Duas das canções do disco 'maldito', esquecido após o célebre afastamento dos dois, estão na trilha de ‘O Agente Secreto’
Capa e encarte do álbum duplo, reeditado ano passado pela Polysom. Divulgação
Por Chris Fuscaldo, do Recife
Uma história mítica de um disco amaldiçoado? Ou seria uma história amaldiçoada de um disco mítico? Difícil responder quando o assunto é “Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol”, álbum gravado em 1974 e lançado em 1975 por Zé Ramalho e Lula Côrtes, no Recife, que por anos ficou relegado a um apagamento e, neste 2025, tem ganhado todas as atenções de novas gerações da música e até do cinema.
Reeditado pela Polysom em 2024, o trabalho que acabou fazendo com que Lula e Zé rompessem uma amizade que foi essencial para a carreira dos dois foi celebrado, e pela primeira vez reproduzido no palco, há alguns dias, em um festival na capital pernambucana. E está representado por duas faixas no novo filme de Kleber Mendonça Filho, “O Agente Secreto”, que saiu do festival de Cannes, semana passada, com dois prêmios (melhor direção e melhor ator, Wagner Moura), e chega ao Brasil no segundo semestre.
No filme, que se passa em 1977, ao som de, entre outras canções, “Harpa dos Ares” e “Trilha De Sumé / Culto À Terra / Bailado Das Muscarias”, ambas de Lula Côrtes e Zé Ramalho, o pesquisador Armando, jurado de morte, volta ao Recife para recomeçar a vida, mas percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que procura. De acordo com a cobertura da Folha de S. Paulo, “elementos fantásticos começam a aparecer na trama, quase como materializações da imaginação coletiva”.
OS QUATRO ELEMENTOS
Também fantástico, psicodélico, é o clima de “Paêbirú”, LP duplo dividido em quatro temas que substituem os tradicionais “lado A” e “lado B”: um dos discos tinha um lado intitulado “Terra”, e o outro, “Ar”; enquanto o outro tinha os lados “Fogo” e “Água”.
A ideia era acabar com a hierarquia das músicas, assim como teriam igual importância os dois artistas que se conheceram em Pernambuco e se uniram para gravar o segundo trabalho do pernambucano Lula e o primeiro do paraibano Zé de forma improvisada e com muitos colaboradores. Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Paulo Rafael e Jarbas Mariz foram alguns dos quase 20 músicos que improvisaram no estúdio da gravadora Rozenblit – a ordem era criar enquanto o rolo registrava o que acontecia lá dentro – e, depois, tiveram suas fotos e nomes expostos no encarte, criado pela cineasta e artista plástica Katia Mesel, esposa de Lula e agitadora da cena musical naqueles tempos em que a Psicodelia Pernambucana estava a toda.
“Paêbirú – Caminho da montanha do sol” saiu em janeiro de 1975. Nos dias 17 e 18 de julho, a maioria das cópias foi por água abaixo na enchente que submergiu Recife, atingindo 31 bairros, deixando mais de 350 mil desabrigados e matando mais de 100 pessoas.
A água que transbordou do rio Capibaribe derrubou os muros do prédio da Rozenblit, no bairro que ironicamente se chamava Afogados. Máquinas, fitas master e discos foram destruídos e, da tiragem de 1.000 cópias, só restaram 300, que viraram artigo raro de colecionador. Reza a lenda que, antes desse estresse, o primeiro desgaste entre Lula e Zé foi quando, disco pronto (e lançado pela gravadora Rozenblit através do Solar, um selo da Abrakadabra, produtora de Lula e Katia), Zé viu que a foto do amigo aparecia na capa e a dele, na contracapa.
Depois, em 1993, tentando se reerguer de uma fase ruim e produzindo um novo disco sem nenhum investimento da sua gravadora, Zé Ramalho gravou “Não Existe Molhado Igual ao Pranto” para o disco “Cidades e Lendas”. Lula cobrou para liberar a faixa, e Zé ficou magoado, pois teria que arcar sozinho com todos os custos.
NOVAS GRAVAÇÕES
Os anos se passaram, e Zé – muito mais famoso nacionalmente – não voltou a citar “Paêbirú” em entrevistas e histórias que contava sobre sua vida. No início dos anos 2000, Lula tratava de um câncer na garganta e recebeu um convite para reeditar o disco pelo selo inglês Mr. Bongo. Em seu texto, publicado em inglês no verso do encarte, ele agradeceu a Zé:
“Obrigado a Zé Ramalho, mais do que a qualquer outra pessoa, a quem devo a honra desta parceria, resultado da amizade e confiança que dividimos durante muito tempo. Hoje seu trabalho é reconhecido no mundo todo, especialmente no Brasil, e ele é um dos nomes mais significativos da nossa música popular. Sua criatividade é única e se mostra óbvia em cada um de seus trabalhos.”
Dois anos antes, um selo alemão chamado Shadoks havia feito uma tiragem de “Paêbirú” em CD e iniciado um processo de pirataria. Foi nessa época que o LP duplo original, no Brasil, passou a valer R$ 5 mil. Separado de Katia desde os anos 1990, Lula Côrtes morreu em 26 de março de 2011, aos 61 anos, após lutar contra a doença por mais ou menos cinco anos. Zé Ramalho nunca comentou o assunto, mas liberou a reedição para a Polysom.
Lula e Zé em fotos da época, sem data. Reprodução
FIM DA ‘MALDIÇÃO’
Na abertura do festival “Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol”, realizado em 8 de maio no Teatro do Parque, em Recife, Katia Mesel – que seguiu fazendo trabalhos com Zé Ramalho e outros nordestinos, como Amelinha e Cátia de França mesmo depois da briga do artista paraibano com seu ex-marido – celebrou a quebra da maldição e o resgate da história:
“É um prazer muito grande, é muita emoção sentir esses 50 anos hoje com pessoas que nunca chegaram a conhecer Lula e com pessoas que tiveram o prazer de compartilhar a música dele. Todo mundo reunido aqui na liberdade, no carinho e na alegria... E acho que estamos precisando disso: alegria, música, liberdade e registro. E, graças a Deus, a digitalização desses registros está acontecendo, e as pessoas estão entendendo o valor dessa memória.”
O show de encerramento foi do Ave Sangria, banda icônica do movimento Udi Grudi, ou melhor, da Psicodelia Pernambucana, que conta ainda com dois remanescentes da formação original, o guitarrista Almir de Oliveira e o vocalista Marco Polo, ambos frequentadores das reuniões que deram origem ao “Paêbirú”, nos anos 1970. Filho de Lula e fundador e coordenador artístico da Rede Lula Córtex, Nemo Côrtes é um expoente da nova geração que também vem batalhando para não deixar a memória ser apagada.
“Fico muito emocionado de estar colhendo o que a gente vem construindo durante dez anos de articulação desta rede e de acreditar que memória é um direito. É um viva a isso, a essa rede que vem sendo costurada há 50 anos por várias mãos. É uma rede porque meu pai pediu para eu ajudar nessa salvaguarda de memória”, comentou o produtor cultural.
ÍCONE PSICODÉLICO
Uma das particularidades de “Paêbirú”, e que o catapulta como um dos discos mais representativos da psicodelia pernambucana, é a quantidade de efeitos sonoros gravados nos dois canais disponíveis pelo equipamento de Hélio Ricardo, um dos filhos do dono da gravadora. Hélio mixava na medida em que gravava. E, nas quase 12 horas em que ficava no estúdio com essa turma, tentava acatar os pedidos mais excêntricos. Alceu, por exemplo, cismou de colocar um “pente” na música de abertura do disco, “Trilha de Sumé”. E, arrastando o objeto em papel celofane, criou um efeito nunca antes usado em uma gravação na Rozenblit.
Há ainda efeitos de vento, lamentos, suspiros, conversas, risadas, “efeito vocal” e “efeitos especiais”, tudo isso feito pelas pessoas envolvidas nas gravações, inclusive Kátia. Sempre hiperativo, Lula mais tarde confessaria que aprendeu muito com Zé.
“Eu conversava muito com o Zé, a gente passava muito tempo junto. No estúdio, ele era quem direcionava os ensaios. O estúdio era muito grande, tinha vários núcleos de percussão, os microfonezinhos, e isso acontecia regido por Zé Ramalho. Tem partes em que eu estou dentro do piano de cauda tocando com palheta as cordas do piano, como se fosse uma harpa, enquanto ele toca o piano. Aí eu saía do piano e ia para o microfone fazer os solos”, contou Lula Côrtes em 2010.
A dupla fez poucos shows, depois foi absorvida por Alceu, que os levou para o Sudeste como integrantes de sua banda. Aos poucos, os dois foram se direcionando cada um para o seu trabalho: Zé investiu em sua carreira no Rio, enquanto Lula assumiu mais o seu lado artista plástico e escritor, em Recife. Assim como as águas do Rio Capibaribe – que, após a construção de barragens, deixou de provocar tragédias em períodos mais chuvosos –, os ânimos também arrefeceram com o passar dos anos. E a história, finalmente, agora voltou a ser contada.
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