Filme, série, exposição e homenagem em prêmio mantêm vivos a memória e o legado de um dos maiores astros do pop-rock brasileiro
Por Eduardo Fradkin, do Rio
Foto: reprodução
Num 7 de julho como hoje, há 35 anos, o tempo parou para Agenor de Miranda Araújo Neto. Mas Cazuza sobreviveu — seu nome permanece tão presente nas rádios, nas estantes de livrarias e na boca do povo quanto em 1990. Recém-anunciado como o artista homenageado da edição de 2026 do Prêmio BTG Pactual da Música Brasileira, um dos maiores astros do pop-rock brasileiro é tema de um filme que entra em cartaz no próximo dia 17, de uma exposição espraiada em nove salas no Shopping Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e de uma série em produção da Globoplay.
Dirigida por Patricia Guimarães, a série "Cazuza - Além da Música" terá quatro episódios de 30 minutos cada. É uma produção da Globoplay com a Conspiração Filmes, e está prevista para dezembro.
"A ideia é mostrar como a doença e a arte se encontraram em Cazuza. Depois de contrair o HIV, ele parou de cantar sobre as dores do amor e passou a abordar questões sociais. Também buscou um desenvolvimento espiritual, levado por Ney Matogrosso e outros amigos, embora tenha se mantido crítico da Igreja Católica. Ele foi o primeiro artista brasileiro a assumir estar com Aids, numa época em que a doença era tratada pela sociedade como uma questão moral", aponta Patricia, que promete mostrar um retrato do país na década de 1980.
OLHAR PRIVILEGIADO SOBRE O ARTISTA
O período da doença do cantor e compositor também está no cerne do filme "Cazuza: Boas Novas", que chega aos cinemas no final da semana que vem e, posteriormente, terá estreia televisiva no canal Curta!, responsável por viabilizar o longa com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual. A abordagem, nesse caso, é mais focada na figura artística de Cazuza do que na forma como a Aids era vista na sociedade no fim do século XX.
"O filme é uma grande oportunidade de apresentar o Cazuza, como pessoa, a uma geração nova. E, ao mesmo tempo, trazer boas memórias para quem já o conhecia. O Cazuza morreu faz 35 anos. Como ele ainda é muito falado, parece que é mais recente. Eu, por exemplo, dirigi o filme e nunca assisti a um show do Cazuza, porque eu era criança na época em que ele estava nos palcos", descreve Roberto Moret, de 44 anos, que divide a direção do longa com Nilo Romero.
Ele conta que, durante a pré-estreia do filme no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, as pessoas mais velhas, com 60 anos ou mais, ficaram muito emocionadas.
“Choraram, agradeceram. Foi uma coisa muito maior do que eu havia imaginado. O filme traz imagens muito íntimas do Cazuza, então é a oportunidade de conhecê-lo de fato. Há imagens raras em que ele está à vontade na casa dele na Serra (fluminense), em Petrópolis. Há imagens inéditas do show que ele fez no casamento do (saxofonista) George Israel. Ele fez uma transfusão de sangue para conseguir participar dessa festa", continua Roberto Moret.
Seu parceiro nessa empreitada cinematográfica, Nilo Romero, foi baixista da banda de Cazuza, tocou nos discos "Só Se For a Dois", "Ideologia" e no ao vivo "O Tempo Não Para", além de ter produzido os dois últimos. Romero também destaca o trecho do casamento de George Israel como um dos momentos curiosos do filme:
"O Cazuza coloca uísque no scarpin da noiva, acontece muita coisa bacana. Toda a cena artística carioca da época estava ali: Fernanda Abreu, Paula Toller, Leo Jaime, Frejat, Herbert Vianna, eu, (João) Barone... todo mundo tocando, abraçado.”
Cazuza com George Israel durante o casamento deste, em 1988. Foto: arquivo pessoal
Graças a George, há uma preciosidade no longa. O saxofonista do Kid Abelha filmou, em VHS, um dos três dias dos lendários shows que Cazuza fez no Canecão em outubro de 1988. Nilo conseguiu as imagens e as costurou com o áudio de alta qualidade captado pela gravadora Polygram na mesma ocasião.
"Eu sabia que, nesse dia, a Polygram havia gravado o áudio em multi-track. Pedi esse multi-track à Universal e o uni às imagens registradas pelo George. Então, as cenas do show do Canecão estão com som hi-fi. Além disso, há cenas de camarim e o momento em que ele cospe na bandeira (nacional), o que gerou polêmica", relata Nilo.
Apesar de transcorrer no período final da vida do artista, o filme não tem um viés apelativo ou piegas.
"É muito alto-astral, como o próprio Cazuza sempre foi. Mesmo doente, ele sempre teve uma atitude positiva, queria se aprimorar, cantar mais e fazer músicas cada vez melhores. O maior show da vida dele ele fez pesando o quê? Quarenta quilos? Estou falando da turnê 'O Tempo Não Para'. Fizemos 42 shows no Brasil inteiro, com ele doente e cantando como nunca", observa o diretor e baixista.
Evitar um tom sensacionalista foi uma questão de honra para os diretores, já que Cazuza sofreu bastante com isso no fim da vida. Um episódio marcante foi uma entrevista dada à revista "Veja" em abril de 1989, pouco antes do lançamento do disco "Burguesia". Quando a publicação chegou às bancas, a manchete não fazia menção ao disco. Em vez disso, estampava: "Cazuza - Uma vítima da Aids agoniza em praça pública". No longa, a mãe de Cazuza, Lucinha Araújo, conta como o filho quase morreu ao ver aquilo.
Uma semana antes do fim, Cazuza foi à festa de aniversário de Flora Gil. Nesse dia, ele conversou sobre a morte com o marido da aniversariante, Gilberto Gil, de uma forma resignada. O depoimento de Gil sobre esse encontro é um dos momentos emocionantes do filme. A canção "Um Trem Para as Estrelas", parceria dos dois artistas, ganhou novo arranjo de Nilo Romero e está no longa, cantada por Gil.
A música foi lançada originalmente no álbum "Ideologia", que também tem uma história curiosa.
"A gravação de 'Ideologia' foi feita a toque de caixa. A banda gravava a base instrumental de uma canção à tarde, e Cazuza colocava a voz à noite. No dia seguinte, já começava uma nova faixa", conta Nilo.
PASSEIO PELA VIDA E A ARTE DE CAZUZA
Curador da exposição "Cazuza Exagerado", Ramon Nunes Mello, nascido em 1984, não chegou a ver o seu ídolo musical no palco, assim como o diretor Roberto Moret. Apresentado ao Barão Vermelho na pré-adolescência por um tio que lhe emprestava discos de vinil, ele se tornou especialista na obra 'cazuziana'. É organizador dos livros "Meu Lance é Poesia" e "Protegi Teu Nome por Amor", o primeiro com 238 poemas de Cazuza, escritos entre 1975 e 1989, e o segundo, uma fotobiografia de Cazuza, organizada por ele juntamente com Lucinha Araujo.
"A exposição tem nove salas, num espaço de 1.200 metros quadrados, no Shopping Leblon. A ideia é trazer desde a gravidez da Lucinha até a fase final da vida do Cazuza. Eu usei como base a fotobiografia que fiz com Lucinha. Fiquei mais de um ano trabalhando no acervo, catalogando material e entrevistando mais de cem pessoas. A mostra tem depoimentos de personalidades que conviveram com Cazuza desde que ele cursava teatro na Escola de Artes Visuais do Parque Lage", descreve o curador.
Numa das salas da expo, a mãe, Lucinha (na tela ao fundo); e Cazuza com o pai, João Araújo (no primeiro plano). Foto: Eduardo Fradkin
Entre as muitas atrações reunidas naquele espaço, contam-se uma foto de Ney Matogrosso feita por Cazuza num show em 1976 e o áudio original da fita demo do Barão Vermelho que Ezequiel Neves ouviu pela primeira vez, e que o levou a indicar a banda à gravadora Som Livre. Também estão ali bandanas e roupas que Cazuza usou no período do Barão Vermelho, recortes de revistas e jornais guardados por Lucinha Araújo, bilhetes, cartas e poemas manuscritos e uma réplica de um carro que Cazuza usava para passear pelo Rio de Janeiro com os amigos.
Uma das últimas salas do percurso, batizada de O Tempo Não Para, reproduz o ambiente do Canecão e emociona os visitantes com um holograma de Cazuza cantando naquele palco. A exposição fica em cartaz até 31 de agosto e pode ser vista de segunda a sábado, das 10h às 22h, e domingos e feriados, das 13h às 21h. A entrada (inteira) custa R$ 80.
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