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Como os megashows estão sufocando os pequenos e médios palcos
Publicado em 30/09/2024

No Brasil, EUA e Europa, apresentações em estádios vivem lotadas, mas as de espaços mais intimistas estão lutando para sobreviver

Por Eduardo Lemos Martin, de Bath, Inglaterra

"Em 2019, a gente operava com uma margem de lucro de 25 a 30%. Mas agora é literalmente apenas 3%." Quem diz é Tom, dono de uma pequena casa de shows na Flórida, Estados Unidos. Ele é o personagem principal de uma videorreportagem produzida pelo site Perfect Union e que tem rodado as mídias sociais nos últimos dias. 

Tom é um dos sobreviventes de uma crise que assola a indústria musical global: o fechamento de espaços musicais de pequeno porte, considerados primordiais para a renovação da música por apostarem em novos artistas e em performances experimentais.

"Palcos de pequeno e médio porte são uma parte essencial da indústria da música. Representam o que seria o laboratório, o departamento de Pesquisa & Desenvolvimento em outros setores econômicos. É nesses palcos que acontece a inovação", explica Leo Feijó, diretor da Escola Música & Negócios, da PUC-RJ, e mestre em empreendedorismo com ênfase no setor musical pela Goldsmiths, Universidade de Londres

Mesmo com a volta dos shows após o grande tombo causado pela pandemia, estudos mostram que essas casas estão desaparecendo. Só no Reino Unido, que tem uma das indústrias musicais mais ricas do mundo, pelo menos 125 casas de pequeno porte foram fechadas só em 2023, segundo relatório da ONG britânica Music Venue Trust. Os espaços menores que ainda mantêm as portas abertas estão lutando para não fechar: de acordo com o mesmo estudo, 37% fecharam o ano com prejuízo financeiro. 

"Estamos vivendo um grande paradoxo. A indústria fonográfica bate recordes de receita na era digital, e a indústria dos eventos ao vivo recuperou o fôlego pós-pandemia com recorde de festivais e plateias. Enquanto isso, os palcos da inovação musical morrem", alerta Feijó. 

Por que as pequenas casas de shows são essenciais para a indústria da música?

Além de oferecerem espaço para artistas iniciantes ou para performances que não encontram guarida nas casas de shows maiores, o mercado de shows em casas de pequeno porte é fonte de renda para milhares de profissionais da música. Além disso, a maioria desses lugares é administrada por pessoas, e não empresas, o que lhes confere um papel importante na comunidade em que estão inseridos.

"Os efeitos do fechamento de uma casa de shows de pequeno ou médio porte são variados: perdem os artistas que ficam sem espaço, há perdas econômicas (menos empregos para músicos, técnicos, produtores e toda a equipe da casa, portanto menos impostos recolhidos), redução da vitalidade urbana naquela área, com a menor circulação de público, entre outras", aponta Leo Feijó.

A história mostra que não há renovação na música sem uma pequena casa de show envolvida.

"Como existiram os Beatles sem o Cavern Club, em Liverpool? Os Ramones seriam os mesmos sem o CBGB, em Nova York? Os clubes de jazz? Ou mesmo os bares em que a bossa nova ganhou vida, no Rio? Antes do sucesso, Tom Jobim ganhava a vida tocando em um piano-bar em Copacabana", lembra Feijó. 

Se o fechamento de pequenos espaços no Reino Unido tivesse acontecido nos anos 90, possivelmente os irmãos Gallagher seriam apenas dois talentos desconhecidos, e outro inglês, Ed Sheeran, nunca seria uma das atrações principais do Rock in Rio, como aconteceu na última edição. 

"Foi com uma turnê por dezenas de palcos desse tipo grassroots (ou palcos tipo 'raiz') que Sheeran formou a primeira legião de fãs. Em contrapartida, quando olhamos para os palcos em que a banda Oasis tocou em sua primeira turnê, há três décadas, somente 11 daquelas 34 casas de shows ainda resistem. Agora, os irmãos Gallagher farão uma turnê em estádios. Legal. Mas quem financia os palcos raiz?", pergunta o especialista. 

O papel das tiqueteiras e dos megashows nessa história

Em que pesem as consequências econômicas da pandemia e a digitalização da vida social, dois fatores que certamente não ajudam a vida das casas de pequeno porte, há um terceiro vilão nessa história: os megashows, ou concertos em estádios para milhares de pessoas cujos ingressos são disputados a tapa. É comum na Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil, onde até os artistas nacionais, como Skank, Titãs, NX Zero e Natiruts, têm privilegiado grandes espaços como estádios e arenas.

Nos Estados Unidos, os "vilões", na opinião de muitos dos que comentam o tema estes dias em redes sociais, têm nome e endereço: a Ticketmaster e a Live Nation. Antigas rivais, as duas gigantes do entretenimento se tornaram uma só em 2010. Atualmente, a Ticketmaster é a única fornecedora de ingressos para 82% dos anfiteatros de maior bilheteria e 78% das arenas de maior bilheteria nos EUA. Há uma única grande cidade do país sem um megalocal da LiveNation, Portland, e a população tem se manifestado contra a chegada da empresa à cidade por medo de que isso arruine a cena independente local. 

Turnês de grandes estrelas do pop, como Taylor Swift, Drake e Beyoncé, são produzidas pela empresa, que cobra preços caríssimos para shows que se esgotam rapidamente. Esses megashows abocanham grande parte do dinheiro que as pessoas têm disponível para gastar com apresentações musicais. Com isso, as casas de médio e pequeno porte vão ficando sem público. 

Em maio deste ano, o Departamento de Justiça dos EUA anunciou que estava processando a Live Nation Entertainment por “monopolização e outras condutas ilegais que impedem a competição em mercados na indústria de entretenimento ao vivo”. O órgão cita alguns exemplos de más condutas, como impedir artistas de se apresentarem em certos locais, a menos que concordem em usar os serviços de promoção da Live Nation, ou retirar o suporte da Live Nation de locais que optam por não usar a Ticketmaster para sua venda de ingressos.

Aposta no futuro

Se tem muita casa pequena fechando pelo mundo, há tantas outras que estão abrindo as portas, mesmo em um cenário tão desafiador. É o caso do Boca Cultural, em São Paulo. Inaugurado com show de Mariana Aydar em janeiro, o espaço fica no bairro de Santa Cecília, região central da cidade, e tem capacidade para 96 pessoas sentadas e até 300 em pé. Por lá, já passaram nomes como Edgard Scandurra, Flavio Tris e Cida Moreira. A programação vai de terça a domingo. 

"Quando fizemos o planejamento da casa, vimos que seria necessária a venda de alimentos e bebidas para o sustento da operação, porque a venda de ingressos não é capaz de manter a casa e pagar dignamente aos artistas. Trabalhamos com um percentual de bilheteria para os artistas que vai de 70 a 100%, para que eles tenham a remuneração pelo seu trabalho. Nós temos de correr para vender bebida e comida para o público para fechar as nossas contas", diz o empresário Rodrigo Pereira. 

Para Pereira, os megashows não apenas prejudicam as casas menores em termos financeiros, mas também atrapalham a formação de um público interessado em música.

"Nos megashows, as atrações são colocadas dentro de um ambiente  social, onde a pessoa se sente pertencente a um grupo. O que existe cada vez menos é o público de música. As pessoas estão consumindo uma exposição social. Neste sentido, o consumidor prefere pagar mais por estar num megashow, onde ele terá um status maior do que o de ter assistido a um show em uma casa pequena."

Ele também aponta problemas na burocracia brasileira na hora de conseguir suporte financeiro:

"Megashows têm patrocínio e podem pleitear apoios de leis de incentivo fiscal. Uma casa de shows só pode pleitear apoio cultural após 2 anos de funcionamento."

Outros desafios vão desde fazer a programação a lidar com questões legais, passando pela clássica busca por um fluxo de caixa. Mas a maior dificuldade, segundo o empresário, é atrair público. 

"Transformar o público de artistas das redes em público real, que vai até a casa e paga um ingresso. Esse não é um um problema da casa, e sim do mercado musical. Os artistas sentem isso na pele a cada show. O outro desafio é o que eu chamo de 'artista é bolacha de chope': cada vez mais os clientes não querem pagar por um show. Eles querem que o custo do show seja pago pelo consumo. como uma coisa oferecida pela casa. Isso se dá pela formação de público a partir dos bares que oferecem rodas de samba sem custo, e que cada vez são mais numerosas em São Paulo. Um efeito que já acontece no Rio de Janeiro, e que faz com que lá tenha muito poucas casas de shows pequenas. As casas que hoje funcionam bem em São Paulo têm apoio financeiro de empresas de bebida. Acho isso muito triste."

Mesmo com tantos obstáculos, a casa tem conseguido realizar seu papel.

"Não tem artista que não saia daqui agradecendo nosso trabalho de fomentar os jovens artistas, abrir espaço para estilos que nas outras casas de show não entram e também receber artistas que já começam a sair da cena por falta de espaço", finaliza Pereira.

 

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