Um dos maiores expoentes do rock rural fala sobre as escolhas de uma carreira tão particular, há décadas independente e fiel à sua verdade
Por Alessandro Soler
Fotos de Arnaldo J. G. Torres
Zé Geraldo completa 80 anos nesta segunda-feira, 9 de dezembro. Poderiam ser, perfeitamente, 30. Cheio de vitalidade, planos, ideias e a mesma verdade que marcou toda a sua carreira, este cantor e compositor de Rodeiro, Zona da Mata de Minas — radicado há décadas em São Paulo —, acaba de lançar seu 22º disco, “O Lugar Onde Eu Nasci”. É o 16º independente e, como os anteriores, firmemente ancorado no estilo do qual Zé é um dos expoentes máximos: o rock rural.
De fato, ele se define como um cara da roça — um “roqueiro da roça”, mais especificamente, apelido que surgiu quando se aproximou de outros grandes como Renato Teixeira, Zé Rodrix e Almir Sater. Sua ideia de roça, claro, é muito pessoal. Zé nunca se deixou cooptar pelo gênero dominante no interior do país, o novo sertanejo (atualmente em sua vertente universitária). Nem por qualquer outro tipo de música que não refletisse à exatidão quem ele é.
Teve, e ainda tem, uma carreira prolífica, abundante, que, como se sabe, começou por acaso, depois que um grave acidente de ônibus, em 1966, lhe arrebatou para sempre o sonho de ser jogador de futebol.
“Cheguei a receber a extrema-unção. O cara que viajava ao meu lado morreu. Iam amputar a minha perna, se não fosse por um jovem médico corajoso do interior de Minas que pegou a missão para si e me salvou. Depois de ter passado tudo isso com minha família e meus amigos, ter abraçado a música, ter tido uma história na música que me deixa orgulhoso, eu não mudaria nada. Sou independente há décadas, deixei as gravadoras porque queriam interferir na minha música, no meu estilo, mexer nos meus versos. Meus versos são minha história, cara”, diz numa conversa por videochamada o aniversariante do dia, que está recebendo um presente especial.
Um presente revelado com exclusividade à UBC pelas suas filhas, a cantora e compositora Nô Stopa e a produtora fonográfica Gija. Juntas, elas produziram e gravaram uma música inédita escrita por Nô para Zé, “Caminho das Flores”. O single, que tem Nô na voz e Juninho Serafranny no violão (e também na mixagem e na masterização), fala da relação de pai e filha e tem, na capa, uma bonita foto de Zé com as duas filhas quando eram pequenas.
OUÇA MAIS: O single-homenagem “Caminho das Flores”
Confira a entrevista dele para a UBC.
É impressionante a vitalidade que você mostra aos 80, Zé. Vi um vídeo seu de dezembro passado, tocando no programa do Rolando Boldrin, na TV Cultura, e é sensacional…
ZÉ GERALDO: Eu só lembro da idade quando fico doente. Toquei em Palmas, sábado passado, e depois fui direto para o Espírito Santo. Acabei ficando gripado na segunda. Só lembro assim. Como diz meu amigo Renato Teixeira, a música tem esse poder, principalmente pra gente, que vive no meio de muitas gerações: a gente rejuvenesce. Meu DNA é bom, graças a Deus. A família da minha mãe, de Minas, são todos uns magricelas da canela fina. Com 95 anos, lúcidos, mexendo na lavoura, plantando, colhendo. Tenho atividade física regular, meu período de extravagâncias ficou no passado. Agora, sobre o Boldrin, uma coisa curiosa: ele é um cara do sertanejo antigo, demorou pra me engolir (risos)! Depois, virou um irmão. Mas antes implicava com as minhas guitarras. Uma vez, falou: “tira o baixo e a bateria.” Eu eu: “se tirar, vou ficar parecendo com o Almir (Sater)…” Que hoje, aliás, tem guitarra e baixo (risos)!
Uma marca sua que salta aos olhos é mesmo ter se mantido fiel sempre àquilo em que acredita.
No início, eu era inseguro, me sentia um pouco menor que os demais. Demorei a ter a autoconfiança de dizer “a minha música é essa, é o que sei fazer e gosto de fazer.” Pelo meio dos anos 80, quase parei. Tinha um certo sucesso, mas era um cara mal resolvido. Bebia muito, fumava dois maços de cigarro por dia. E os produtores de São Paulo diziam que eu não tinha público na cidade. Para tocar, tinha que ir longe, eu mesmo dirigindo, os músicos dirigindo… Então, prestes a parar, um amigo meu conseguiu um fim de semana no Sesc Pompeia para mim, em 84. Quando cheguei às sete horas, para a primeira noite, na sexta, vi uma fila que dava a volta na quadra. Perguntei ao segurança o que era aquilo, e ele respondeu: “é o povo que veio te ver.” Fui ao camarim e desmontei de chorar. Foi uma chave que virou a minha vida. Salvou minha carreira, minha família, minha música. Pela primeira vez eu vi como era querido. Peguei a estrada e nunca mais saí dela. Até outro dia minha carta de motorista era categoria D, eu mesmo dirigia (a van ou ônibus). Atravessei esse deserto todo, sempre vendo a multidão cantar meus versões aonde vou. Não apareço na TV, minha música é pouco tocada no streaming. Mas em todo lugar a que vou o show está esgotado, gente me esperando na porta do hotel. O que mais eu posso pedir?
Como resistiu ao canto de sereia do sertanejo? Foram muitos os chamados?
Foram muitos. Uma vez, o presidente da gravadora Copacabana, com o Chitãozinho e o Xororó comemorando o sucesso de “Fio de Cabelo”, me chamou e disse: “Zé, você é um poeta, mas te vejo sempre triste. Está faltando dinheiro? Por que não grava sertanejo, lambada?”. A questão é que eu não me tornei músico para ser uma estrela nem nada disso. Eu me tornei músico e quis aprender três acordes pra poder contar minhas histórias. Não programei nada, não sei ser diferente. Perdi oportunidades, recebi mais de um convite quando as gravadoras estavam investindo forte em gêneros que não eram os meus, mas disse a mim mesmo: quero que minhas filhas sintam orgulho da minha trajetória pela sinceridade dela. Qualquer coisa diferente não seria eu.
E de onde vem essa fidelidade toda ao rock rural?
Meu processo sempre foi um pouco solitário. Quando entrei no meio artístico, eu não tinha turma. Cantava em festivais, em bailes, mas os ambientes são diferentes. O cara que toca na noite é diferente do que tem uma carreira profissional e viaja e tal. Fui solitário porque a música que eu gostava e gosto de fazer não era MPB tradicional, não era rock, não era sertanejo. Eu não tinha turma. A timidez e a insegurança caminham juntas. Todo mundo me elogiava, desde o primeiro disco, mas eu era inseguro. Morei com o Tim Maia um tempo, quando ele voltou dos EUA. Ele percebeu que eu era um cara que podia ter um certo futuro, mas que era um compositor e cantor primário. Ele falava: vai cantar nos bailes, vai cantar nos clubes. E fui. Por nove anos, em São Paulo, fiz esse circuito, e minha música se formatou nesse período. Comecei a tocar rock, folk, blues… Então, a música simples que eu ouvia em Minas, que cresci ouvindo, a antiga música caipira, o sertanejo raiz das duplas antigas… quando percebi, eu estava fazendo um tipo de música que tinha a ver com aquela. Porque a estrutura harmônica do rock, do blues e do folk é simples, três ou quatro acordes naturais, não tem preciosismo. Quando ouvi Bob Dylan, percebi: é isso que eu quero pra mim. O início foi um pouco dificultoso. De repente, o querido e saudoso amigo Zé Rodrix começou a falar que eu fazia rock rural. Sempre me falava isso. Renato, Almir, todos começaram a dizer que eu fazia folk. E então ganhei o apelido de roqueiro da roça.
Como é que está esse movimento do rock rural hoje em dia? Pode-se dizer que ainda existe essa cena?
Não temos espaço, não temos mídia. Mas tem uma galera que está vindo junto. Principalmente porque o rock rural, o termo que o Zé Rodrix inventou, abraça um monte de coisas. Tem uma galera da geração das minhas filhas, e eles me pegaram pra ser padrinhos deles. Folk na Kombi é uma banda muito boa. O Grupo Tuia também. Tem o Chico Teixeira, filho do Renato, tem o Felipe Câmara. Espaço não temos. Mas o público está aumentando. É uma ideia romântica fazer sucesso longe da TV, mas a verdade é que tem uma galera que está acompanhando a gente. Meus shows lotam. E tem uma real mistura de gerações. Outro dia um menino de 15 anos, depois do show, me abraçou, chorando, e falou que eu era o John Lennon dele (Zé se emociona, a voz fica embargada). Não tem preço ouvir algo assim, cara. (Faz uma pausa longa). A música tem um poder de sedução muito forte. A minha linguagem continua a ser jovem.
Você tem composto ultimamente? Como é seu processo de composição? Em geral, mais solitário e sem parceiros, não?
Normalmente eu componho pouco, em termos numéricos. Quando comecei a gravar, vi o Djavan dizendo que, já no primeiro disco ou segundo, tinha umas 50 músicas. Aí o tempo vai passando, e você vai ficando mais preguiçoso (risos). E é isso mesmo. Meu método é particular. Começo a caminhar, vem uma melodia à cabeça… A última coisa é pegar o violão e um pedaço de papel. Na pandemia, achei que não ia escreve nada, me tranquei no apartamento com minha companheira, e os primeiros meses foram muito dolorosos. Mas aí comecei a ligar para um, para outro, fazer live. E, de repente, estava escrevendo. Escrevi muito sobre minha infância, adolescência, o sonho de ser jogador de futebol. E essas músicas entraram no (mais recente) disco. Estou fazendo shows de lançamento. Quando lanço, fico um pouco paralisado, curtindo o filho mais novo. Passados uns três ou quatro meses, um passarinho traz um verso, o vento traz outro, e de repente, quando vejo, já estou escrevendo, começando a ter motivação, mandando coisas para outros artistas que me pedem. Mas meu processo é muito lento. Teixeira escreve todo dia, Paulinho Pedra Azul também. Eu não tenho esse talento, cara. Eu tenho outras coisas. Mas o pouco que eu componho me satisfaz e me deixa feliz. Porque cada música que você faz, e que você acha que está pronta, no teu tempo, é um alívio muito grande e uma sensação muito boa de sentir, a sensação do criador. Eu agradeço sempre por ter esse dom de escrever, contar histórias, porque o que eu sou mesmo é um contador de histórias. As minhas músicas, a maioria, falam da minha vida, das minhas coisas.
Você mencionou a fase em que queria ser jogador de futebol. Já falou muito sobre isso. Ainda dói ter perdido esse sonho? Se pudesse mudar o passado, mudaria algo? Trocaria a música por aquele sonho?
O destino da gente não depende da gente. Depende de forças que vêm de outras galáxias (risos). Eu não mudaria nada. Todo o sofrimento e tudo que passei, que a minha família passou… Cheguei a receber a extrema-unção (depois do acidente de ônibus). O cara que viajava ao meu lado morreu. Iam amputar a minha perna, se não fosse por um jovem médico corajoso do interior de Minas que pegou a missão para si e me salvou. Depois de ter passado tudo isso com minha família e meus amigos, ter abraçado a música, ter tido uma história na música que me deixa orgulhoso, eu não mudaria nada. Sou independente há décadas, deixei as gravadoras porque queriam interferir na minha música, no meu estilo, mexer nos meus versos. Meus versos são minha história, cara.
Você foi um cara muito pioneiro ao abraçar a vida independente em plenos anos 80, décadas antes de que a crise das gravadoras por conta da pirataria obrigasse muitos artistas a pegarem esse mesmo rumo. Quão difícil foi bancar essa escolha?
Foi muito difícil. Eu comprava carros, vendia, e usava essa grana para bancar gravação, estúdio, lançamento. Dezesseis discos meus são independentes. Passei perrengue? Passei. Todo mundo me chamava de louco. Gonzaguinha, meu querido amigo, dizia que eu era um cara louco: primeiro porque abandei a carreira que eu tinha como executivo de Recursos Humanos, nos anos 1970, para me lançar na música. Depois, abandonar as gravadoras para virar independente.
Claro que, olhando hoje, eu faria algumas correções. Não teria fumado muito, bebido muito. Eu era alcoólatra, maltratei pessoas, fiz muita gente sofrer, pessoas que estavam ao meu redor, a mãe dos meus filhos, por exemplo, que hoje é minha amiga. Eu mudaria isso. Mas sobre a condução da carreira em si, não mudaria. (Quando deixei o mundo das gravadoras), eu estava na CBS, o (produtor) Romeu Giosa tinha me levado para lá em 1979. Fiz três discos lá. No terceiro, eu já tinha música em novela, mas os caras não me deixavam fazer programa de TV, fazer coisas. Fui reclamar com o Tomás Muñoz, que era o chefão lá na época, e ele disse “você está nos nossos planos para daqui a três ou quatro anos…” Eu disse: “o quê? Tenho filha pequena, cara, não posso esperar três anos.” Saí para uma gravadora menor e, depois, virei independente. Mas o Muñoz não queria me soltar de jeito nenhum. Foi o Fagner que um dia entrou na sala, enquanto conversávamos, e disse a ele: “pô, presidente, vai querer um poeta triste? Deixa o cara ir embora.” Tive coragem de tomar essas decisões. E não, não me arrependo.
Financeiramente compensou?
Quando eu comecei a gravar, meu intuito principal foi criar e educar minhas filhas. Graças a Deus, consegui um pouco mais que isso. Mas não posso dizer que tenho fazendas, patrimônio. Ainda preciso trabalhar. Tenho saúde e trabalho. Hoje não tenho problema financeiro, graças a Deus. Mas estou longe de ser um cara no mesmo nível de outros artistas. Isso não me deixa chateado, não. Consegui atravessar barreiras que achava que não ia conseguir. Por exemplo, ter um publico que muita gente poderia pensar que é o público fiel de um cara estourado. Pessoas que cantam da primeira à última música. Esse lance de eu ter saúde boa passa por aí também. Quando volto dos shows, volto abastecido, com meu coração abastecido. Tem até invasão de camarim, pessoas na porta do hotel, demonstração de amor de jovens, velhos. Na segunda-feira (seguinte ao show) estou em casa, estou feliz, estou recarregado. É meu patrimônio. Não estou milionário… mas tenho isso aí.
Depois, tem o dinheiro do direito autoral, que pinga, não tanto como antes, porque o sistema mudou. Hoje está tudo no streaming, mudou demais. Tenho uma música, “Senhorita”, com mais de 40 gravações, inclusive no sertanejo, mas já não rende como antes. Depois que entrei na UBC, melhorou. Isso conta muito, me sinto acolhido, não me sinto sozinho.
OUÇA MAIS: As canções de “O Lugar Onde Eu Nasci”