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Morre Preta Gil, aos 50 anos, em Nova York
Publicado em 21/07/2025

Cantora, compositora, atriz e empresária lutou publicamente contra o câncer por mais de dois anos e deixa legado de forte defesa de minorias

De São Paulo

Preta Gil já se aproximava dos 30 anos, em 2003, quando a música tomou conta definitivamente de sua vida, quase como um imperativo genético. Seguir os passos do pai, o grande Gilberto Gil, um dos maiores da criação musical brasileira em todos os tempos, tornou-se um mandato forte demais, que levou a então bem-sucedida publicitária a se arriscar num disco solo, “Prêt-à-Porter”.

A capa já era uma declaração de intenções: nua, parecia deixar para trás os anos de insegurança — em relação ao seu corpo, ao seu talento artístico —, renascendo numa nova vida, que aquela menininha que ela fora, organizadora de frequentes saraus de canto, dança e stand-up comedy para a família em casa, fazia prever.

“Quando comecei a minha carreira, há 20 anos, eu levantava pautas como o empoderamento, que nem tinha esse nome na época. A minha liberdade em posar nua para a capa daquele disco, com o corpo que eu tinha, e me assumir bissexual, uma mulher negra, gorda... Aquilo tudo, há 20 anos, foi um combo de choque para a sociedade”, ela descreveu numa entrevista em 2021. “Não imaginava que ia acontecer a repercussão que aconteceu porque, como sou filha de tropicalistas, filha do Tropicalismo, fui uma criança criada nesse ambiente diverso. Isso sempre fez parte da minha vida.”

Àquele primeiro projeto valente — recheado de composições de amigos, como a cantora e compositora Ana Carolina —, somaram-se outros. “Preta” (2005), com sucessos como “Muito Perigoso” e “Eu e Você, Você e Eu”; “Sou Como Sou” (2012) e “Todas as Cores” (2017) foram seus álbuns de carreira. Paralelamente, também se lançou à carreira de atriz, estreando no mesmo ano do primeiro disco em "Agora É Que São Elas" (Globo). Atuou também em novelas e séries da Record e de canais a cabo como GNT e Multishow.

A cada um dos novos projetos que abraçava, ela foi colocando um novo tijolinho na aceitação de si mesma.

“(Ao longo dos anos), sofri uma enxurrada de racismo, gordofobia, homofobia, machismo, com a qual eu obviamente, em um primeiro momento, não soube lidar. Tentei me enquadrar nos padrões, tentei ser uma pessoa mais de acordo com a opinião alheia. Isso foi muito triste, porque, quando você se rende a essas opressões, se anula como pessoa e se perde”, afirmou.

Preta se encontrou abraçando as multidões. Primeiro, na série de shows “Noite Preta”, que rodou o país e virou CD e DVD ao vivo. Depois, com o famoso Bloco da Preta, que nasceu no carnaval do Rio de Janeiro, arrastou milhões de pessoas a cada edição e se expandiu para São Paulo e Salvador. Também na TV, como apresentadora de vários programas; ou na internet, como influenciadora com mais de 23 milhões de seguidores em redes, ela deixou uma marca de inclusão — de todos os gêneros musicais, todos os tipos de corpos, todas as identidades sexuais — que perdurará.

Em 2021, ganhou o Troféu Raça Negra, por sua luta contra o racismo. Virou referência também no mundo empresarial, ao fundar alguns anos antes, em 2017, a Mynd, a maior agência de marketing focada em artistas e influencers no Brasil. E, nos últimos mais de dois anos, resolveu apontar o canhão de luz para o câncer, um tema ainda tabu entre muitos na sociedade.

Diagnosticada em 2023 de um tumor que afetava a região colorretal, se submeteu a uma cirurgia, foi declarada em remissão, mas voltou a apresentar novos tumores e metástase em agosto do ano passado. Submetida a uma nova e dura intervenção de mais de 21 horas em dezembro, manteve a rotina de publicações em redes, demonstrando positividade e resiliência em cada etapa. Tudo isso enquanto seu corpo ia dando sinais inequívocos de exaustão.

“Não estou me sentindo na minha plenitude. Eu tenho mil coisas, mil questões aqui sendo administradas, mas estou viva”, resumiu em novembro passado.

Também quebrou tabus ao fazer reflexões complexas sobre um estilo de vida do passado que chegou a associar muitas vezes ao próprio câncer.

“Amar o próprio corpo não quer dizer cuidar mal dele, pelo contrário. A gente pode se amar com a forma que tem, mas tem que entender se aquele corpo é saudável. Hoje eu sou uma mulher saudável, me cuido, e continuo fora do padrão, não sou magra. Minha parte digestiva é toda diferente, por conta da cirurgia (de 2023). Passo por coisas delicadas. O pós e a reabilitação demoram anos. Até eu conseguir voltar a ter o comando do meu corpo, (vai exigir) fisioterapia pélvica, muitas coisas”, disse numa entrevista antes do diagnóstico de metástase. “Eu tinha uma culpa muito grande porque (o tumor) era no meu intestino. Mas me perdoei. Meus oncologistas diziam pra não me culpar, que pode acontecer a qualquer um. Mas ainda acredito que devemos estar alertas e nos cuidar bem sempre.”

Porta-voz e caixa de ressonância. Preta nunca temeu se expor, defender suas posições, o que lhe trouxe ao mesmo tempo uma multidão de fãs e muitos detratores. Em 2011, durante uma entrevista feita por famosos — ela entre eles — ao então deputado Jair Bolsonaro, Preta perguntou a ele como reagiria se algum de seus filhos se declarasse gay. Ou caso decidisse se casar com uma mulher negra. A resposta do político de extrema direita — "eu não vou discutir promiscuidade, eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em um ambiente como, lamentavelmente, é o seu" — rendeu a ele uma condenação do TJ-RJ por danos morais coletivos e, a ela, um lugar de autoridade entre os defensores da tolerância e do respeito às minorias. 

Preta Gil mostrou-se como é sempre que pôde. Como na série “Em Casa com os Gil”, da Amazon, feita para celebrar os 80 anos de vida do pai, e na qual deixou clara a relação tão próxima à família e o jeito aberto de ser. Algo que também ficou evidente na turnê Nós a Gente, que reuniu em 2023 Gil, Preta, Os Gilson (grupo liderado por seu irmão, José), seu filho e também músico Francisco Gil e a sobrinha Flor Gil, filha da irmã Bela.

"Eu estou muito feliz, de uma forma que eu nem sei explicar para vocês, porque eu ia ficar muito, muito triste, se eu não fizesse parte dessa turnê. Afinal de contas, a ideia de fazer esse show foi minha", ela disse em suas redes sociais, quando anunciou sua participação. "A gente conseguiu realizar uma turnê pela Europa, que resultou na segunda temporada da série 'Viajando com os Gil', mas antes a gente vai se ver pelos palcos do Brasil. Vai ser lindo, emocionante.”

Foi um enorme sucesso, com shows lotados por todo o país. E foi também a primeira de uma série de apresentações emblemáticas finais dela, como a consagradora performance para uma multidão na Praia de Copacabana em junho de 2024. Meses depois, teve que cancelar sua participação no festival Rock The Mountain, em novembro passado, em Petrópolis (RJ), por conta do regresso da doença. Mas, em abril passado, surpreendeu o seu público fazendo uma participação especial num show do pai, cantando "Drão", música que Gil escreveu para a mãe dela, Sandra Gadelha. Foi a última vez de Preta Gil sobre um palco.

Há cerca de dois meses submetendo-se a uma terapia experimental nos Estados Unidos, depois de esgotadas todas as opções de tratamentos no Brasil, Preta foi piorando pouco a pouco, lutando ao lado da família. Até que a luta terminou neste domingo (20), em Nova York.

Num comunicado publicado nos perfis de Gil e de sua mulher, Flora, madrasta de Preta, a família deu mais detalhes:

"É com tristeza que informamos o falecimento de Preta Maria Gadelha Gil Moreira, em Nova York, onde estamos neste momento cuidando dos procedimentos para sua repatriação ao Brasil.

Pedimos a compreensão de tantos queridos amigos, fãs e profissionais da imprensa enquanto atravessamos esse momento difícil em família.

Assim que possível, divulgaremos informações sobre as despedidas."

Ainda na noite de domingo, as redes sociais já foram tomadas por homenagens de fãs, artistas e personalidades públicas, inclusive políticos de diferentes correntes. Nada faz pensar que nos próximos dias não continuarão as lembranças e os reconhecimentos a uma vida que deixa um legado de arte, preocupação social e significado.

Presidente da UBC, a cantora e compositora Paula Lima resumiu o sentimento da nossa associação: 

"Preta é histórica. Um símbolo de amor, luta e empoderamento. Todo o nosso carinho, respeito e admiração pela sua singular e iluminada existência. Foi uma importantíssima voz e a inspiração para milhares de nós em muitos fundamentos, construindo e abrindo caminhos e batalhando pelo bem e pelo coletivo. Celebramos a sua coragem, fé, energia, potência, vigor, a profunda sabedoria, o talento, a determinação, a liberdade, a autenticidade, a ousadia, a alegria, a energia, a generosidade e o profundo amor por gente, por nós e pela vida. O seu legado será eterno e é edificante. Obrigada pela mensagem e por inúmeras revoluções essenciais. Descanse em paz, amada Preta. Nossos profundos sentimentos ao nosso amado Gilberto Gil, à querida Flora, à família Gil, aos amigos, irmãos e fãs."

Também Marcelo Castello Branco, diretor-executivo da UBC, manifestou seu carinho por Preta e pela família Gil.

"Todo o nosso carinho, respeito e solidariedade à família Gil. Preta foi uma inspiração: mulher corajosa, artista múltipla, autêntica e de um talento arrebatador. Tive o privilégio de trabalhar com ela no início de sua trajetória artística e executiva, e de desfrutar de sua amizade generosa", disse. "Preta encantava com sua impetuosidade, sua alegria contagiante e sua entrega em tudo o que fazia. Ela foi — e sempre será — uma grande luz."

 

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