A mistura de ações de Estado, educação, envolvimento das sociedades de autores e sorte que elevou a música de um país de menos de 10 milhões de habitantes a um patamar invejável globalmente
Por Alessandro Soler, do Rio
Polpudos investimentos públicos; educação musical estruturada e quase universal; disseminação amplíssima do inglês como segunda língua; incentivos à exportação de talentos; participação subvencionada de artistas, editores e empresários em feiras e festivais internacionais; exaltação aos exemplos de sucesso na mídia local; envolvimento direto das sociedades de autores e criadores em fomento e difusão; alta taxa de autocontrole dos criadores sobre todo o processo, da composição aos próprios selos; parceria constante de produtores com formadores de opinião internacionais...
O parágrafo acima já está grande, mas ainda longe de conter todos os fatores que explicam o sucesso inconteste da Suécia como um polo produtor de música, dos mais destacados globalmente. E dá prova de que a fórmula para o manejo profissional e sério da arte não é uma equação de poucas variáveis. O exemplo mais do que bem-sucedido de um país de apenas 9,6 milhões de habitantes que, num estudo de 2007 da Universidade da Pensilvânia, foi considerado líder planetário de exportação de conteúdos musicais por PIB começou a ser construído há mais de 40 anos, de modo deliberado, e tem, sim, um marco zero no imaginário pop mundial: o Abba.
Não que o quarteto que emplacou nove álbuns no topo das paradas inglesas e americanas e passou mais de mil semanas entre os 75 mais tocados naqueles mercados, a partir de meados dos anos 1970, tenha inventado a roda. Seu principal produtor, Stikkan Andersson, é caso estudado em escolas de negócios – com raro talento para antecipar-se a tendências, faro único para vendas e liderança inata, ele manteve o grupo coeso e em harmonia ao longo de uma exposição global com que a música sueca jamais poderia sonhar. Mas mesmo Andersson se beneficiou de um programa de educação musical que sucessivos governos de viés social-democrata implementaram no país nórdico já nos anos 1960, o verdadeiro pulo do gato que propiciou o “milagre sueco”.
No princípio eram as crianças
“As nossas kommunala musikskolan (escolas de música municipais) são a razão mais óbvia do nosso sucesso”, resume o editor de música do diário sueco “Expressen”, Anders Nunstedt. Atualmente, 98% dos jardins de infância daquele país têm educação musical, e, segundo diferentes estudos, 90% dos jovens de lá têm pelo menos conhecimentos básicos de como tocar instrumentos. “Depois, o sucesso do Abba, cujos membros estudaram em escolas de música como essas, foi uma injeção de estímulo às novas gerações. O acesso a instrumentos, noções de música desde muito cedo e o estímulo constante de pais e professores completaram o trabalho. Foi a versão sueca do 'yes, we can' (sim, nós podemos).”
Tornou-se algo sistemático. E viu-se que era bom. O concurso de talentos Eurovision, promovido desde 1956 por um pool de emissoras de TV daquele continente, virou a vitrine perfeita para a exposição desses novos talentos. A pequena Suécia, com 1,3% da população da Europa, é a segunda maior vencedora do Eurovision, com seis vitórias (adivinhe que grupo faturou a primeira, com a canção “Waterloo”, em 1974). O número impressionante é metade da soma de Irlanda e Reino Unido, duas potências da música pop global e falantes naturais da língua inglesa. Nenhum outro país “periférico” do ponto de vista cultural explorou tão bem a oportunidade de mostrar uma nova cara ao mundo.
Abba vence o Eurovision em 1974
A coisa foi crescendo, crescendo, crescendo... Virou uma religião. E beneficiou-se dela. Segundo dados do governo sueco, 600 mil cidadãos do país cantam em cerca de 500 coros das inúmeras igrejas cristãs protestantes espalhadas por lá. Trata-se de uma nação que valoriza a expressão musical no dia a dia. Tanto que a música virou assunto de Estado há décadas.
Em 1974, “coincidentemente” o mesmo ano em que o Abba levou para casa o primeiro título sueco do Eurovision, foi criado pelo Ministério da Cultura local o Conselho de Artes Sueco, órgão responsável pela difusão sistemática das artes locais. A cada ano, os inúmeros programas do Conselho consomem 1 bilhão de coroas suecas (ou cerca de R$ 520 milhões). E vão de bolsas de estudos para jovens talentos à subvenção para participação em feiras e festivais internacionais. A Suécia é um dos países mais ativos na maior feira de música do mundo, o Midem, com uma proporção de 10 negócios fechados anualmente para cada milhão de habitantes, segundo um estudo do pesquisador musical independente sueco Kim Forss, da consultoria Andante-Tools for Thinking AB. É das relações mais altas entre os países “periféricos”. E muitos dos participantes têm ajuda direta do governo para ir até o balneário francês Cannes a cada verão para participar do encontro.
Estado de bem-estar musical
Além disso, desde 1997 o Estado premia anualmente com dinheiro musical artistas locais em destaque, e alguns dos vencedores foram Roxette, Max Martin, Swedish House Mafia, Robyn, The Cardigans, The Hives e membros do Abba em carreira solo. Existe uma expressão lá que dá ideia da seriedade com que se trata a música. Em analogia aos estados de bem-estar social europeus, que primam por renda mínima para todos, benefícios sociais bem repartidos, educação e saúde universais e cuidados previdenciários assegurados, na Suécia há o socialbidraget som ligger bakom det svenska musikundret, ou “bem-estar social por trás do milagre musical sueco”. “Se os artistas locais não tivessem apoio financeiro direto do governo, e tivessem que trabalhar suas carreiras depois de expedientes das 9h às 5h num escritório, provavelmente não teriam tido o mesmo sucesso”, analisa Daniel Johansson, pesquisador musical da Universidade Lineu em Växjö.
Ao longo dos anos 1990 e 2000, a onda dos canais musicais, como a MTV e o VH1, ajudou a manter a “moda sueca”. Era cool descobrir novas tendências vindas daquele pequeno e próspero país, e, para a sorte dos talentos de lá, o que se viu nas paradas globais foi uma sucessão de novos artistas, alguns arriscando-se até a cantar em sua própria língua. Além de Max Martin, fenômeno cujas músicas foram gravadas por gigantes do pop global como Britney Spears, Katy Perry, Backstreet Boys e 'N Sync, ou de RedOne, que escreve para Nicki Minaj, Lady Gaga ou One Direction, astros locais como Andreas Carlsson, Kristian Lundin e Jörgen Elofsson conquistaram fãs e projeção fora de suas fronteiras. A globalização foi generosa com a música sueca. E a divulgação sistemática em rádios, além da inclusão maciça da música local em serviços de streaming, ajudaram a manter esse interesse em alta.
O maior dos serviços de streaming do planeta, aliás, é sueco. Nascido em 2008 a partir de uma start-up de Estocolmo, o gigante Spotify, cujo braço comercial hoje é sediado em Londres mas mantém suas áreas de desenvolvimento e pesquisa na capital sueca, apostou inicialmente por um catálogo local, por meio de acordos com subsidiárias escandinavas das grandes majors globais, como Warner e Universal. Hoje, conta com 80 milhões de assinantes nas Américas, na Europa Ocidental, no Sudeste Asiático e na Oceania, sobretudo. Uma mundialização que tem tudo a ver com a própria estratégia da música sueca.
Apoio das sociedades de gestão coletiva
Não podia ser de outra maneira: a música passou a representar uma fatia nada desprezível nas exportações do país. E a maior sociedade de gestão coletiva local, o Svenska Tonsättares Internationella Musikbyrå, ou Stim, decidiu potencializar os ganhos dos seus cerca de 77 mil membros (!) e estabelecer parcerias com associações de compositores, como a Skap e a FST, para fomentar ainda mais iniciativas que aumentassem a produção – e, consequentemente, os ganhos. “Além de servir aos nossos criadores com um bom sistema de gestão coletiva, financiamos o trabalho das associações de criadores de modo a melhorar as condições de quem vive da música. Essas entidades lutam pelos direitos dos artistas e pela sua liberdade de expressão artística e promovem a diversidade musical. Também financiamos a educação musical nas escolas e patrocinamos bolsas de estudos para revelar novos talentos desde idades muito precoces. Os futuros Max Martins estão na escola agora!”, afirma Kjell Holmstrand, diretor de comunicação e assuntos corporativos da Stim.
Estão na escola e já aprendem a gerir a própria carreira como um todo desde cedo. Segundo um levantamento do governo sueco, mais da metade dos artistas de lá se envolve diretamente na gestão das suas carreiras e participa de detalhes como turnês, distribuição e vendas. A roqueira Robyn é dona, desde 2005, do próprio selo, Konichiwa Records, assim como o rapper Rebstar (Today is Vintage Records) e o duo de electro-pop The Knife (Rabid Records). Um grupo de 13 artistas liderado por Peter Bjorn & John e Lykke Li é dono do Ingrid, um selo coletivo que está entre os mais atuantes do mercado sueco. Ao site sweden.se, Robyn explica o seu próprio ponto de inflexão, que também poderia se aplicar à vontade coletiva que catapultou a música do seu país a um novo patamar global: “Chegou uma hora em que a coisa não era mais brincadeira. (Ao criar o próprio selo), eu quis alterar minha situação e criar uma bolha (de sucesso) na qual eu pudesse decidir, eu mesma, meus próprios parâmetros.” Alguém duvida de que deu certo?