Paralelamente, tramita projeto na Assembleia para estender a data a todo o estado; protagonistas da cena comentam o início de tudo
Por Eduardo Fradkin, do Rio
A banda Sepultura em foto de 1986, ano da apresentação que inspira o dia comemorativo. Foto: arquivo pessoal
"Eclipse total encobre a Terra/ A noite do juízo chegou/ Soldados do Anticristo são proclamados/ Para enviar almas ao inferno/ Catástrofe, destruição/ A humanidade é massacrada sem piedade/ Nuvens de enxofre estão no ar", vociferava o adolescente Max Cavalera, com poéticos urros num inglês incompreensível, em 1º de novembro de 1986.
A ocasião era o show de lançamento do primeiro LP do Sepultura, "Morbid Visions", no reduto underground Crepúsculo dos Deuses, em Belo Horizonte. Aqueles calorosos versos seriam repetidos muitas vezes pelo cantor e guitarrista desde então. Eles iniciam a canção que se tornou o primeiro sucesso do Sepultura, "Troops of Doom". A performance inaugural do disco, porém, só ganharia reconhecimento público depois de 39 anos, ao ensejar uma data festiva no calendário da cidade. Este ano será celebrado, pela primeira vez, o Dia do Heavy Metal, em Belo Horizonte, neste 1º de novembro.
Sancionada no fim de maio, a lei proposta pela vereadora Michelly Siqueira visa a fomentar "atividades culturais e educativas de promoção e valorização do heavy metal". Paralelamente, está em discussão na Assembleia Legislativa de Minas Gerais outro projeto de lei, apresentado pelo deputado Professor Cleiton, que propõe instituir a mesma data comemorativa em âmbito estadual. Um dos membros da comissão de cultura que tem debatido o assunto em audiências na Assembleia Legislativa é Jairo Guedz, guitarrista do Sepultura entre 1985 e 1987 e, desde 2020, líder da banda The Troops of Doom.
"A gente está elaborando vários outros projetos. Um deles é a criação de um museu virtual sobre todas as bandas de metal nascidas em Minas Gerais. Por ser virtual, ele poderá ser visitado por fãs de metal extremo do mundo inteiro. Outras iniciativas são a possível criação de um museu físico em Belo Horizonte e o reconhecimento e a identificação dos locais onde essas bandas nasceram, tocaram e ensaiaram. Então, trata-se de um projeto bem mais amplo do que apenas um dia comemorativo", conta Jairo, que estará em Berlim neste primeiro Dia do Heavy Metal, para um show do Troops of Doom.
Jairo (segundo a partir da esquerda) e os companheiros do The Troops of Doom. Foto: Maycon Avelino
TERRA DE METAL EXTREMO
Nos anos 1980, Belo Horizonte se tornou o epicentro do metal nacional, concentrando bandas que praticavam as vertentes mais extremas desse gênero: o thrash e, sobretudo, o black e o death metal. Isso se traduzia em vocais rascantes ou guturais, guitarras sobrecarregadas de distorção, bateria vertiginosa e letras anticristãs. Dessa cena, despontaram nomes como Sepultura, Sarcófago, Overdose (o mais "polido" entre seus pares), Mutilator, Chakal, The Mist, Sextrash, WitchHammer, Holocausto e, já nos anos 1990, Eminence e Drowned. Mas que circunstâncias fizeram com que os mineiros adotassem, em sua maioria, um estilo mais radical?
"A gente não tinha dinheiro e não tinha equipamento decente, então o som que saía dos amplificadores era aquela pancada", responde o cantor Vladimir Korg, ex-Chakal e atualmente no The Mist (além de trabalhar na Secretaria de Meio Ambiente de Belo Horizonte). "A gente emprestava instrumentos e amplificadores uns aos outros, colava cartazes de shows uns dos outros; além disso, a gente destoava da sociedade mineira da época, que era muito religiosa e conservadora. Em alguns restaurantes, os garçons se recusavam a nos atender. Nas ruas, éramos parados pela polícia e atacados por (play)boyzinhos que se juntavam para nos agredir e tentar cortar nossos cabelos compridos. Então, entre nós, havia um sentimento de comunidade. Era um movimento. Hoje, o que temos é uma cena, inclusive com muitas bandas e shows. Mas, antes, era um movimento.”
Um catalisador para esse movimento foi um modesto estabelecimento comercial.
"Aqui, no início da década de 80, os roqueiros e metaleiros eram outsiders. Ficavam trancados no quarto, ouvindo seu som. Saíam para dar um beijo na tia, que estava de visita, e voltavam para o quarto. Isso mudou graças à (loja de discos) Cogumelo, que virou ponto de encontro", lembra Vladimir, ex-cliente e ex-funcionário daquele negócio.
Vladimir à frente do The Mist. Foto: Iana Domingos
COGUMELO NUCLEAR
Alguns anos depois da loja, foi fundada a gravadora Cogumelo Records, que lançou, em 1985, o primeiro registro fonográfico de Sepultura e Overdose, o EP "Bestial Devastation/Século XX", dividido entre as duas bandas (e reza a lenda que os fãs do Sepultura arranhavam o lado do disco ocupado pelo Overdose). Dali em diante, a Cogumelo produziu uma discografia impressionante, gravando incontáveis bandas mineiras de música pesada e até algumas de outros estados, como a baiana Headhunter D.C., a carioca Dorsal Atlântica ou as paulistas Nervochaos, Vulcano e Ratos de Porão.
"A gente rastelou um matagal para as gerações seguintes andarem num gramado florido. Se você olhar as contracapas dos discos de metal extremo da Cogumelo, vai ver que muitas guitarras, baixos, cintos de balas e coletes jeans vão se repetir, porque a gente emprestava equipamentos, roupas e acessórios uns para os outros. Eu pegava a guitarra do Mutilator, o Paulo (Xisto, do Sepultura) emprestava o contrabaixo dele para o baixista do Armagedon... isso é uma coisa legal que se perdeu com o tempo. Mas eu não sinto falta da perseguição que a gente sofria", pondera Jairo Guedz. "Apanhei muito, fui levado para a delegacia e para o trailer da polícia que ficava na Praça Sete, porque eu usava cinto de bala, me vestia de preto, dava uns berros na rua e chutava umas latas de lixo.”
É preciso admitir que a atitude do músico em relação ao saneamento público não era das melhores, mas, em sua defesa, pode-se especular que talvez as lixeiras chutadas fossem vistas, metaforicamente, como os pilares de uma ordem social a ser derrubada.
"Quando faço turnês pela Europa, é comum me perguntarem que tempero temos em Belo Horizonte que torna o metal extremo feito nessa cidade tão único no mundo. Ele é mais agressivo, mais visceral. Eu acho que isso vem da carência de muita coisa e de um excesso de religiosidade e repressão. Aquela juventude não aguentou engolir isso e explodiu", opina Jairo, egresso do colégio Santo Antônio, da Ordem Franciscana.
Ele não é o único que define o metal como uma válvula de escape para aquela geração:
"Muita gente que formou bandas estudava em escolas católicas. No colégio Santo Antônio estudava o Cláudio (David, guitarrista do Overdose). Do colégio Dom Cabral veio o pessoal do Mutilator, do Overdose e do Sepultura. Era um colégio de padres muito rigoroso. Eu conversava com o (baterista) Iggor e o (cantor e guitarrista) Max (fundadores do Sepultura), e eles tinham muita raiva daquele ensino. Quando perderam o pai, isso se exacerbou. As letras do Sepultura, no início, eram antirreligiosas por causa da vivência no Dom Cabral. Ali, foi nascendo um movimento bem explosivo. Foi uma explosão de ódio contra a opressão religiosa. E o lugar que acolheu essa gente toda foi a Cogumelo", complementa o baterista André Márcio (vulgo Zé Baleia), ex-Overdose, ex-Mutilator, ex-Eminence e… ex-aluno do Dom Cabral.
André Márcio. Foto: arquivo pessoal
REPRESSÃO TAMBÉM DO ESTADO
Assim como seus colegas cabeludos e revoltados com o catolicismo (seriam as pias batismais parecidas com latas de lixo?), André teve uma relação nada amistosa com as autoridades locais.
"Nós sofremos muita repressão, embora não usássemos drogas. A perseguição era por conta do visual, porque todo mundo usava camisa de demônio, cruz de cabeça para baixo, cabelo comprido. Quando passava uma viatura e os policiais nos avistavam, na mesma hora encostavam a gente na parede, mandavam esvaziar os bolsos e mostrar os documentos. O país estava saindo da ditadura, e o clima de repressão não iria desaparecer de uma hora para outra", descreve.
Há três anos, ele parou de tocar bateria profissionalmente e voltou toda a sua atenção ao estúdio Classic BH, que administra.
"Não tenho mais banda. Só toco por diversão, em casa. Eu trabalho de segunda a segunda no meu estúdio. Às vezes tem oito bandas fazendo ensaios num fim de semana", conta.
Pelo movimento no estúdio, parece que a cena musical em Belo Horizonte continua tão pujante quanto nos anos 1980. Mas o baterista acrescenta um dado fundamental:
"É quase tudo banda cover. São poucas autorais que passam por aqui. De oito bandas que vêm aqui num fim de semana, uma é autoral. Nas décadas de 80 e 90, as bandas eram todas autorais. Então, houve uma inversão.”
Representante da nova geração do metal mineiro, como membro da banda Seeker Becomes Seer, e também dono de um estúdio e um selo fonográfico, ambos batizados de Sonastério, o guitarrista Bruno Barros Martins, de 36 anos, dá mais detalhes sobre o cenário local. Seu estúdio recebe bandas iniciantes e consagradas, como a paulistana Angra. Mas guitarras com alto nível de distorção não são a trilha sonora mais habitual.
"O metal não está tão em alta como antigamente. As duas principais bandas que carregam a bandeira do metal em Belo Horizonte, hoje, são o Eminence e o Troops of Doom. No Sonastério, recebemos muitos artistas de música popular brasileira, rock alternativo, pop-rock e alguns de música instrumental", enumera ele.
PAPO SOBRE MERCADO
Nos próximos dias, o Sonastério promoverá um evento, em parceria com a UBC, voltado para a cena metal.
"A Daniela Sousa, (gerente regional) da UBC, vai falar sobre arrecadação, principalmente para quem faz turnês fora do Brasil. E o João Akerman, da ONErpm, vai falar sobre distribuição digital e a cena de metal dentro das plataformas de streaming. Também será uma oportunidade para a galera se reconectar e fortalecer a cena", diz Bruno.
Bruno Barros Martins, do Sonastério e da banda Seeker Becomes Seer. Foto: arquivo pessoal
Uma das presenças confirmadas é Alan Wallace, guitarrista do Eminence. Ao analisar o panorama atual, ele lamenta que várias bandas dos anos 1980 tenham sido extintas, mas não tem uma visão pessimista.
"O que mudou é que as tribos se dispersaram. Antes, a galera toda curtia thrash, heavy e death metal, e era comum ver aquele estereótipo do metaleiro cabeludo que ia aos shows usando jaqueta de couro ou colete com patches (bordados) de bandas. Hoje, o público está muito mais diversificado, e há muitos outros estilos musicais dentro do metal. Então, houve uma dispersão. Mas a cena continua forte e nunca vai acabar. Belo Horizonte ainda é um celeiro", afirma.
No Dia do Heavy Metal, em Belo Horizonte, a agenda do Eminence está livre, segundo Alan:
"Ainda não conversei com a prefeitura, mas espero que haja eventos espalhados pela cidade no dia 1º de novembro, celebrando o metal.”
Alan Wallace (segundo da direita para a esquerda) e os companheiros do Eminence. Foto: divulgação
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