Ex-diretor da UBC, e criador de quase 130 obras cadastradas na associação, ele sofria de Alzheimer e recorreu à morte assistida na Suíça
Do Rio
Crédito: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras
A música e a literatura brasileiras perdem um grande. Morreu nesta quarta-feira (23) Antonio Cicero. Poeta, filósofo, compositor com quase 130 obras cadastradas na UBC, ex-diretor da nossa associação e ativo defensor do direito autoral e do insubstituível caráter humano da criação artística, ele se despede da vida, aos 79 anos, da mesma maneira em que sempre viveu: com lucidez e dignidade.
Padecendo da doença de Alzheimer, como revelou numa carta enviada a amigos íntimos, ele recorreu à morte assistida numa clínica na Suíça, país onde a prática é legal. Estava acompanhado de Marcelo Pies, companheiro de toda a vida. As informações foram confirmadas pela Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual Cicero era membro desde 2017, e instituição à qual pertencia por direito natural.
A criação de Cicero, desde sempre, foi uma continuidade da tradição ancestral que conecta a poesia e a música. Entrevistado para a Revista UBC #34 depois de ser eleito para a ABL, e cerca de um ano após o também compositor Bob Dylan ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, Cicero não via absolutamente nada de estranho no renovado olhar do mundo literário sobre o musical, manifesto nesses dois reconhecimentos.
“A primeira poesia que se conhece, a da Grécia clássica, era musicada. A própria expressão 'lírica' vem, é claro, de 'lira'. A poesia lírica se apresentava como canções. Os primeiros poetas não escreviam seus poemas; eles os cantavam, enquanto tocavam a lira, durante festins ou banquetes. Às vezes uns bailarinos dançavam durante as apresentações. Como os poemas épicos são muito longos, supõe-se que consistiam numa espécie de 'rap', algo entre o canto e a recitação”, descreveu o compositor de grandes sucessos do pop e da MPB nas vozes da irmã, Marina Lima, do parceiro Lulu Santos e de tantos outros. “Isso prova que um poema escrito não é necessariamente melhor do que uma letra de música. Esse fato foi ignorado durante muitos séculos, mas hoje, quando, por exemplo, no Brasil ou nos Estados Unidos, grandes poetas se dedicam a escrever letras de música, isso volta a ser reconhecido.”
Embora já escrevesse poesia antes de tornar-se letrista, foi a música que impulsionou sua carreira: quando morava em Washington, onde fez pós-graduação em Filosofia, Cicero teve seu poema "Alma Caiada" musicado pela irmã, a cantora e compositora Marina Lima. A canção caiu nas graças de Maria Bethânia, que chegou a gravá-la para o disco “Pássaro Proibido” (1976), mas foi impedida de lançá-la pela censura. Zizi Possi também registrou a música, que saiu no disco “Pedaço de Mim” (1979). No mesmo ano, Marina estrearia com o álbum “Simples como Fogo”, que trazia cinco parcerias com o irmão. Não tinha volta: Antonio Cicero era oficialmente um letrista. E dos (muito) bons.
O número de canções que escreveu ao longo da vida superou o de poemas.
“Uma das razões (para isso) é que, de fato, quando um cantor e compositor que admiro me propõe uma parceria e me entrega uma bela melodia, não resisto e faço a letra para ela. Além disso, vários poemas que publiquei em livros já foram musicados, de modo que também viraram letras de música”, explicou na mesma entrevista para a UBC.
Outras, como “Fullgás”, uma de suas maiores obras-primas em cocriação com Marina, nasceram de manifestos.
“Como a música é a expressão mais viva da cultura no Brasil, é justamente a ela que os caretas tentam impor a sua ‘ordem’. Se nossa música é política? Nossa música é a nossa política”, diz um trecho do texto que deu origem à canção, que em outro momento faz um jogo de palavras entre full-gas (a todo gás, a toda força, em inglês) e fugaz. “Chega de ideais repressivos, cagando regras, fingindo estar acima do tempo e dizendo, por exemplo, que devemos ser heterossexuais ou bissexuais ou que devemos ou que não devemos ter ciúmes… Melhor para nós são a descoberta e liberação dos desejos e gostos autênticos de cada um.”
Para além de Marina, outras parcerias frequentes de Cicero incluíram nomes como Claudio Zoli (em “À Francesa”) e Lulu Santos e Sérgio Souza (em “O Último Romântico”). Em todas elas, o fino pop dançante que marcou as pistas de dança dos anos 1980 com letras diretas, simples e cheias de camadas de significado.
Não que a criação e a influência de Antonio Cicero tenham ficado circunscritas aos 80. Ao longo das décadas seguintes, com novos parceiros, como Adriana Calcanhotto (em “Maresia”), João Bosco e Wally Salomão (“Trem Bala”), Orlando Morais (“O Circo”), ele foi pautando o debate, fazendo dançar, refletir ou, simplesmente, maravilhar-se com a beleza das estrofes que criava. Algumas de suas muitas parcerias foram relembradas por ele quando participou da gravação dos Depoimentos para a Posteridade, do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, onde foi sabatinado por Caetano Veloso, Rosa Maria Barbosa de Araújo, então presidente do MIS, Eucanaã Ferraz, Luciano Figueiredo e Antonio Carlos Secchin.
Na ocasião, Cícero falou sobre as comparações entre poesia e letra de música e lembrou o tempo em que viveu em Londres, quando conviveu com Caetano, Gilberto Gil, Jorge Mautner, o poeta Haroldo de Campos e o compositor Péricles Cavalcanti, entre outros.
A convivência com o compositor baiano começou porque Cicero tinha um grau de parentesco com as irmãs Dedé e Sandra Gadelha, respectivamente mulher de Caetano e de Gil.
“O Caetano tinha essa coisa de absolutamente não fazer nenhuma separação entre 'high culture' e 'low culture', entre cultura erudita e cultura popular. Ele encontrava as coisas às vezes mais profundas exatamente onde parecia ser o produto mais popular”, lembrou Cicero, que compartilhava com o baiano essa mesmíssima característica.
Um de seus poemas mais conhecidos, ”Guardar", dá mostra da profusão de camadas que traziam seus textos. Começava assim:
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la./ Em cofre não se guarda coisa alguma./ Em cofre perde-se a coisa à vista./ Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.”
Com palavras simples e diretas, o poeta fazia um belo jogo de palavras com o italiano, língua na qual guardare significa olhar. Assim era Cicero, cuja produção sempre foi marcado por lirismo e reflexões filosóficas numa linguagem direta, expressa ainda em outros vários livros de poema, como “A Cidade e os Livros” e “Porventura”, além de obras ensaístas, como “Finalidades Sem Fim”, indicada ao Jabuti.
Seu fim, nesta quarta, ocorreu e uma maneira ponderada e serena. Como expressou na carta enviada aos amigos, o Alzheimer já havia lhe tornado impossível manter as atividades criativas: escrever, sequer ler.
“O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.”
Em outro trecho, ele justifica a decisão de interromper a vida.
“Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.”
Uma lucidez e uma clareza que não impedem toda a comunidade artística brasileira de lamentar profundamente sua partida. A presidente da UBC, Paula Lima, o descreveu como “sábio, sereno e humano.”
“Antonio Cicero foi e sempre será um grande e admirável amor nosso. Ter a honra de conviver um tanto com ele foi um grande prazer e um grande aprendizado… Sábio, sereno e humano, notável e inspirado ser, poeta magistral, membro da Academia de Letras, nos deixa o registro do seu genial e amoroso legado. Obrigada por tudo.”
Diretor-executivo a UBC, Marcelo Castello Branco destacou a modéstia de Cicero:
“Antonio Cicero era um amigo, e sua participação na diretoria da UBC foi motivo de muito orgulho e cumplicidade em temas centrais para os direitos autorais. Nos sentimos privilegiados pelo convívio com sua sensibilidade e genialidade modesta, quase tímida. Uma referência eterna. Em nome de todos os colaboradores e diretoria da UBC, manifestamos nosso respeito, imenso pesar e solidariedade para com a família, especialmente Marina Lima, nossa titular e grande parceira da obra de Antonio Cicero, e Marcelo, seu companheiro de vida.”
Outros a exaltar o grande valor de Cicero como artista e ser humano foram Geraldo Vianna, diretor da UBC, e Paulo Sérgio Valle, ex-presidente da associação.
“Neste momento, as palavras são insuficientes para falar do poeta, do homem das palavras com olhar observador e atento às emoções humanas. Para o amigo só posso dizer: Antonio Cicero, o coração está dilacerado”, disse Vianna.
Sucinto, Valle definiu o sentimento de todos:
“Perdemos um dos nossos maiores letristas e um extraordinário poeta. Que tristeza.”
Em seu perfil no Instagram, Caetano Veloso publicou um depoimento emocionado:
"Ao acordar, fiquei sabendo de Antonio Cicero. Recebi mensagem dele, onde a coerência e a lucidez, que sempre foram características do meu amigo filósofo e poeta, impressionam, mas não desfazem a tristeza que sua ausência física me causa. Cicero foi meu melhor amigo, a pessoa mais correta que conheci. O afeto de amizade mais límpido que se possa imaginar. E uma inteligência luminosa. Marcelo, seu marido de tantos anos, deve entender minha tristeza e também meu orgulho pela coerência de Cicero. Sua irmã Marina pôs música em um poema seu e dali saiu um longo e brilhante repertório de canções. Ela também deve me entender. Adoro o desaforado livro de filosofia em que Cicero louva Descartes em época pós-estruturalista. Morrer por decisão própria enfatiza seu pensamento. E sua poesia."
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