www.catarse.me/avalanche#about

"A década 2010-2020 foi a da consolidação do streaming, inaugurando uma nova forma se produzir, consumir e monetizar música. Foi a década também de crescimento dos festivais de médio porte, da transformação e consolidação do midstream, essa nova forma digital de movimentar a indústria e circular os sons nas plataformas, mídias sociais, blogs, sites de música, a afirmação de uma nova maneira de viver de música sem precisar seguir a cartilha em que praticamente o único caminho eram as gravadoras", ele comenta.

Transformações profundas

Tanta mudança em tão pouco tempo gerou sentimentos conflituosos nos profissionais da música.

"Não dá pra mentir e dizer que não foi confuso", admite Heloisa Aidar, atual executiva da Altafonte e que, na década passada, empresariou artistas como Tulipa Ruiz e Mariana Aydar e foi sócia da distribuidora Pommelo. "No começo, era difícil entender como superaríamos a pirataria, e foi difícil abrir mão do físico. Imagina, eu tinha uma distribuidora! No meu caso, precisei levar o meu primeiro grande calote para entender que não havia mais a possibilidade de seguir naquele caminho.”

Heloisa Aidar
"Efêmera", o hoje clássico álbum de estreia de Tulipa Ruiz e que aparece com destaque no livro, foi lançado em 2010.

"Acho que com a Tulipa eu senti muito mais as consequências do digital nas nossas vidas. Entre um lançamento e outro, tudo mudava. Passamos pela fase de não acreditar, depois de ver como terra de ninguém, até que entendi o que estava por acontecer e como poderíamos nos posicionar dentro daquele novo universo. Foi uma época em que a nossa forma de trabalhar mudou muito", recorda Aidar.

Outro disco listado em "Avalanche" é Camaleão Borboleta (2015), do grupo mineiro Graveola. Para um dos fundadores da banda, o músico e compositor Luiz Gabriel Lopes, a mudança no hábito de consumo da música foi algo que essa geração "vivenciou na própria carne".

"O primeiro disco do Graveola é de 2008. Eu lembro de a gente ainda testemunhar a importância de vender disco físico. Mas logo veio o MySpace, que nos trouxe uma ampliação do público para além de Minas Gerais. A banda só foi ganhar alcance com a internet.”

Luiz Gabriel, do Graveola

Um computador e um fone

E foram muitos artistas que decolaram. Na pesquisa para o livro, Marcelo Monteiro viu que seria impossível limitar a 51 o número de artistas citados.

“Cheguei a uma marca surreal de 306 artistas, os 51 com perfis mais 255 artistas recomendados. Sem nenhuma forçada de barra, diga-se de passagem, deixando alguns bons sons de fora. Qual outro país tem tamanho volume e diversidade?"

Tamanha variedade e quantidade só foi possível porque, entre os anos 2010 e 2020, os meios de gravação e produção ficaram cada vez mais baratos e caseiros - no melhor sentido da palavra. Um bom exemplo é o avassalador primeiro EP dos Boorgarins, "As Plantas Que Curam", inteiramente gravado em casa.

"A principal mudança que eu vi nessa geração foi o músico se tornar produtor, sem depender tanto de engenharia e equipamentos. Passou a ser possível um artista ir longe com apenas um computador e um fone", diz o produtor Beto Villares, responsável pela sonoridade de álbuns essenciais do período, como "Vagarosa", de Céu, e "Taurina", de Anelis Assumpção.

O produtor Beto Villares. Foto: Mari Queiroz

Em direção ao futuro, mas reverenciando o passado

Romper com as antigas classificações de gêneros musicais e misturar sonoridades é um dos legados que essa turma de artistas deixou para a geração atual. A jornalista e pesquisadora musical Pérola Mathias começou a escrever críticas de discos e shows em 2015, quando criou o blog Poro Aberto. Acompanhando de perto a cena, ela vê uma diferença crucial entre a geração 2010 e a anterior.

"Essa geração 2010-2020 conseguiu dialogar melhor entre si e com relação aos estilos que estavam explorando", destaca.”Também dialogam com as gerações mais antigas, pelo menos a dos anos 1970. Construíram uma ponte mais sólida do que os que vieram imediatamente antes.”

É, de fato, uma geração que aponta para o futuro sem deixar reverenciar passado - e, talvez, o trabalho que melhor sintetiza essa mistura é o samba torto que saiu da parceria entre Elza Soares e músicos de São Paulo como Rômulo Froes, Rodrigo Campos e Kiko Dinucci, e que gerou um dos grandes acontecimentos musicais dos anos 2010, o álbum “A Mulher do Fim do Mundo”.

Pérola Mathias

Passado e presente também estavam em harmonia dentro dos estúdios.

"Se você fizer um paralelo entre a primeira e a segunda década dos anos 2000 em relação à produção fonográfica, poderá perceber que, na primeira década, os discos eram mais pós-produzidos, editados ao extremo, quase assépticos", observa o músico, compositor e produtor Gustavo Ruiz, que assina discos de Trupe Chá de Boldo, Ava Rocha, Liniker e de Tulipa Ruiz, sua irmã. "Tive a sorte de trabalhar com produtores que, mesmo nesse período, não deixaram o analógico de lado. Quando a produção musical se tornou parte do meu cotidiano, o meu pensamento processual  já estava mais voltado para um interesse híbrido em usar o analógico e o digital a favor da música (no intuito de obter o melhor resultado em captação, arranjo e sonoridade) do que da hiperedição e pós-produção.”

Um dos profissionais mais requisitados pela música brasileira quando se trata de masterização, Felipe Tichauer calcula ter trabalhado em cerca de 300 álbuns nacionais entre os anos de 2010 e 2020. Com a experiência de quem também masteriza para outros mercados, incluindo Estados Unidos, onde vive, Tichauer elogia especialmente a produção brasileira do final da década passada.

Gabriel Ruiz ao lado da irmã, Tulipa

"Acho que ali a produção pop no Brasil melhorou muito: o sound design, a mixagem, muitos produtores novos que entenderam essa linguagem do pop mundial", observa.

Legado, desafios e o futuro

O efeito das transformações daquela década ainda hoje estão sendo contabilizados. Há, é claro, um maior imediatismo, seja no consumo de músicas - hoje, mais de 100 mil novas faixas chegam ao Spotify todo dia -, seja no próprio processo artístico.

"Eu sinto que mudou a velocidade com que as pessoas querem os produtos de volta. Passou a existir uma urgência", observa Tichauer.

Para Luiz Gabriel Lopes, do Graveola, a tecnologia beneficiou sua geração ao "propor um funil menos elitizado para quem queria gravar e lançar", mas também levou embora uma relação mais profunda entre ouvinte e obra.

Felipe Tichauer

"Um dos problemas é que, com a chegada das plataformas, entramos num monopólio do streaming, como se ele fosse a única forma possível de ouvir música, o que de fato não é. Ainda existem pessoas que ouvem música em fita cassete, CDs, vinis etc. Mas o mercado tem essa tendência de estabelecer coisas das quais é muito difícil de você fugir.”

Outra herança da década passada é a (baixa) remuneração dos artistas pelas plataformas digitais, um problema que não parece próximo de ser resolvido. "Em todo o mundo, permanece o dilema sobre como distribuir todo o volume de dinheiro do streaming de forma justa e proporcional entre gravadoras, plataformas, músicos, compositores, editoras e demais profissionais. Essa é uma questão superimportante e que merece ainda muito debate", reforça Monteiro.

No entanto, "olhando pelo copo meio cheio", o jornalista avalia que as plataformas de música foram essenciais para que artistas independentes formassem uma base de fãs que não seria possível no modelo antigo.

"O streaming funciona também como engrenagem fundamental na indústria para circulação de sons numa jukebox quase infinita de sons à disposição. São essas músicas e esse público, que talvez não ouvisse, não comprasse CDs nem chegasse a conhecer algumas bandas, que acabam formando público para shows e festivais. Cada artista tem seu ponto forte para se manter. O rap, por exemplo tem números maiúsculos nas plataformas, rivalizando inclusive com sertanejo e pop. Outros têm o streaming como aliado para formar púbico e ganham o grosso do faturamento com shows, merchandising, lojinhas, Bandcamp, Twitch…”

É também a visão de Heloisa Aidar.

"O digital permitiu novas pontes, mais acessíveis, entre artistas e público. Se, hoje, eu quero escutar um artista de Roraima com 100 ouvintes mensais que minha tia viu em um restaurante, muito provavelmente eu consiga. Isto nunca seria possível antes. Este artista vive dos plays? Óbvio que não. Na minha opinião, a democratização do acesso à música não se refletiu na democratização do recurso financeiro que a indústria da música gera. Estamos no ponto final e ideal? Longe disso. Pode ser mais transparente, pode ser mais justo, pode remunerar melhor. Mas já atravessamos uma parte do caminho.”

Marcelo Monteiro, como ela, é otimista. Para ele, a avalanche tende a terminar em final feliz:

"Até a próxima revolução, tenho certeza de que um número enorme de artistas vai chegar ao midstream.”

 

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