Legado da Rainha é celebrado em dois docs já em cartaz, dois longas que ainda estrearão e do enredo da Mocidade Independente em 2026
Por Kamille Viola, do Rio
Rita Lee ousou ser cantora quando isso não era algo bem visto entre as famílias de classe média brasileiras, como a dela. E, mais ainda, tocar guitarra e compor músicas, fazendo críticas à sociedade brasileira e falando de amor e de sexo sob o ponto de vista feminino sem rodeios. Depois de abrir caminhos no rock, sendo coroada a rainha desse gênero no Brasil, fez uma virada para o pop, o que lhe rendeu uma enxurrada de críticas e uma legião de fãs: ela foi a mulher que mais vendeu discos no Brasil, totalizando cerca de 55 milhões de álbuns.
Desbravadora na música e no ativismo — falava sobre a defesa dos animais muito antes de o tema ganhar popularidade —, enfrentou o machismo e fez história, tornando-se uma das grandes artistas do país. Dois anos depois de sua morte, dois documentários que celebram uma das figuras mais singulares da música brasileira vêm à luz.
“Ritas”, de Oswaldo Santana, acaba de chegar ao cinema neste 22 de maio, Dia de Santa Rita de Cássia — nascida em 31 de dezembro, a cantora passou a vida tendo seu dia ofuscado pelo Réveillon; ela resolveu, então, que o dia da santa que carregava no nome seria seu novo aniversário. No ano passado, a data foi decretada o Dia de Rita Lee na cidade de São Paulo.
Já “Mania de Você”, do argentino Guido Goldberg, foi disponibilizado na plataforma de streaming Max no dia 8 de maio, justamente quando se completaram dois anos da partida da artista. Os dois filmes são bastante diferentes um do outro, e Roberto de Carvalho, marido e parceiro musical de Rita por mais de 40 anos, já avisou que há mais dois longas a caminho, agora de ficção.
ÚLTIMA ENTREVISTA
Resultado de um processo iniciado em 2018, “Ritas” foi baseado no livro “Rita Lee: Uma Autobiografia” (2016), e tem a própria voz da cantora como fio condutor de sua trajetória. O filme intercala uma entrevista exclusiva com a cantora, feita em 2018 pela codiretora Karen Harley (a última concedida por ela); imagens feitas pela própria artista durante a pandemia, com um celular dado a ela pela produção; e cenas de arquivo de shows e entrevistas, que dão a dimensão da grandiosidade da carreira de Rita Lee.
VEJA MAIS: O trailer de 'Ritas'
O filme passa por diversas fases: as bandas Os Mutantes, Cilibrinas do Éden e Tutti Frutti, a carreira solo e a parceria com Roberto de Carvalho (quando os discos passaram a ser assinados com os nomes de ambos em destaque), as incursões como apresentadora de TV e as participações no cinema, mostrando uma artista que foi muitas ao longo da vida (daí o nome do filme, aliás).
VOZES POR RITA
Já “Mania de Você” optou por ter mais vozes, contando com depoimentos de nomes como Ney Matogrosso (que apresentou ela e Roberto de Carvalho), Gilberto Gil, o jornalista Guilherme Samora (editor das duas autobiografias de Rita), o produtor Guto Graça Mello, o guitarrista Luiz Carlini e o baixista Lee Marcucci (ambos do Tutti-Frutti), e o músico e compositor Roberto de Carvalho, marido de Rita, além dos três filhos do casal, Beto, João e Antônio, e de Virgínia Lee Jones, a única irmã viva de Rita (a outra era Mary). Com um ritmo mais acelerado do que “Ritas”, o filme aborda momentos difíceis e, por vezes, polêmicos da vida de Rita, como uma overdose por cocaína, o período em que ela precisou ficar internada em uma clínica de reabilitação e prisão durante a ditadura militar, em 1976, quando estava grávida de Beto, seu filho mais velho.
CARTA COMO PONTO ALTO
Um dos pontos mais marcantes da produção da Max é a revelação de uma carta escrita por Rita para o marido e os filhos quando foi diagnosticada com câncer de pulmão — que acabou sendo a causa de sua morte —, em 2021. No longa, os filhos se emocionam enquanto leem o texto - dos três, apenas João tinha tido acesso ao conteúdo dele antes da filmagem. “Mania de Você” terminou de ser filmado três semanas antes da morte de Rita, aos 76 anos. Outro momento comovente é quando Roberto lê uma carta escrita por ela para ele enquanto estava presa, em 1976. Ele vai às lágrimas e não consegue terminar a leitura.
Roberto de Carvalho, assim como os filhos, contribuiu muito para os dois longas, dando acesso ao acervo da família. Ele conta que ficou feliz com o resultado dos documentários.
“Assisti primeiro ao ‘Mania de Você’. Foi muito impactante, principalmente por tratar em boa parte do epílogo da existência da Rita aqui nesta dimensão, o que foi um grande trauma para nós. Eu estava em Londres e assisti num iPhone. Quando foi ao ar no Max, assisti de novo, e aí outra dimensão prevaleceu. Não me entristeceu, senti um alívio por ter passado aquela fase difícil e me concentrei mais na parte leve do filme”, afirma à UBC. “Do ‘Ritas’ também gostei muito. Bem desenvolvido, criativo, e o ponto mais interessante é ser totalmente narrado pela Rita. Além do mais, tudo que trata de Rita é, no mínimo, excelente”, derrete-se ele.
SEIS DÉCADAS EM 80 MINUTOS
Diretor de “Ritas”, Oswaldo diz que a escolha de fazer um filme praticamente em primeira pessoa foi um caminho natural.
“Principalmente por a gente ter certeza de que a Rita narrando qualquer coisa, dando a opinião dela sobre qualquer coisa vem de uma forma muito sincera, verdadeira, precisa e com deboche”, enumera. “Quando chegamos em uma determinada etapa do processo, de decidir qual seria o recorte, vimos que essa diversidade de talentos que a Rita tem seria o mais legal de tudo. São seis décadas em 80 minutos, mas passamos por polêmicas, família, a escritora, a ativista, a mulher com esse amor pelo Roberto, supercorrespondido por ele, e até um pouco da visão dela sobre a vida e a finitude.”
O argentino Guido Goldberg, diretor de “Mania de Você”, explica que o disco na qual foi lançada a música homônima (“Rita Lee”, de 1979) tocava em sua casa em Buenos Aires como se fosse parte da trilha sonora da vida da sua mãe, e isso sempre o intrigou. Anos depois, começou a procurar a resposta.
“E, conversando com a família dela, essa curiosidade de infância virou um filme”, diz. “O que me atraiu nela não foi só a genialidade musical, mas o fato de ser uma mulher que viveu tudo o que quis, como quis e, ainda assim, pagou caro por isso. Isso, para mim, é cinema puro. Ela não pedia licença pra existir, e essa postura, mesmo sem se declarar feminista em palavras, era profundamente revolucionária. Acho que muitas mulheres e homens ainda não entenderam o quanto devem a ela. Porque a Rita foi o que queria ser, e isso é muito raro, em qualquer tempo.”
Ao longo da carreira, Rita derrubou muitas barreiras, abrindo caminhos para as gerações seguintes. Em um país no qual apenas 8% dos compositores que recebem direitos autorais são mulheres (conforme estudo do Ecad divulgado em 2025), mostrar o ponto de vista de uma mulher sem pudores foi algo que incomodou, e muito. Tanto que ela foi uma das artistas com maior número de músicas censuradas durante a ditadura militar no Brasil.
“A Rita trouxe sempre verdade e intensidade para cada minuto da vida dela. E isso fica claro nas letras. Ela traz uma conversa sincera e direta. Ela escreveu e cantou ‘me deixa de quatro no ato’ durante a ditadura”, exemplifica Oswaldo Santana, citando a letra de “Lança Perfume”, de 1980.
Em “Cor-de-Rosa Choque”, parceria com Roberto de Carvalho de 1980, Rita falou sobre a força feminina (“Sexo frágil / Não foge à luta”) e a menstruação (“Mulher é bicho esquisito / Todo mês sangra”), quando eram assuntos tabus — o que, por sinal, incomodou os militares. Em “Menopower”, dela com Mathilda Kóvak, de 1993, abordou a menopausa de forma positiva e bem-humorada, quando a regra, até recentemente, era o oposto (“Menopower / Pra quem foge às regras”, diz a letra, com um trocadilho que traz o senso de humor habitual da artista).
“Rita sempre foi inovadora, sempre abriu avenidas e sempre foi genial”, elogia Roberto de Carvalho. “Apesar de achar que a Rita transcende gêneros, quero dizer que, para mim, ela sempre foi a maior, a melhor, a mais talentosa, a mais linda, a mais tudo.”
CRÍTICAS MISÓGINAS
A ousadia de escrever sobre o que queria, cantar o que queria e tocar o que queria também teve seu preço: quando resolveu fazer uma virada pop na carreira, Rita foi duramente criticada pela imprensa musical — majoritariamente masculina —, muitas vezes de forma misógina.
“Era natural que um nicho de público tenha se ressentido e ficasse berrando. Em compensação, um universo gigantesco de público foi conquistado. Os ressentidos provavelmente queriam a Rita como diva de gueto, e o que estava destinado para ela era muito maior do que isso”, analisa Roberto de Carvalho. “Agora, quanto ao machismo, bem, somos um país misógino, onde até muitas mulheres são machistas e misóginas. Roqueiros, então, nem se fala.”
VEJA MAIS: O trailer de 'Mania de Você'
Um dos feitos mais notáveis da artista foi o fato de trazer em suas criações a figura do muso, em um país com uma história musical marcada pelas musas, já que a maioria esmagadora de compositores é homem — e letras falando explicitamente sobre amores entre dois homens também não eram tão comuns quanto hoje. Essa fonte de inspiração era Roberto de Carvalho, e “Ritas” mostra um momento de um especial de TV em que Rita canta enquanto olha de forma apaixonada para o marido, que está tocando teclado.
“Me ver como muso foi muito honroso, a autoestima foi lá em cima. Mas tenho que acrescentar que sempre fomos os musos, a inspiração, um do outro”, garante Roberto, parceiro da artista em hits como “Lança Perfume”, “Mania de Você” e “Desculpe o Auê”, entre outros.
OUTRAS HOMENAGENS
No mesmo dia 22 de maio de 2025, a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, do Rio de Janeiro, anunciou que seu enredo para o Carnaval 2026 será sobre Rita Lee. Para o aviso, pontos turísticos da cidade amanheceram com uma intervenção artística: réplicas em larga escala dos óculos redondos de lentes vermelhas de Rita, uma de suas marcas, foram instalados em lugares como Lapa, o Largo da Carioca e o Museu do Amanhã, na Praça Mauá.
Além disso, vêm por aí dois filmes de ficção, um livro de memórias de Roberto de Carvalho, outro musical e um projeto ainda secreto, desenvolvido pelo João Lee, o filho do meio do casal. Enquanto isso, a peça “Rita Lee, Uma Autobiografia Musical”, baseada no livro escrito pela artista, que é interpretada por Mel Lisboa, e dirigida por Débora Dubois e Márcio Macena, estreia nova temporada neste 23 de maio, no Teatro Porto, em São Paulo. Em seguida, em 26 de junho, o espetáculo chega pela primeira vez ao Rio de Janeiro, no Teatro Casa Grande.
PARQUE RITA LEE
Em uma homenagem anterior, no ano passado, Boulevard Olímpico, dentro do Parque Olímpico, no Rio de Janeiro, ganhou o nome de Parque Rita Lee, atendendo a um desejo revelado por Rita Lee em uma conversa no programa “Irritando Fernanda Young”, no GNT, em 2007, em que ela expressa o desejo de virar nome de praça quando morresse. A apresentadora prometeu que, se ainda estivesse viva, batalharia por isso, mas Fernanda partiu em 2019, portanto antes da cantora.
Embora a maior parte das iniciativas não tenha partido da família, o espírito colaborativo com que Roberto e os filhos encaram as homenagens à cantora, dando acesso ao arquivo e se disponibilizando a participar de projetos, faz parte de um importante, cuidadoso e amoroso trabalho de preservação da memória da artista, em um país com memória seletiva, que frequentemente “esquece” das grandes mulheres de sua história.
“A Rita mesma disse em uma canção nossa, ‘Nem Luxo Nem Lixo’ [de 1980], a frase: ‘Meu sonho é ser imortal, meu amor’. Esse processo pelo qual estamos passando é orgânico, não se trata de uma estratégia de marketing, é uma continuação muito natural dos processos criativos que sempre existiram em nossas atuações”, frisa Roberto. “O tamanho da Rita é gigantesco, e é isso que exige e possibilita a continuação da presença dela, mesmo ‘impresente’”.
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