Percussionista com 50 anos de carreira lança autobiografia cheia de histórias saborosas sobre si e as últimas 5 décadas da música brasileira
Por Alessandro Soler, de São Paulo
São 50 anos de carreira, 68 de vida e uma enorme constelação de parceiros e amigos surgidos pelo caminho. Nada mais natural que o percussionista e compositor Reppolho quisesse contar essa rica história musical num livro. E ele o fez: recém-lançada, a autobiografia “Reppolho” é assinada por Givaldo José dos Santos, nome de registro daquele menino nascido na periferia norte do Recife, nos arredores de Olinda, que desenvolveu um talento musical único em sua família.
“Meu pai era um caboclo ‘brabo’, rude, da Zona da Mata de Pernambuco. Minha mãe era uma mulher sensível, negra dos xangôs (candomblés), do carnaval, do são-joão e da cultura de matriz africana em geral. Foi dela que herdei a musicalidade. Sou um típico afro-ameríndio-pernambucano. Mas ninguém na minha família, antes de mim, tinha qualquer coisa a ver com a música profissionalmente”, ele descreve em entrevista à UBC.
Se o envolvimento com a música começou em 1974, quando o então menino batuqueiro completava 18 anos, o mundo da arte e das letras já não lhe era estranho:
“Estudei artes gráficas e me tornei tipógrafo. Enquanto isso, já começava a batucar, a fazer apresentações no Recife. No começo, a música foi uma tentativa de chamar a atenção das meninas, na calçada, lá pelo meu bairro mesmo. Em 1974 descobri o bongô, que entrou no Brasil através de Cuba, por causa da febre do mambo dos anos 1950. Foi meu primeiro instrumento.”
Tocando bongô e outros instrumentos de percussão, Reppolho criou grupos musicais com amigos do bairro (como o Karutana), tocou em bares e na noite. Além dos clássicos da Tropicália, dos Novos Baianos e da MPB que vinha do Sudeste, também mandava canções dos seus conterrâneos Alceu Valença e Geraldo Azevedo, além do paraibano Zé Ramalho, uma turma que “já estava acontecendo”, nas palavras dele.
“Em 78, quando chegou a onda disco ao Recife, movida pela novela ‘Dancin’ Days’, saltei para as boates também. O pessoal da banda Os Tártaros precisava de alguém para tocar tumbadora, e eu entrei. E a banda foi uma experiência incrível. Vim de toda essa experiência, por isso minha música hoje em dia tem tudo isso, é uma miscelânea.”
No ano seguinte, 1979, viria aquela que foi a grande oportunidade da sua vida musical até então, e que lhe abriria as portas para o cobiçado mercado do Rio de Janeiro. Um dia o grande Johnny Alf, precursor da bossa nova negro e homossexual, meio escanteado pelo movimento assim como Elizeth Cardoso, foi tocar no Teatro do Parque, dentro de um projeto que misturava medalhões a novos nomes. Entre estes que o acompanharam estavam o conjunto A Cor do Som e uma então iniciante Zizi Possi.
“Eu o conheci ali, e ele me chamou para viajar ao Rio e tocar com ele. Na época, todos queriam vir para o Rio de Janeiro, era o centro de tudo. Para onde migraram Tia Ciata, Donga, João da Baiana. Trouxeram o samba da Bahia com eles. Os pretos de Minas trouxeram o jongo. Os pernambucanos, o frevo. Era o grande caldeirão.”
Uns meses depois, Reppolho se lançava à aventura, não sem ter de enfrentar uma série de percalços que demonstrariam a fibra de que é feito. Sem ter onde ficar, acabou dependendo da generosidade de amigos que o acolheram, enquanto ia tecendo suas relações, indo a eventos musicais, começando a tocar com um, com outro…
“Tenho uma série de pessoas que foram fundamentais na minha vida, que tiveram muita estrela e me abriram portas. Dona Brasil, mãe desse meu amigo que primeiro meu acolheu, é uma delas, nunca a esquecerei. Ivanirdes, o chefe da segurança da Funarte que um dia, depois de eu ter passado semanas na porta do projeto Seis e Meia, me deixou entrar e conhecer músicos que viriam a ser fundamentais para mim naquele momento, o Jorge Mautner, o músico Café, que foi minha ponte para tocar na banda do Gil(berto Gil)… São muitos mesmo”, recorda.
Com Luiz Melodia, em foto dos anos 1980 sem data. Arquivo pessoal
O período com a banda de Gil, de 1981 a 1987, aliás, ele define como único e especial.
“Trabalhei com pessoas sensacionais e talentosíssimas, com Milton (Nascimento, no projeto ‘Missa dos Quilombos’, de 1981, no Recife); com Moraes Moreira por quase 20 anos, com Elba Ramalho por cinco; com Gal Costa, Robertinho Silva, Robertinho do Recife, Alceu Valença (tanto em ‘Morena Tropicana’ como em ‘Mágico). Tenho respeito incrível por todos. Mas o Gilberto Gil é o artista com quem eu mais me identifiquei”, elogia.
Ao longo dos anos 80, 90, 2000, Reppolho foi consolidando sua reputação como percussionista performático, um showman capaz de tirar o melhor dos instrumentos. Talento aprimorado por uma intensa pesquisa sonora que ele faz há várias décadas, e que já rendeu inclusive outro livro, “Dicionário Ilustrado de Ritmos e Instrumentos de Percussão”, escrito por ele e elogiado por nomes como Ricardo Cravo Albin, Fred Góes e Euclides Amaral.
Este último, escritor e pesquisador musical, além de parceiro de composição de Reppolho e revisor da autobiografia do músico, destaca na obra seu caráter histórico:
“Em registro coloquial, cronologicamente alinhado, Reppolho repassa parte de sua vida relatando fatos presenciados entre as décadas 1970 e 2000, anos cruciais para a sedimentação da carreira de artistas da época dos Festivais, assim como de cantautores e intérpretes surgidos nesse período. A importância deste volume é a soma de uma visão pessoal à história da MPB contemporânea, aumentando sobremaneira a literatura musical brasileira com esta perspectiva.”
Não falta ainda espaço para os discos solo lançados por ele (seis ao todo, cinco deles de modo totalmente independente, e um deles gravado independentemente e distribuído pela Warner). Um dos registros, o do álbum de estreia, “Tribal Tecnológico”, ganha menção especial.
“Em 87 eu dei início à primeira apresentação cantando, buscando esse lado compositor e intérprete de minhas canções. Dois anos depois, lancei ‘Tribal’. Era um negócio diferente, com bateria eletrônica, algo que ninguém ainda usava. Regravei ‘Olhos Coloridos’, do Macau, cantando com a Sandra de Sá. Tem participações de Paulo Moura, Rafael Rabello, Pepeu Gomes… Acho que a Warner não entendeu o disco. Esperavam algo olodum, lambada, era essa a onda naquele momento. Eu vim com pop, black music, afrofunk, reggae, uma pegada Prince, uma homenagem ao Jackson do Pandeiro, uma coisa totalmente diferente. Era a primeira vez, no Brasil, que tinha um percussionista à frente da banda. Mas não está em lugar nenhum, não tem nas plataformas. Anos atrás vi o disco sendo vendido em Tóquio, mas aqui não se encontra, infelizmente”, lamenta.
Com Pepeu Gomes, durante um show, em foto sem data. Arquivo pessoal
Mas o lamento não dura muito. Cheio de planos para os próximos meses e para 2026, quando celebra 70 anos de vida, Reppolho espera negociar com as editoras que cuidam do seu catálogo o relançamento de suas obras autorais. Tem planos para shows. Mantém sua agenda de oficinas e palestras sobre percussão e música. E não para de compor:
“Desde as primeiras parcerias com a minha ex-esposa Jane Ungaretti, ao Tavinho Paes, ao Euclides Amaral, ao Quixeramobim, ao Ednaldo Lima, foram muitos os parceiros com quem dividi composições. Amo fazer isso, amo estudar música, pesquisar sobre instrumentos, sobre nossas ancestralidades, a origem do que a gente faz. E criar. E tocar. Sou um cara feliz com o que faz. Aquele menino gordinho, parrudinho, que aos 5 anos ganhou o apelido de Reppolho de um amigo do pai, jamais poderia imaginar que se tornaria um músico e que teria a sorte de viver tantas coisas incríveis através da música. É um grande privilégio.”
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