Cantor e compositor carioca, filho de Jackson Antunes, fala à UBC sobre seu quarto disco, uma 'expedição' calcada em sons brasileiros
Por Alessandro Soler, de São Paulo
Fotos de Eduardo da Matta
ZéVitor é um artista de interesses múltiplos. Carioca, tem uma conexão forte com o sertão nordestino e seus códigos estéticos e culturais tão ricos — conexão herdada do pai, o ator e músico Jackson Antunes, natural de Janaúba, um pedacinho de sertão no Norte de Minas. Mas o mundo das novelas de cavalaria medievais europeias, as sonoridades célticas da Galícia, o samba, o choro e outros sons afro-brasileiros, o flamenco de origem cigana e muitas coisas mais fazem a cabeça desse jovem cantor e compositor de 26 anos, que está lançando seu quarto disco, “Imago Mundi”.
Nele, faz um passeio sonoro variado — por vezes só, mas, sobretudo, o faz acompanhado. Com participações como a da cantora e compositora galega Antía Muíño, a dupla sertaneja César Menotti e Fabiano, a cantora e compositora Dora Sanches, o músico Téo Azevedo e o pai, Jackson, ZéVitor celebra um ineditismo deste álbum.
“É a primeira reunião de músicas que nascem da minha relação com o violão, minha nova forma de compor. Considero esse como meu primeiro disco. Eu comecei a fazer música muito cedo. Não estudei teoria. A gente vai quebrando a cara, amadurecendo, se atropelando e entendendo. Hoje eu tenho certeza das coisas que não quero, e isso é um norte. ‘Imago Mundi’ é uma expedição a mim mesmo, ao meu próprio Brasil, um convite às pessoas para que venham ao meu mundo sensível e criativo”, ele disse nesta conversa com a UBC por um aplicativo de chamadas de vídeo.
Tem uma base forte de sonoridades brasileiras neste álbum, mas tem também uma conexão com a Galícia, com a Antía Muíño. Por quê?
ZÉVITOR: A arte gráfica de ‘Imago Mundi’ tem uns mapas, tem um ingresso que está na capa do disco, que é como se fosse o ingresso de uma nau. Um convite a um novo mundo. Você entra ali em busca de um Brasil, e é o Brasil que reside dentro de mim. E, além disso, tem toda uma brincadeira com os instrumentos: os árabes e judeus, que são expulsos da Espanha e de Portugal, vão pro Nordeste. Os seus instrumentos viram a viola nordestina. E a guitarra ibérica vira a viola caipira. Busco essas conexões, uma linguagem de um tempo que não é nem passado nem presente nem futuro. É poético. Quando estávamos no processo de feitura do disco, o meu produtor, Aureo Gandur (que assina a maioria das faixas com ZéVitor), me mostrou a Antía ao mesmo tempo em que eu também chegava até ela nas minhas audições. O algoritmo (do streaming) deve ter linkado nos linkado a ela. Mandei mensagem para ela sendo muito sincero sobre o que eu tinha achado do trabalho, e ela foi de um abraço, de uma coisa carinhosa… A gente apresentou a música, e ela topou fazer algo com esses brasileiros doidos.
Essa variedade enorme de sons, MPB, rap, baião e outros gêneros sertanejos, pop, tudo regado a violões variados, foi deliberadamente buscada? Ou, quando você viu, já tinha saído assim?
Num primeiro intuito, eu não queria tirar uma fotografia de nenhum momento ou década. Existe ali um interesse pela música brasileira. E é engraçado: eu encontrei um senhor arqueólogo numa livraria antes de fazer o disco, e ele disse algo que ficou na minha cabeça, com relação à profissão dele. “O nosso trabalho não é encontrar o que foi perdido, mas tentar entender o que ainda não foi encontrado.” Eu não poderia estar tentando buscar os corações e ouvidos das pessoas que fossem os mesmos da bossa nova ou dos afro-sambas. A cultura é viva, muda conforme o mundo avança. Então, esse interesse por recriar algo nunca esteve na minha visão. Tinha essa coisa de lembrar da minhas memórias, da minha infância. Minha infância foi repleta de cultura popular. Através da viola caipira (do meu pai), das peças que minha mãe faz. Minha mãe tinha uma peça, “Sebastião e Severiana”. Todo esse universo do sebastianismo português, que é tão meu, e que me leva para esse mundo das novelas de cavalaria, também está no disco.
Os violões têm grande destaque no álbum. Vocês sempre compõe com eles?
“Imago Mundi” é a primeira reunião de músicas que nascem da minha relação com o violão, minha nova forma de compor. Considero esse como meu primeiro disco. Eu comecei a fazer muito cedo. Não estudei teoria. A gente vai quebrando a cara, amadurecendo, se atropelando e entendendo. Hoje eu tenho certeza das coisas que não quero, e isso é um norte. “Imago Mundi” é uma expedição a mim mesmo, ao meu próprio Brasil, um convite às pessoas para que venham ao meu mundo sensível e criativo. E teve um trabalho grande de garimpo. Os violões são das décadas de 50 e 60. Têm um timbre Baden Powell, Vinicius (de Moraes). Mas também fui atrás de violas, como a (viola artesanal) três bocas, as violas Marrocos, da Del Vecchio, que eram usadas pelas duplas caipiras… Amo e admiro tudo isso, mas não sou um exímio tocador de nenhum desses instrumentos (risos). Embora os use para compor. Acabo achando meus caminhos. O meu produtor, Aureo Gandur, tem um papel fundamental nisso, me ajudando a encontrar saídas que eu não pude achar sozinho, ele fez essa expedição comigo.
Interessante a ideia de expedição…
E é assim mesmo que eu sinto o processo. Eu pego uma viola nordestina, por exemplo, com essas rodas que ela tem, essa estética que faz a gente sair do lugar-comum. Penso na pessoa que vai estar no palco sendo levada a uma coisa armorial, a um universo meio Ariano Suassuna. Eu não vivi a seca do sertão na pele, não nasci no Norte de Minas como o meu pai, mas herdei isso tudo. Trago isso pro meu mundo e traduzo com uma variedade de composições, de sonoridades… É mesmo uma viagem, uma exploração. E, assim, vou compondo sempre. Componho o dia inteiro (risos) e tenho muita coisa pronta, vários discos já compostos. E muita vontade de brincar com essa coisa de manter a tradição acesa, conhecer esses instrumentos e brincar com a música brasileira, que é tão infinitamente rica. O pop de origem americano não faz a minha cabeça. A tradição da música brasileira permite uma viagem de muita modernidade, de muita vanguarda. Não quero ser cover de norte-americano. Quero explorar e exaltar a nossa riqueza.
VEJA MAIS: O lyric video da faixa 'πNEO', com participação de Téo Azevedo
Alguns gêneros da nossa música, a MPB e a bossa nova sobretudo, têm um amparo forte na palavra. Claro que as melodias são magníficas, mas muito da MPB se assenta na palavra. A tua música também explora os jogos de palavras, a beleza e a sonoridade delas. Por quê?
Porque é muito mais moderno. É o papo de que no passado existe um caminho pra uma modernidade muito maior no futuro. Eu sempre fui envolto de palavra. A poesia, a palavra de meu pai, de minha mãe. A palavra desses poetas que a gente cresceu ouvindo e que formam nosso imaginário. A palavra tem tanto significado. Por que não explorar a profundidade da nossa expressão? O que Elomar (Figueira Melo) faz é magnífico. Busca a palavra profunda. A obra musical vai ser um conjunto da palavra, da harmonia, da poesia que a aglutinação de palavras faz. A junção dos instrumentos. Tudo vira palavra, é o som falando. É algo muito importante pra mim. Eu amo escrever, sou um apaixonado por escrever. Nasci pra isso. Eu tento cantar, tento tocar, mas é pela palavra que sou mais apaixonado.
Tem um forte componente político nas tuas letras. Mas não política partidária. São muitas as mensagens.
Não sei se é deliberado. Mas é algo que faz parte dos meus incômodos legítimos no mundo. É político. Também no sentido humano, de "o que é que a gente está fazendo?”. A passagem do tempo e a dor que ela traz. Falo sobre a putrefação da vida, e falar disso é falar de entropia e de como as coisas caem no tempo, e nossa virtude anda caindo, nossas escolhas andam sendo as piores possíveis, de como somos seres ultratecnológicos que não estão evoluindo a parte humana. Quero fazer um protesto contra a superficialidade. Não enxergo o mundo como um lado ou outro lado. Uma coisa são várias, constantemente, ao mesmo tempo. Sou contra as dicotomias. Eu talvez seja um ser que protesta contra as coisas. A arte é um veículo de transformação. E a encaro como um lugar de as coisas serem ditas. O artista pensar que o sonho é o mainstream e que o resultado é dinheiro… isso é perigoso, coloca a arte num lugar muito subvalorizado. Arte, hoje, claro, é produto. E quero que meu produto seja consumido. Mas não posso deixar de ser profundo, não quero deixar. Se eu deixar de buscar minha verdade e meu coração, amanhã eu não terei entusiasmo algum pelo que eu faço. Há pessoas preocupadas com a palavra, a sonoridade, a poesia, a cultura brasileira, o caminho do ser humano, o que estamos escolhendo, todas as escolhas sobre os outros, sobre o nosso individualismo. (O disco) é um convite a olhar pra nós mesmos, pra nossa cultura, nosso país.
Quem são tuas maiores influências na música?
Os afro-sambas têm meu coração. O jeito de Baden (Powell), de Paulinho (da Viola) tocarem. De Rosinha de Valença tocar. De Cascatinha & Inhana - “Iiiiindia, sangue tupiiiii”. Os Nonatos, que sempre ouvi a vida inteira. Valdir Teles, repentista. Téo Azevedo. Maria Bethania, Tom Zé. O jeito de Vinicius (de Moraes) compor. Sergio Sampaio. Hermeto (Pascoal)… Tem um que tem meu coração de maneira especial, que é Elomar, com a turma dele, o Xangai (Eugênio Avelino), o Décio Marques, a Doroty Marques, Vital Farias, a turma dos sertanos, os discos de cantoria. Inezita Barroso. Tino Gomes. Geraldo Azevedo, Alceu (Valença), Zé Ramalho nos anos 70, com uma viola caipira magistral, pop e moderna. Eu estou louco ouvindo o disco de 68 do Gil(berto Gil). É moderno até dizer chega. Ao mesmo tempo, sou fã de Tim Bernardes traçando um caminho hoje. A galera do Bala Desejo revisitando coisas sensacionais. Existe uma gama de pessoas muito interessadas em fazer música de qualidade. E trabalhando pra galgar lugares e espaços. Como não citar Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré? Esses gigantes! Como não falar de Di Melo? Como não pensar na música cubana, que influenciou todo mundo do Nordeste, porque o pessoal captava as rádios da América Central através da AM, mas mal chegava o que se ouvia no Sudeste e no Sul do Brasil… Que mais? Os modernistas: Villa-Lobos, Pixinguinha. Trio Mocotó. João Bosco, com Aldir Blanc. É tudo isso, um Brasil inteiro. Todos os discos que ouvi de música sulista raiz do meu pai. Tudo isso e muito mais. É por isso que a gente tem que ser muito empolgado com nossa música. Porque a gente chega em qualquer lugar e é respeitado. E os mais novos não podem não conhecer isso. Faz parte esse trabalho de manter a chama acesa. Imprescindível.
E o peso e a influência do teu pai? Como você lida com o papel dele na tua formação versus o teu legítimo desejo de buscar luz e caminho próprios?
Eu tenho uma relação de muito amor com meu pai e com minha mãe. Especificamente falando do meu pai, do sucesso dele, sei que sou o tempo inteiro julgado por conta disso. Chego pra fazer um projeto, e é “ah, não está aqui pelo talento, mas por indicação”. Mas confio muito no meu trabalho musical, sei que tenho o que dizer ao mundo. Tenho inspirações do meu pai, mas sou bem resolvido com isso, encontrei algo que é meu. Fico com a parte boa: ele me proporcionou coisas boas, pude conviver com músicos fantásticos, cresci sendo embalado pelas músicas de Téo Azevedo, que o litoral não conhece, mas que é importante pra nossa história cultural (e participa do disco). Isso é muito mais forte que qualquer dificuldade. A minha dificuldade deve ser olhada sob o prisma dos privilégios que tive. Mas dor todo mundo tem. Pensamentos intrusivos. A dor do mundo louco como ele é. Mas sou muito agradecido. Não tenho nenhum rancor com minha história por como ela é. E só quero honrá-la por tanto respeito com meu pai, me cobro muito pra estar à altura da arte que ele faz. Dar sequência à tradição, se preocupar com o Brasil. Não penso em fazer como ele. Já estou fazendo como eu.
OUÇA MAIS: 'Imago Mundi' na íntegra
VEJA MAIS: Outros lyric videos do álbum
LEIA MAIS: Relembre a capa da edição 52 da Revista UBC, com Gabriel Sater