Como no título do seu álbum mais recente, cantora e compositora, membro do Bala Desejo, celebra sucesso e maturidade, em entrevista à UBC
Do Rio
Julia Mestre está num momento especial de sua carreira. Em turnê com o álbum "Maravilhosamente Bem", lançado em maio, esta carioca de 29 anos, membro da cultuada banda Bala Desejo, colhe uma enxurrada de críticas positivas — e muitas audições nas plataformas digitais — para o seu trabalho solo. E não só no Brasil.
São muitos, entre os recém-alcançados 2 milhões de ouvintes mensais no Spotify, os seus fãs estrangeiros, sobretudo de nações de língua espanhola. A ponte com a cultura hispânica é evidente nas diversas gravações feitas por ela nesse idioma desde que surgiu no cenário musical, em 2017 (seu primeiro EP foi "Desencanto"; desde então, havia lançado dois álbuns solo, "Geminis" e "Arrepiada", além de "Sim Sim Sim", com o Bala, premiado com um Grammy Latino). Em "Maravilhosamente Bem", parece mais à vontade do que nunca para selar o abraço linguístico com os países do nosso entorno — no título e em trechos de "Cariñito" e, sobretudo, na regravação de um sucesso do salsero dominicano Rey Reyes, "Vampira", em versão dark, ou "thriller", como ela descreve.
Ao longo deste disco de rock alternativo cheio de climas, ora dançante, ora onírico, ora reflexivo, ora explosivo, Julia se lança em seu projeto mais maduro, no qual assume as rédeas criativas e imprime a tudo (letras, melodias, arranjos, clipes, material gráfico, comunicação em redes sociais) a estética vintage, de homenagem aos anos 1970 e 1980, que se tornou sua marca. Das 11 músicas, só três não são escritas por ela (sozinha ou com colaboradores): a já mencionada "Vampira"; "Interlúdio dos Amantes" (de Alexandre Queiroz e Gabriel Quinto); e "Seu Romance" (de Tom Veloso e Matheus Gonçalves).
Nas demais, fica evidente a sintonia alcançada entre a artista e seus parceiros Gabriel Quinto, Gabriel Quirino e João Moreira. Os quatro assinam juntos a produção do disco.
“Adoro essa estética (nostálgica), sempre flertei com ela. No ‘Maravilhosamente Bem’, pela primeira vez sinto que consegui trazer um pacote completo, uma harmonia total entre imagem e som. Quando faço um álbum que tem referências nostálgicas, quero trazer esse sentimento para a imagem. A nostalgia é muito forte porque faz você se conectar não só com o que eu estou trazendo, mas também traz uma lembrança própria do seu passado, da sua memória afetiva”, afirma, nesta entrevista com a UBC, a cantora e compositora que, às portas do salto para o mainstream, vê esse passo como uma grande incógnita: “O futuro é um mistério, não sei o que me espera… Mas tenho certeza de que é lindo.”
Esse amor pelo vintage de onde vem?
JULIA MESTRE: Vários caminhos me fazem chegar a essa resposta. A gente vai tendo várias intervenções na trajetória que definem o que a gente é, o caminho que quer seguir, o que a gente sente que nos representa. A gente escolhe a própria trajetória e decide como se mostrar. Lancei o primeiro EP em 2017 e não parei mais. Por muito que eu amasse o teatro, com a música eu podia ser dona do meu próprio roteiro, criar em cima da minha própria escrita. No meio da pandemia, nasceu o projeto do Bala Desejo, e a união dos quatro artistas (ela, Dora Morelenbaum, Zé Ibarra e Lucas Nunes) foi uma catarse, uma virada de chave para mim. Realmente me empoderou e me fez sentir uma persona artística forte. Sempre me considerei tímida, por trás dessa franja tem uma personalidade supertímida (risos). Esses personagens que invento, com os quais brinco, são um jeito de me proteger. Com eles, me sinto poderosa, performática, elegante, uma Mulher Maravilha. E, especificamente, os anos 70 e 80 têm a ver com referências que admiro. Rita Lee, Marina Lima, Sade… bebi muito delas para ser quem eu sou. Sou filha disso, tenho carinho por isso. Mas não olho só para o passado, olho para o futuro. Mesmo com referências nostálgicas, meu trabalho é contemporâneo. ‘Maravilhosamente Bem’ pertence ao hoje.
A Rita é uma inspiração particularmente forte?
Muito. Tenho muitas referências a ela no meu trabalho. Sou uma sementinha da trajetória dela. Foi uma mulher revolucionária na indústria musical, no rock brasileiro, uma compositora de altíssima qualidade, e tem vários recordes: a compositora mais censurada durante a ditadura, também foi quem mais fez aberturas de novela. E tem grandes hits, atravessando gerações. Contagiou os meus pais e me contagia. O meu trabalho vem flertando e namorando muito com ela. E aconteceu uma coincidência que não foi pensada, mas que acabou fazendo todo o sentido: o meu álbum foi lançado dia 8 de maio, mesmo dia da partida dela. Como uma sementinha, um ciclo da vida, algo que fica. Uma pessoa que me entrevistou, antes do lançamento, foi quem observou isso, perguntou se eu tinha escolhido a data de propósito. Comecei a chorar, foi muito forte. A partir do que ela trouxe, assim como a Marina Lima, mas a Rita principalmente, eu posso ser o que sou. Tem muito de Rita Lee em mim.
Essas grandes cantautoras que você admira são e foram mulheres que puderam se impor e dar voz aos seus próprios pensamentos, às suas composições… Hoje, você também pode fazer isso. Mas nem todas tiveram a mesma sorte.
Exato. Sinto que hoje, pela trajetória do empoderamento de tantas mulheres antes de mim, e pela trajetória de empoderamento da música independente, as coisas são bem diferentes. Tenho mais lugar para ser a dona dos meus próprios roteiros. Talvez no passado isso não fosse possível. Admiro muito essas pioneiras, admiro essa estética do passado. Mas também me sinto muito inserida nos dias de hoje. Sou feliz por ser uma artista de agora.
Entre todos os companheiros do Bala, você é a que parece estar mais perto de um salto para o mainstream. É um desejo? Você se imagina ocupando esse espaço de mercado?
O futuro é um mistério, e eu adoro mistérios. Trabalho com luz, sombra, mistério, é o mote do show do ‘Maravilhosamente Bem’. O futuro me fascina, não sei o que me espera… Mas tenho certeza de que é lindo. Agora, claro, o meu desejo é poder continuar a ser uma missionária da música. Ela é quem vai me guiar. E o que acho mais bonito que a música tem é que ela chega sempre antes de mim, eu só vou correndo atras. Quando lanço (música) para mundo, já não tenho noção de onde foi parar, para que ouvidos, para que pessoas está sendo trilha sonora. Quando vou mais tarde, presencialmente, entregando shows ao vivo no palco, trocando, é quando chego depois dela, presencialmente. E já tem vida própria. E e isso é o mais bonito. Adoro ser surpreendida pela música. Nunca imaginei que estaria onde estou, mas não paro de aprender e me sinto mais madura agora do que no ano passado. E, no ano que vem, com certeza mais do que hoje. A estrada te ensina, a trajetória é a maior escola. De ‘Mestre’, ainda me sinto aprendiz. Mas tenho a expectativa de poder chegar a mestre.
Artistas jovens e talentosos, como Jão, Anitta e outros inseridos no mainstream, sofrendo as pressões pelo sucesso e a constância, tiveram a coragem de parar, desacelerar, falar inclusive de burnout. Vale a pena se lançar nesse turbilhão?
Sinto que, a cada ano que passa, a pressão aumenta de verdade. Mas tenho como maior estimulo a música, sinto que é ela que me dá força para seguir, porque contém toda a verdade. O mais importante nessa trajetória é encontrar sua família musical, com quem você possa crescer e construir junto. Eu tenho toda uma família por trás, meu último disco foi produzido por várias mãos: por mim, pelo Gabriel Quinto, pelo Gabriel Quirino e pelo João Moreira. Fizemos juntos os shows ao vivo do meu álbum passado, rolou uma química bonita, e sinto que a gente compartilha a mesma estética e, principalmente a mesma garra. A gente não faz nada sozinho. É uma grande responsabilidade carregar um nome de front, mas, se eu tenho um conselho nesse universo, é encontrar sua família, as pessoas que te fortalecem e constroem junto. É a melhor maneira de permanecer emocionalmente estável. Quando a gente conquista algo, conquista junto. E nos momentos difíceis também (está junto).
Momentos difíceis foram o ponto de partida do novo disco, não?
A primeira música que eu escrevi do ‘Maravilhosamente Bem’ foi ‘Sou Fera’. Comecei a compô-la em dezembro de 2023. Eu estava num momento pessoal difícil, e há um ano sem compor. Como de costume, tenho o meu caderninho de poesia, faço sempre o exercício de escrever meus pensamentos. E escrevo em forma de verso para exercitar a prática da composição. Ali, naquele momento pessoal complicado, estando no meio de uma turnê, com o Bala, escrevi ‘Sou Fera’, em que me exponho: quando estou sobre o palco, mostro as garras, mostro força. Mas, se você chegar perto, estou lambendo as feridas e uivando pra lua. A gente vive esse duelo interno constantemente. Sou uma pessoa que espera muito os sinais do mundo. Ao compor aquela música, falei: caramba, nasceu uma chama, tem que apontar para um novo projeto. Então, liguei para os meus parceiros: ‘vamos fazer uma imersão criativa, eu só tenho uma música.’ (Risos). Nesse meio tempo, só de chamá-los, já comecei a escrever. O que me faz pensar: marcar um tempo (para criar), propor-se a novos projetos, já é meio caminho andado para fazer acontecer. As canções começaram a sair de mim. Como um raio, em três meses, saiu o repertório inteiro. E a última foi ‘Maravilhosamente Bem’ Comecei para baixo e terminei viva, cheia de felicidade, celebração. Decidi dar esse nome ao novo álbum. Foi quase um projeto que veio como salvação.
VEJA MAIS: O clipe de 'Sou Fera'
De ontem para hoje você ultrapassou 2 milhões de ouvintes mensais no Spotify. É um número muito bom. Que sensação isso traz?
Quando a gente está fazendo música, tem o dever e a missão de fazer um trabalho que possa contagiar outras pessoas, que seja um trabalho para estimular outras criações. E que seja a trilha sonora de muitas pessoas. Quando vejo (esse número), sinto que meu trabalho tem sido contagiante, e isso me estimula mais ainda. É um ciclo. Eu sinto que receber esse feedback do público me contagia a querer criar mais, me inserir mais, estar mais aberta à criação. É uma troca, uma relação de amor recíproca. Isso me dá mais gás ainda, e já me acende a fogueira para continuar a criar. Quem sabe o próximo álbum vem logo mais?
Essas métricas também podem aprisionar? Como aquele desenho que os nossos pais colam na porta da geladeira e que a gente sofre tanto para voltar a repetir, para não sair mais daquela porta?
Com certeza, quanto mais o trabalho tem alcance, maiores são a cobrança e a responsabilidade. Mas, se não fossem esses gatilhos, eu não teria tentado trazer com tanta excelência o ‘Maravilhosamente Bem’ para o mundo. A régua fica lá em cima, mas, por enquanto, ela me serve como combustível. Eu me sinto uma pessoa criativa e com espontaneidade no trabalho. Com um microfone na mão, com seguidores, você se sente na responsabilidade de passar uma mensagem.
Você flerta muito com o espanhol nas suas músicas…
No ‘Maravilhosamente Bem’, só tem três que não são minhas, e uma delas é do Rey Reyes, da República Dominicana, uma salsa que virou thriller (risos). Minha mãe, Regina Mestre, é de Mallorca. Tenho sangue meio espanhol, meio brasileiro, e isso influencia minha criação e minha trajetória. Tenho constância ao trazer a língua espanhola para os meus projetos. E seria um grande sonho da minha mãe eu fazer um disco inteiramente de canções em espanhol. É uma pesquisa que eu gostaria muito de fazer, como homenagem à minha mãe. O meu maior desejo é poder olhar para trás e ver muitos discos.
E com o Bala, virão outros?
A gente gostaria de fazer uma segunda fase, um segundo disco. A gente cresceu muito com o ‘Sim Sim Sim’. Sempre olhamos o Bala como uma banda que é uma união de artistas independentes. Como os Tribalistas ou os Doces Bárbaros, algo assim. Queremos, sim, fazer o segundo disco, mas agora estamos nessa missão de trazer nossos trabalhos autorais. E, quando olhamos individualmente cada um, entendemos muito mais o Bala. Cada um de nós tem uma linguagem muito personalizada, e acho que isso é o mais rico. Por isso a gente entende mais sobre o Bala, sobre aquela mistura. Quatro artistas com personalidades muito impares, muito especiais, um caldeirão de ideias. Este ano, a ideia é continuar a divulgar os nossos projetos solo recém-lançados. Mas, para o ano que vem, quem sabe?
VEJA MAIS: O clipe de 'Maravilhosamente Bem'