Artistas influenciados pelo compositor falam sobre o que o torna um letrista excepcional, generoso no acolhimento às novas gerações
Por Eduardo Fradkin, do Rio
Hermínio Bello de Carvalho. Divulgação/Selo Sesc
Letrista e produtor de clássicos da música popular brasileira, o poeta Hermínio Bello de Carvalho completou 90 anos — ou seu "noventenário", como prefere dizer aos amigos próximos — em 28 de março. Ganhou três dias de celebração proporcionada por artistas ligados à Escola Portátil de Música, referência no ensino do choro cujo nome foi dado pelo próprio Hermínio. Passou o aniversário com o coro da escola no pátio da Unirio e, na semana seguinte, foi homenageado com dois dias de shows na Casa do Choro. Para os fãs do letrista, entretanto, a festa começa agora: neste mês de maio, sai uma nova edição do livro "Araca: Arquiduquesa do Encantado, Um Perfil de Aracy de Almeida", escrito por ele em 2004. E, mais adiante, será lançado um EP — ainda sem título e previsto para o segundo semestre — com quatro faixas, sendo três composições de safra recente.
Uma dessas canções é a inédita (em disco, mas não em redes sociais) "Dia Sim Dia Não", primeira parceria de Hermínio com seu sobrinho-neto Gabriel Lemuriano Araújo, de 26 anos.
"Na internet, está disponível a gravação que fizemos num show, no Solar de Botafogo, em 2023. Mas só agora estamos gravando em estúdio. Tenho outras composições com ele, mas não sei quando vou escoar. Estamos indo para a quarta música, algo assim", revela Lemuriano, que canta e toca violão.
LIÇÃO PRECIOSA
Dos 18 aos 20 anos, o músico morou com o tio-avô, mas foi antes disso que aprendeu com ele as mais valiosas lições musicais.
"Graças ao Hermínio, eu comecei a compor. Quando eu tinha 14 anos, levei para ele de presente de aniversário uma versão que fiz de 'Timoneiro'. Eu substituí a letra do Hermínio por uma que eu mesmo escrevi. Olha que audácia! Comecei a cantar a música para ele, mas estava tudo meio encavalado, porque eu não tinha técnica alguma. Ele ouviu, gostou, mas falou assim: 'sabe por que não está funcionando?'. E começou a me ensinar metrificação, que é a técnica básica de composição. Se fosse qualquer outro artista, poderia ter ficado ofendido com o que fiz, mas ele teve a gentileza de me ensinar. Foi ali que descobri a pólvora", conta o parceiro mais jovem, atualmente, do letrista.
Gabriel Lemuriano com Hermínio. Foto: arquivo pessoal
Um dos maiores prazeres de Hermínio é compartilhar sua arte com gente mais nova. Quando o coral da Escola Portátil cantou "Pressentimento", no campus da Unirio, apareceram duas crianças com instrumentos de percussão de plástico, e se puseram a tocar. Hermínio foi às lágrimas. O cantor e pesquisador Pedro Paulo Malta filmou esse momento e o postou no Instagram, em 29 de março, um dia após o aniversário.
"Foi muito bonito ver aquilo. Acho que o que mais o emociona é essa renovação constante", opina a cantora e instrumentista Gabi Buarque, que estava presente na Unirio e, depois, participou dos shows na Casa do Choro.
A amizade de Gabi com Hermínio — que rendeu a parceria "Foi Mal", incluída no disco "Cataventos" (2023) — nasceu há duas décadas, na Escola Portátil. A artista, hoje com 41 anos, teve aulas com o mestre na Oficina de Coisas, que ele ministrava.
"Ele é um provocador de ideias mais que um professor. Mostra vídeos estranhos, para instigar discussões. Eu me lembro de quando ele mostrou um vídeo do Cauby (Peixoto) com o Dino Sete Cordas. Aquilo me causou muita estranheza, e eu, de forma preconceituosa, falei que não gostei nem um pouco. Ele adorou a minha opinião, porque todo o resto da turma só tecia elogios. A partir daquela ocasião, ficamos amigos e começamos a trocar e-mails. Ele me ensinou a ver beleza nas estranhezas", recorda-se Gabi, fazendo a ressalva de que, hoje em dia, apreciaria o dueto de Cauby com Dino Sete Cordas.
Gabi Buarque com o amigo. Foto: arquivo pessoal
AS ESTRANHEZAS DO MESTRE
Coprodutor (com Luiz Boal) do EP que ainda não tem nome nem data de lançamento, o cantor, compositor e violonista Vidal Assis também cursou a Oficina das Coisas e foi igualmente impactado pelas "estranhezas" mostradas pelo professor.
"Ele falava sobre textura das vozes e repertório, mas sempre fugia do óbvio. Eu me lembro, por exemplo, que ele levou uma música cantada pela Clementina de Jesus com a Tetê Espíndola. A voz da Clementina, grave e carregada de ancestralidade, e a Tetê com uma voz aguda e de cristal. Aquele somatório, para o Hermínio, dava um aspecto estético inédito para a música. Ele costuma usar uma palavra que cabe aqui: 'novidadeiro'. Não por acaso, o vocabulário dele também é 'novidadeiro' e tem verbos raramente encontrados na música brasileira, como 'escarafunchar'. Isso é uma de suas características marcantes", aponta Assis.
Com Hermínio e Kiko Horta, Assis assina uma nova música, intitulada "Jogo Empatado", que poderá ser ouvida no vindouro EP.
"É um samba sincopado, com uma veia política. Fala do estado democrático de direito, tomando o futebol como metáfora. É um caso de amor que termina por conta de uma divergência política. Essa música foi lançada no último carnaval pelo Cordão do Boitatá, interpretada pela Marina Iris. Hermínio fala muito das relações de amor, as que dão certo e as que não dão, e, nos últimos tempos, tem se ocupado da radicalização na política. O que ele traz de mais significativo em sua obra é a maneira como trata das relações humanas", avalia Assis.
A parceria teve início em 2005, de forma inesperada.
"Eu tinha mandado algumas de minhas músicas para o Hermínio, por meio de um amigo, e, depois, tomei coragem e fui falar com ele. Nesse momento, alguém o chamou, e ele virou as costas para mim. Pensei que tinha perdido aquela chance. Algumas semanas depois, toca o telefone na minha casa, e minha mãe diz: 'tem um rapaz chamado Hermínio Bello de Carvalho querendo falar contigo'. Ele me disse que tinha ouvido as minhas coisas e tinha algo para me mostrar, e recitou um poema. Eu perguntei se ele queria que eu o musicasse, e ele respondeu que era um presente, e eu poderia fazer o que quisesse. Daí, nasceu a minha primeira parceria com Hermínio, 'Ao Revés'. Fizemos algumas dezenas de músicas, de gêneros diferentes. Em 2016, lançamos o 'Álbum de Retratos'. Continuamos a criar juntos até hoje. Acabamos de fazer uma música sobre aprendizado, chamada 'Como Se Faz', baseada na máxima 'quem começa já fez', de Millôr Fernandes", comenta Assis.
Vidal Assis e Hermínio em momento de criação. Foto: arquivo pessoal
Esse axioma é, provavelmente, a citação favorita de Hermínio, como atesta quem convive com ele.
"No escritório, acima do computador, ele colocou uma placa com os dizeres 'quem começa já fez'. Essa frase, para mim, teve um significado muito grande, quando eu enfrentei dificuldades para iniciar ou terminar algum trabalho. E acho que essa frase anima o dia a dia dele, enquanto escritor e agente cultural", observa Gabriel Lemuriano, que complementa: "Ele tem uma visão de poeta integrada à vida. É natural para ele escrever. É como se ele produzisse poesia sem esforço, sem precisar pensar. O poeta tem uma infância infinita, está sempre brincando com as palavras.”
OUVIDO ESPECIAL
Parceiro de Hermínio desde a década de 1970, o músico paraense Vital Lima faz coro com o sobrinho-neto do nonagenário.
"A coisa mais marcante da personalidade do Hermínio é um olhar poético e uma fala poética. Se você está andando com ele pela rua, e ele vê a platibanda de uma casa e resolve descrevê-la, já sai poesia dali. Além disso, ele tem um ouvido muito sensível e atento a coisas incomuns, e acho que foi isso que fez com que ele percebesse o valor daquela voz negra que ouviu na Taberna da Glória quando descobriu Clementina de Jesus ali", diz Vital, citando a sambista que foi notoriamente revelada por Hermínio.
Em 1978, Vital e Hermínio fizeram, juntos, o disco "Pastores da Noite". Uma das faixas, "Igual Ao Que Não Foi", acaba de ganhar uma continuação (ou "uma resposta", como define Vital) que será incluída no futuro EP, bem como a canção original. A inédita se chama "Catando Estrelas" (até recentemente, era "Estrelas no Lixo", mas Hermínio pediu para mudar o nome).
Na seara editorial, a novidade é a reedição do livro que Hermínio escreveu sobre Aracy de Almeida. Por coincidência (ou não?), a obra lançada originalmente em 2004 comemorava justamente os 90 anos de nascimento da cantora. Na apresentação de "Araca", o editor Rodrigo Ferrari destaca os "noventenários":
"Hermínio conquistou um privilégio de poucos: tornou-se amigo de seus ídolos, e mais que isso, imbuiu-se da incumbência de alçá-los aos píncaros da glória, tornando-os alvo de grandes realizações e espetáculos monumentais. Perdoem se falo mais do Hermínio (...). É que este ano quem faz 90 é ele, então todas as homenagens serão poucas.”
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