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Lia de Itamaracá, aos 80 anos: ‘Ainda quero seguir com minha ciranda’
Publicado em 12/01/2024

Um papo com a representante máxima da ciranda no país, que faz aniversário nesta sexta, cheia de planos para novas turnês e projetos

Por Michelle de Assumpção, do Recife

Fotos de Ytallo Barreto

Maior voz da ciranda brasileira, Patrimônio Vivo de Pernambuco, Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Prêmio Tradições UBC 2023. Lia de Itamaracá negritou a história da cultura popular brasileira, sendo hoje uma de suas grandes representantes. Nascida Maria Madalena Correia do Nascimento, há exatos 80 anos — celebrados nesta sexta-feira (12) —, filha de uma empregada doméstica e de um agricultor, Lia conta que desde muito nova sabia que seria uma cantora. Com seu canto potente e inconfundível, entoa cirandas clássicas que embalam as danças brasileiras desde os anos 70, quando estreou profissionalmente no palco, para nunca mais sair dele.

 

OUÇA MAIS: Uma playlist especial com canções de Lia de Itamaracá, com curadoria de Ronaldo Bastos e Leo Pereda

A artista começou sua trajetória revolucionando o próprio fazer da ciranda. Num tempo em que eram homens que ditavam o tom da brincadeira — fazendo do improviso característica imprescindível —, foi ela, mulher, negra, ilhéu, quem subiu ao palco decidida a ser a maior intérprete do gênero. Saiu vitoriosa do primeiro festival de Cirandas de que participou, em 1974, no Pátio de São Pedro, celeiro dos maiores cirandeiros do Recife. Sua presença, sua voz e sua ciranda iriam ultrapassar os limites do seu território e conquistar o mundo.

Humilde, destemida e determinada, Lia foi trabalhar na cozinha do Bar Sargaço, na praia de Jaguaribe, bairro mais popular da Ilha de Itamaracá. Conciliava sua paixão pela música com a necessidade de sustentar a casa. Cozinhava durante o dia e, à noite, promovia as cirandas para os veranistas — e outros que passaram a visitar a ilha só para dançar sua ciranda. Mais tarde, aceitou, agradecida, um trabalho como merendeira numa escola local, mantendo-se nessa função até se aposentar.

O primeiro disco veio em 1977, quando raros artistas da cultura popular conseguiam registros fonográficos de suas criações. Apesar do grande sucesso de mídia, o álbum é uma experiência frustrante para Lia, que conta nunca ter recebido da gravadora pagamentos referentes aos direitos autorais de suas composições para o trabalho.

O cenário mudou nos anos 90. O movimento Manguebeat, liderado por Chico Science, descortinou toda uma geração esquecida de importantes artistas populares, do coco, do maracatu e da ciranda. Artistas como Mestre Salustiano, Selma do Coco e Lia de Itamaracá entraram no radar de festivais de música pop, eventos privados, gravadoras e agentes de circuito de shows internacionais.

Lia voltou à cena grandiosa, a partir de uma apresentação memorável no festival Abril pro Rock de 1998. Sua imagem estampou a capa de importantes cadernos culturais do país daquele ano. A cirandeira havia sido ovacionada por uma plateia que provavelmente nunca havia estado numa roda de ciranda.

Vinte anos depois do primeiro disco, ela gravou “Eu Sou Lia”. Na sequência, realizou sua primeira turnê por terras estrangeiras. Foram sete shows em Paris — onde o disco ganhou uma versão por um selo francês —, além de outros em Berlim. A voz da cirandeira foi comparada, em reportagem do jornal francês Le Parisien, à de Cesária Évora, ambas a cantar de forma peculiar as tradições de seus territórios. O jornal americano The New York Times a chamou de “diva da música negra”. No Brasil, críticos musicais a compararam a Clementina de Jesus.

O CD “Ciranda de Ritmos”, em 2008, consolidou a imagem da artista popular que tem a ciranda por base mas transita por gêneros como coco e maracatu. O disco passou a moldar as apresentações ao vivo de Lia, que levaria ao palco uma seleção preciosa de canções populares e tradicionais dos novos ritmos que agora interpretava.

NO AUGE, AOS 80 ANOS - Mais de dez anos foram necessários para a cirandeira gravar um novo trabalho. O álbum “Ciranda sem Fim”, de 2019, é o quarto e mais recente registro fonográfico de Lia de Itamaracá. Com a produção musical de DJ Dolores, a montagem do repertório ofereceu um desafio a Lia: cantar novas sonoridades, indo além da cirandas e cocos, sem se desvirtuar de suas referências fundamentais.

Lançado em CD, vinil e disponível em todas as plataformas de streaming, o álbum apresenta um hibridismo sonoro com execuções orgânicas da banda tradicional de Lia, em harmonia com beats eletrônicos, guitarra, bateria e canções contemporâneas.

Quando completa 80 anos, Lia de Itamaracá continua a evocar resistência e a beleza de um Brasil que, como dizia Naná Vasconcelos, não conhece o Brasil. Sobre sua história e sua produção sempre atual, ela falou à UBC.

 

Lia, por muito tempo sua existência foi desconhecida das pessoas. Elas ouviam sobre uma tal “Lia de Itamaracá, que faz cirandas à beira do mar”, mas não sabiam exatamente quem era essa Lia. Como começa sua história?

LIA DE ITAMARACÁ: Minha mãe era simplesmente uma empregada doméstica. Meu pai, um agricultor. Dona Matilde da Conceição e seu Severino Nicolau. Era uma mãe amiga, um amor de mãe. Na casa onde fui criada, ela trabalhava lá com os filhos todos. Quando veio da Praia do Sossego, depois que meu pai deixou de ajudar, ela soube de uma família que estava precisando de uma pessoa para trabalhar. Minha mãe foi com a gente. A gente praticamente morou nessa casa, ajudava nos afazeres. Meu pai era casado com outra mulher. Meu pai nunca viveu com a gente. Duas famílias. A primeira foi com 11 filhos e, com minha mãe, teve sete. Ele às vezes vinha ver e trazia macaxeira, inhame, batata, amendoim, o que ele plantava dava à gente. Mas depois deixou de dar.

Nessa infância difícil, não teve referências diretas na arte ou na música. Como a arte entrou na sua vida?

O que tenho é o dom que Deus me deu. Era o que eu queria fazer. "Quero ser isso, cantora." Via as festas de padroeiro que chegavam na ilha: “Deus, me ajuda pra poder ser isso.” “É só ter fé e seguir.” Eu queria ser alguém na vida, e não levar minha vida todinha na cozinha dos outros. Um talento daquele que Deus deu, aquela voz que eu sabia que tinha, na cozinha dos outros? Não tinha futuro. Daí, eu cantava muita besteira de pastoril, cantava em casa. Quem fazia pastoril na ilha já morreu. Ainda tem pastoril de mulheres, pastoril infantil. Foi isso que abriu meus olhos. Aqui era coco de roda, era cavalo-marinho, que é muito diferente de ciranda. Fandango, que também é muito diferente.

E mais ninguém na sua família cantava ou tocava?

Só tinha relação com as pessoas que me criaram. O resto era pescador e tirador de coco. Não era o que eu queria. Essa família, que foram os patrões de minha mãe, me apoiou e deu educação. Eu chamava o patrão dela de painho. Ele queria me botar para estudar música, mas não aconteceu. Dizia muito que eu não desistisse, que enfrentasse, se era o que eu queria fazer, que eu fosse em frente, e que não fosse pela cabeça de ninguém. Eles não foram cruéis, tive uma boa criação. Me criaram, me educaram, tanto a mim como a meus irmãos. Mas ninguém tocava ou dançava. Só eu quis essa vida de artista.

A ciranda mudou muito, desde que começou a cantar até os dias atuais?

As cirandas continuam falando de amor, do mar, dos pescadores, da vida simples das pessoas. Tenho música que cantava no começo e canto até hoje, de Antônio Baracho, de Capiba e de outros cirandeiros de Recife. Quando quero uma música de um compositor, eu procuro eles. Às vezes eles querem saber se eu quero aprender uma música deles e me procuram. Tem várias letras aí que Beto (Beto Hees, seu empresário e produtor) escreve pra ver qual eu quero aprender, se vou gostar. Antigamente a ciranda era feita com um pistão, ganzá surdo, tarol. O sopro mesmo era só um pistão. Depois foram botando trompete, trombone, saxofone. Depois que eu conheci Beto, a gente foi melhorando a banda e botando mais trompete, para adoçar.

Ao longo desses mais de cinquenta anos de carreira, a senhora conquistou espaços e plateias de várias gerações e gostos musicais. Um show de ciranda seu já foi ovacionado num festival de rock, o Abril pro Rock. Como explica isso?

Já fiz participações em palcos de artistas que cantam coisas diferentes. Pra mim, é muito importante. Quanto mais eu chego no meio desse povo, melhor. A ciranda está no meio dos roqueiros e de todo tipo de público. A ciranda é uma dança de roda, que pega das crianças aos adultos. A ciranda não tem preconceito, dança preto, dança branco, dança rico, dança pobre. É só seguir o andamento, o passo da ciranda acompanha a onda do mar, o pé esquerdo é que marca. A ciranda é uma coisa bacana, por isso aonde eu vou as pessoas aprendem rápido. Dizem uns que ciranda vem de África, outros dizem que veio de Portugal. Não sei de onde foi que veio, só sei que chegou por aqui e eu consagrei.

Durante uma apresentação na Womex, uma das principais feiras de música do mundo, originária da Alemanha

Como se sente agora aos 80 anos, com todas essas homenagens que está recebendo?

Muito agradecida, muito feliz, muito satisfeita. Me sinto maravilhosa porque eu sempre digo que homenagem boa é com a gente viva. E eu estou aqui, forte, firme, subindo no palco com a minha banda e levando minha ciranda. No Carnaval vão ser mais homenagens. Vou desfilar em duas escolas de samba que vão contar a história de Lia. Império da Tijuca, no Rio, e Nenê de Vila Matilde, em São Paulo. Vou receber também homenagem do Carnaval do Recife, de Pernambuco, da Ilha de Itamaracá e de Natal. Tá bom ou quer mais? Ai, mamãe! Também queremos reabrir o Centro Cultural Estrela de Lia, em Itamaracá, ainda este ano, para fazer mais shows e, também, oficinas de música, de artes, trazer outros artistas. E, se tudo der certo, vamos para mais uma turnê internacional.

Quais sonhos ainda quer realizar?

Tocar em algum lugar que ainda não toquei. Ir para a África. Eu já conheço um monte de lugares. Quando viajo, vejo coisas que nunca sonhei em ver. Nunca imaginei chegar nesses lugares. E cheguei. Com um bom produtor do meu lado, ganhei o o mundo, para levar a cultura do Nordeste pro Norte e Sul do país. É um peso danado, mas eu levo e trago. Nunca imaginei. Achava que ia ficar por aqui mesmo, mas o trabalho que fiz foi pra sair, não foi pra ficar. Meu sonho era que minha música me levasse pro mundo, e levou. Lá fora, muita gente conhece e aplaude Lia. Mas eu ainda quero ir a mais lugares. Enquanto Deus permitir que eu esteja viva, quero seguir com a minha ciranda.

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