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No Setembro Amarelo, Kell Smith fala à UBC sobre depressão e cura
Publicado em 16/09/2024

 ‘O melhor investimento que fiz em mim foi na minha saúde mental’, diz cantora e compositora que abraçou o tema como uma missão

Por Alessandro Soler

Poucas carreiras são tão expostas ao julgamento cruel das redes e à pressão por “sucesso”, “boas métricas” e outras medidas duvidosas de êxito como a música. Estudos pré-pandemia no Reino Unido e na Suécia já encontravam dados preocupantes: até 73% dos profissionais que atuam tanto na composição/produção e nos bastidores como sobre o palco tiveram que lidar com ansiedade ou depressão em algum momento da vida. Não há razão para crer que isto tenha mudado para melhor.

Como em outras muitas ocasiões, para conscientizar sobre o suicídio e a depressão entre profissionais da música, a UBC volta a falar sobre o Setembro Amarelo, uma campanha global dedicada à prevenção e à correta abordagem dos transtornos mentais. E, neste 2024, a associada Kell Smith é quem traz mensagens de esperança. Afetada por uma forte depressão justamente enquanto estourava com seu primeiro grande hit, “Era Uma Vez”, lançado em 2017, a cantora e compositora teve a sorte de encontrar um tratamento adequado que salvou sua vida, como define nesta entrevista em que destrincha as razões que associa à doença e seu processo de aceitação e cura.

 

Quando pedimos a entrevista contigo para abordar ansiedade, depressão e outros transtornos, você pareceu particularmente empolgada. Por quê?

KELL SMITH: É um tema já recorrente, faz parte da minha vida e da minha carreira. Pra ser objetiva com você, um tratamento de saúde mental salvou a minha vida. Sou uma pessoa autista além de artista, os temas mentais sempre estiveram presentes pra mim. E desde cedo pude entender que, quando você adoece mentalmente, é diferente de quando quebra um braço. (Neste último caso) ninguém te invalida nem pergunta se quebrou mesmo, se é frescura ou se é falta de Deus. Mas, quando adoece mentalmente, sim. Além de toda a dificuldade de aceitar a doença mental, você ainda sofre preconceito, fruto da ignorância, Como esse tema salvou a minha vida, eu o abracei. O que é a missão do artista senão difundir essas coisas?

Como se manifestou esse preconceito ao qual se refere?

Vim de uma familia cristã, missionária. E extremamente pobre. Além dos muros sociais, eu tinha diversas barreiras vindas dos dogmas cristãos que estavam ali na minha familia. Os meus sintomas do autismo estiveram sempre presentes, desde criança, mas só tive um diagnóstico fechado na vida adulta. Meus pais oravam e pediam pela minha cura. Quando, na verdade, eu precisava me tratar. Quando percebi isso na vida adulta, muita coisa já estava acumulada, uma perene sensação de não pertencimento, de estar sempre deslocada. Eu não me sentia de lugar e grupo nenhum. Nem segura pra demonstrar minhas autenticidades e esquisitices. Vivia um acúmulo de tudo isso que eu não sabia verbalizar. Na vida adulta, depois do meu primeiro contrato assinado na música, quando percebi que (a indústria) não era um ‘sonho americano’, como me tinham vendido, aí acho que foi demais pra mim.

Então o gatilho que desencadeou a crise da depressão veio através da indústria?

Nesse mundo, assim como tinha pessoas incríveis, também tinha pessoas horríveis. E, quando você coloca em jogo uma carreira, a tua arte, coloca em jogo também a tua vida. Me vi numa situação em que minha vida através da minha arte estava comprometida. E novamente eu via que não encaixava. Na vida pessoal eu já convivia com o não pertencimento. Quando cheguei ao mercado musical e assinei um contrato ruim e fiz parcerias não tão incríveis e me vi pressionada a encaixar e pertencer sem me sentir pertencente, isso me fez chegar a um limite e passar dele. Comecei a perceber que não era normal querer dormir e não acordar. Eu não sabia que já era a depressão, o adoecimento mental. Mas sentia que minha alegria e vitalidade, todos os meus motivos pra sonhar, já não pareciam tão claros e evidentes. Comecei perder o gosto por viver.

O que você fez diante disso?

Procurei, por desespero, ajuda profissional. E esse tratamento de saúde mental, medicamentos e terapia mudaram a minha vida. O ambiente terapêutico tem, talvez, o maior ensinamento que ganhei: um lugar seguro pra ser você, livre de julgamentos. Sabia que aquela pessoa estava ali pra me olhar devagar, me escutar devagar, sem me aparecer com um milhão de soluções milagrosas, sem dizer que era frescura ou falta de Deus ou falta de vontade. E fui descobrindo de fato quem eu era, o que eu sentia, e o poder de verbalizar o que se sente. A gente pode achar que a terapia é pagar pra receber conselhos, mas é ter contato consigo mesma. Tudo isso mudou a minha vida e a minha carreira. Eu sou a mão na caneta, a compositora das minhas canções. Conforme ia passando pelo processo, pensava: preciso dividir isso com as pessoas. A minha música tem esse poder, e não posso usar esse poder pra algo sem propósito.

E como elas, as pessoas, reagiram?

Da melhor forma. Não sabia que a música tinha o poder de salvar tanta gente. Eu, que vim de uma familia missionaria, itinerante, que morou no Brasil inteiro, tinha mais que as minhas experiências pra dividir. Tinha a consciência de que, assim como música mudou a minha vida, eu podia mudar a vida de um monte de gente. Descobri que sou instrumento da música, não é ela que trabalha pra mim. Me apropriei de isso. E, desde o inicio, venho abordando saúde mental, autoconhecimento, buscando a coragem de ser real pra inspirar pessoas reais. Por isso é um tema tão importante pra mim.

Além de inspirar e ajudar os fãs, você também acaba alcançando os próprios artistas, tão afetados pela ansiedade, pela depressão. Como espera tocar os seus colegas de música?

Com a maior sinceridade do mundo, eu digo a um artista que sofre isso: não vai diminuir a sua dor fingir algo que você não é. Não vai contentar o teu público muito tempo, porque a gente não pode subestimar as pessoas, elas vão perceber. E, apesar de a gente viver nessa pós-modernidade líquida onde não há verdade ou mentira, cercados de fake news, vidas que não são verdadeiras, marketing, estratégias, o sofrimento é real e afeta todo mundo. Não só o artista. Todos comparamos as nossas vidas às vidas falsas de pessoas que parecem muito melhores e mais fáceis. Tudo isso aumenta os níveis de adoecimento mental e suicidio. Não faz bem pra ninguém, nem pros teus fãs nem pra você. Você, que tem o poder de romper com isso, vai viver uma mentira? È preciso ter coragem de ser real. Como dizia Nina Simone, o artista é reflexo do seu tempo, da sua sociedade. Nesse momento em que precisa-se tanto de nós, o artista vai mentir pro seu público? Cuidado com só fingir o tempo todo. De tanto fingir, pode acabar se esquecendo de quem você é realmente.

Você agora está bem? O que mudou desde a depressão?

Sinto que a minha vida ficou mais leve. Não quero romantizar o processo de autoconhecimento e autoaceitação, mas digo: minha vida ficou mais leve depois que eu assumi quem eu sou. Viver o processo de busca do sucesso é difícil, imagine estando só. Ondas de cancelamento, artistas sem um pingo de saúde mental, por conta dessa exposição e da ideia das pessoas de que, só porque sou figura pública, meus sentimentos e minhas histórias também o são. A pressão pelo sucesso, pelos números que nem sempre refletem a verdade… Tudo isso sobrecarrega o viver. Mas viver já é tão difícil. Não lembro de ser mais fácil quando eu era CLT (risos)! Ou quando pensava: será que mês que vem vou ter dinheiro pra comer? Mas todo mundo pode sofrer, pode se deparar com dores intoleráveis, cada uma a seu modo. Cada dor é única. E é intenso o processo de representar, além da tua própria vida, da tua arte, daquilo que você diz, as pessoas que se inspiram em você.

Ser mulher, autista, mãe autista, ‘mãe’ dos meus pais, vinda de uma familia favelada, que é quem eu sou, tudo isso já me trouxe uma carga de vida forte. E todas as pressões da carreira só aumentaram essa pressão. Sinceramente, o melhor investimento que eu fiz em mim foi cuidar da minha saúde mental. E tudo isso no meio do processo criativo e decidindo o que dividir com o mundo e sorrir e aproveitar as oportunidades que te dão e os espaços.

Olhando em perspectiva, com as ideias organizadas, você consegue contar uma história positiva, de clara superação. Mas não deve ter sido nada fácil lidar com isso enquanto estava exposta a sentimentos tão intensos e negativos.

Quando a minha primeira música aconteceu, eu estava vivendo esse sofrimento. O que me ensinou que nem sempre as melhores coisas acontecem nas melhores fases. A minha ansiedade me fazia viver no futuro. Toda aquela dor não sarada me fazia viver no passado. E eu não tinha tempo pra viver no presente, no agora. Hoje, consigo comemorar as minhas pequenas vitórias e curtir o caminho e entender que é sobre o caminho, e não sobre a linha de chegada. Escrevi numa música: no fim, só tem o fim da corrida. Se a vida é sobre aproveitar o intervalo entre nascer e morrer, que seja vivendo, e não sobreviviendo ou fingindo ser. Precisei de ajuda pra entender isso.

A gente cresce ouvindo que a vida só depende da gente. Isso é repetido tanto que você pensa: se não der certo, eu sou a culpada, porque só depende de mim. E o capitalismo é sobre isso: a vontade desgastante de ter e o tédio de possuir. Nunca acaba, é uma corrida sem fim. Só vou ser feliz quando comprar e conquistar tal coisa. E a felicidade está sempre lá na frente. E você não consegue olhar o céu e curtir as coisas simples que antes curtia. E tudo nunca é suficiente. Não somos mais cidadãos, somos consumidores. Isso faz a panela de pressão estar prestes a explodir.

Que mensagem esperançosa você quer deixar com esse engajamento tão forte no tema da saúde mental?

A gente é tudo que a gente tem. Pessoas precisam cuidar de pessoas. Se eu posso contribuir pra que as pessoas entendam que não estão sozinhas e que, apesar de as dores serem únicas, outros também têm as suas, isso é o sucesso. E não números de vendas ou de plays. Viver é uma experiência coletiva. Fico muito feliz pelo espaço que vocês da UBC me dão sempre pra falar disso. Estou prestes a lançar uma nova música sobre o tema, “Com Acento ou Sem”. Fala de saúde mental, autoconhecimento e da dificuldade que é crescer sem manual de instruções, sabendo que seus pais e avós já precisavam de um e também não o tiveram. Renato Russo definiu muito bem: são crianças como você. A terapia me fez perdoar os meus pais por não saberem (todas as respostas). É muito bonita a minha relação de descoberta desse lugar, do perdão. Você pensa: se eu sou o adulto responsável pela minha criança, por que não olhar também pra criança que foram meus pais, meus avós e os pais e avós deles? Olhar pra essa criança e entendê-la, sem julgamentos.

 

VEJA MAIS: Outras reflexões de Kell Smith em entrevista a Celso Fonseca no podcast Palavra de Autor


 

 



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