Como os avanços da indústria automobilística incorporam novas tecnologias para o consumo musical e ajudam a expandir o mercado — e os lucros dos criadores
Por Kamille Viola, do Rio
Ouvir música enquanto se dirige é um hábito quase automático. Espaço que só viu sua importância no consumo de música crescer, o carro sempre acompanhou as mudanças na indústria fonográfica, desde o primeiro aparelho de som (para discos de vinil!) embutido num automóvel, passando pelas fitas cassete, as rádios AM e FM e o bluetooth para audição de músicas a partir de um dispositivo móvel até chegar à incorporação do streaming e à rádio digital via satélite.
Há pelo menos dois anos, os principais modelos lançados nos Estados Unidos já trazem de fábrica um novo sistema de audição de músicas, transmissões esportivas, programas de debates e notícias que promete revolucionar o rádio no carro. No SiriusXM, o usuário compra um pacote de canais, habilita o aparelho do automóvel e pode desfrutar de todo o conteúdo via satélite, mesmo em áreas sem acesso à internet (e, portanto, sem streaming de música por plataformas como Spotify ou Deezer). Nissan, Toyota, GM e Volkswagen são algumas das montadoras que já aderiram ao modelo por lá. Uma alternativa sólida, sem dúvidas, a um avanço tecnológico que começou pela Noruega e que, dizem analistas, não deve demorar muitos anos antes de se consumar em países como o Brasil: o fim da FM.
É boa notícia para os titulares de direitos autorais no Brasil, uma vez que o modelo de cobrança às rádios levado a cabo pelo Ecad e a as associações que o compõem tem regras claras, é mais fiável e garante melhores ganhos do que o streaming, ainda sujeito a pagamentos mais baixos. Na época do anúncio do fim da FM na Noruega, o analista James Cridland afirmou que, “muito provavelmente, os atuais ouvintes de rádio, em vez de migrar para o serviço digital, simplesmente decidirão se conectar ao Spotify e outras plataformas similares” e que o rádio precisaria surpreender para continuar a ter relevância. Agora, ele mesmo diz em seu podcast Future of Radio, no site MediaUK, que sistemas como o SiriusXM podem ser a resposta que se esperava.
O streaming contra-ataca e faz parcerias com grandes montadoras. Spotify e Ford, por exemplo, já chegaram a um acordo por meio do qual os automóveis da fabricante americana saem de fábrica com a plataforma nativa nos aparelhos, dispensando o uso do bluetooth e do celular. O sistema permite controlar o aplicativo com botões no volante.
Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), Sergio Branco vê um movimento sem volta na direção do consumo sem mídia em carros. “A gente está na evidência da internet das coisas, um conceito que fala sobre objetos do dia a dia estarem conectados à internet”, analisa. “Plataformas de streaming como o Spotify criam playlists a partir da sua experiência como consumidor e da comparação do seu comportamento com outros usuários com gosto semelhante ao seu, então você não precisa sequer selecionar a música que quer ouvir. O carro já vai 'saber' o que você gosta de ouvir”, diz.
Com o ganho de escala, e melhores pagamentos por stream (demanda global que tem mobilizado criadores, artistas e atores da indústria musical em geral), espera-se um salto considerável nos ganhos nos próximos anos. “Os carros com direção autônoma são uma tendência mundial e que só deve aumentar”, diz o especialista Fabio Perrota Júnior, que antevê um grande crescimento concomitante do consumo de conteúdos audiovisuais pelos motoristas desobrigados de dirigir. “Músicas, filmes e outros produtos são formas de ajudar a distrair no trânsito.” Previsivelmente, espera-se um aumento considerável da produção para abastecer esse mercado em expansão.
// Bolachão tocando no carro? Desvia do buraco!
Os primeiros rádios de carro surgiram no fim da década de 1920, como explica o jornalista especializado em carros Jason Vogel. “Eram uns trambolhos tão grandes que ficavam embaixo do chassi ou dentro do painel. Funcionavam muito mal, de forma precária”, conta ele. Nos anos 1950, começaram a se popularizar os primeiros aparelhos valvulados, geralmente AM e em ondas curtas. Até então, a música não ocupava o maior espaço na programação das rádios, que privilegiavam notícias, programas de debates e informativos em geral. O salto da música ligada a esses aparelhos móveis começou mesmo nos anos 1960. Consolidada a era do rock, e com o pop despontando como a próxima grande revolução musical do século XX, os rádios passaram a vir embutidos nos painéis dos carros e transistorizados, o que diminuiu seu tamanho.
Foi também nessa época que se lançaram os toca-discos de vinil no painel, que comportavam compactos. “Pulava muito (a agulha), por mais mola que tivesse. Não fez muito sucesso”, diverte-se Vogel. “O usuário só foi começar a controlar as próprias músicas lá para o fim dos anos 60, início dos 70, com o primeiro toca-fitas de cartucho”, diz.
Na década de 1970, com o cassete, o toca-fitas virou uma grande febre. “Começaram a aparecer vários modelos. Teve uma onda de roubos, era perigoso você ter no Brasil, porque o pessoal arrombava o carro para tirar o rádio do painel. As marcas sonho de consumo na época eram TKR e Roadstar. A qualidade de som, que até então não era grande coisa, começou a melhorar com os amplificadores”, lembra o jornalista.
Nos anos 1990, surgem os primeiros CD players de carro. No início, assim como o toca-discos dos anos 60, também pulavam muito. “Era uma coisa pouco prática. Até que inventaram o chamado carrossel, um troço que você botava na mala do carro, comportava seis CDs e tinha comando. Isso foi considerado uma evolução, primeiro em qualidade de som, depois porque você não precisava ficar mudando o disco, podia fazer uma viagem do Rio a São Paulo sem ter que trocar nada.”
A revolução, no entanto, não durou nem 25 anos: logo veio o mp3. Formato que também já foi superado, dando passo às atuais aposta da indústria: o rádio digital e o streaming.