Trolls e robôs oferecidos por empresas inflam artificialmente as audições de determinadas canções ou artistas nas grandes plataformas, trazendo prejuízos multimilionários a titulares do mundo todo
De Madri
Lançado há pouco mais de um mês, um código de conduta global contra a manipulação de streams em plataformas de áudio e vídeo vem ganhando cada vez mais adeptos, também no Brasil. Caracterizada pela compra e venda de audições falsas, essa má prática se arrasta, sem muito alarde, há anos, sem que as plataformas ou autoridades consigam coibi-la totalmente.
Em anúncios na internet, “empresas” — brasileiras inclusive, mas principalmente chinesas e russas — disponibilizam abertamente o serviço e prometem até centenas de milhares de audições ou visualizações por meio de usuários reais integrantes das chamadas “fazendas de trolls” ou, principalmente, através de robôs que acessam os conteúdos automaticamente. Como a distribuição dos royalties em plataformas como Spotify, Apple Music ou Amazon Music responde à proporcionalidade dos streams de cada obra em relação ao conjunto escutado em determinado período, a inflação artificial de streams é uma grande injustiça e tira dinheiro legítimo de uma música verdadeiramente escutada para transferi-lo a uma que se beneficiou dessa fraude.
Não há dados oficiais sobre as perdas, mas a revista “Rolling Stone”, baseada em “estimativas de executivos de grandes selos globais”, calculou os prejuízos anuais aos titulares em coisa de US$ 300 milhões.
Líder na iniciativa de denunciar o problema e pedir uma solução às plataformas, a IFPI, Federação Internacional da Indústria Fonográfica, trabalhou dois anos na elaboração do código de conduta. Desde então, grandes gravadoras internacionais e nacionais (Sony, Warner, Universal), editoras, plataformas de gerenciamento de dados (DSPs) e até serviços de streaming como Spotify, Deezer e Amazon aderiram ao documento, que, entre outras coisas, pede um maior intercâmbio de informações entre seus signatários, de modo a detectar movimentos não usuais nas audições de uma música ou poder conhecer mais sobre os perfis que mantêm atividades suspeitas. O código pede ainda que os titulares dos direitos — selos, editoras — beneficiados não se mantenham calados e ajudem a denunciar a manipulação, caso tenham indícios dela.
Atualmente, políticas de privacidade das grandes plataformas tornam muito difícil o compartilhamento de informações sobre os usuários. E, segundo fontes do mercado, muitos titulares não diretamente envolvidos na manipulação evitam denunciá-la, pois também se beneficiam economicamente da fraude.
“A manipulação de streams tem o potencial não só de causar um dano econômico aos provedores de streaming, aos titulares, aos artistas e aos anunciantes, mas também de distorcer a percepção da mídia e dos fãs sobre a popularidade de determinadas gravações, prejudicando os consumidores por influenciar o algoritmo. É um impacto em rede”, descreve a IFPI. “Quanto aos artistas, esses podem se ver competindo com músicas infladas artificialmente", o que pode até influenciá-los esteticamente.
Em maio do ano passado, a plataforma de streaming TIDAL, propriedade de Jay-Z e, segundo seus estatutos, com participação de outros artistas como Jack White, Madonna, Arcade Fire, Alicia Keys, Beyoncé, Rihanna, Kanye West e muitos outros bambambãs da indústria musical global, se viu envolvida no epicentro de um escândalo. O jornal norueguês “Dagens Næringsliv” publicou uma extensa investigação baseada em dados de um suposto disco rígido “obtido junto a fontes do TIDAL” que provaria que ao menos dois álbuns lançados na plataforma em 2016, “Lemonde”, de Beyoncé, e “The Life of Pablo”, de Kanye West, foram beneficiados deliberadamente pela manipulação de streams.
"Os números de ouvintes de Beyoncé e Kanye West foram manipulados à casa de muitas centenas de milhões de audições falsas, o que gerou pagamentos maciços de direitos a eles às custas de outros artistas”, sentenciou o jornal baseado em suas fontes. O diretor-executivo global do TIDAL, Richard Sanders, negou categoricamente a prática e anunciou uma investigação independente cujos resultados até agora não foram apresentados.
Principal sociedade de gestão coletiva de direitos autorais da Noruega, a Tono entrou com uma ação judicial contra o TIDAL na qual pede essarcimentos aos seus mais de 30 mil titulares. O processo se ampara na Diretiva Europeia de Direitos Autorais, que, embora não mencione especificamente o crime de manipulação de streams, traz diversos artigos sobre fraude digital nos quais a prática pode se encaixar.
Na Europa, é cada vez mais comum, aliás, que operações dos departamentos de crimes cibernéticos das polícias nacionais derrubem sites que oferecem a venda de streams falsos com base no conceito de fraude digital. No Brasil, de acordo com Paulo Rosa, presidente da ProMusica, a entidade que reúne os principais players da indústria fonográfica, ainda não há notícias sobre uma atuação mais incisiva das autoridades contra esta prática.
“Nos próximos meses, a tendência é que passemos a ver mais e mais (dessas ações e operações). Há uma tomada de consciência sobre esse problema, e o código de conduta ajudará a coordenar as ações para combatê-lo. O que a gente tem de mais precioso na indústria da música, hoje, é o mercado de streaming, ele está se tornando a fonte majoritária de receita. No Brasil, representa 95% das receitas de música gravada. Daí, a importância de se proteger esse mercado, além de proteger os direitos de todos os titulares envolvidos na cadeia produtiva - neste caso, os autores, editores, artistas, produtores”, ele afirma.
“A gente já sabe que fazendas de trolls oferecem cliques falsos em perfis de redes sociais há muitos anos. Mas, agora, isso impacta na monetização, na distribuição de royalties que temos nas plataformas de streaming musical e no YouTube, não se trata mais de algo 'inocente'. A manipulação traz prejuízos reais a quem cria, a quem produz. Consideramos frágeis as medidas tomadas pelas plataformas até agora para enfrentar essa grave questão. O YouTube sequer assinou o manifesto e o código de conduta”, critica Rosa, que faz um chamado a todos os grandes players do mercado nacional a aderir ao código de conduta. "Também estamos estudando formas de acionar judicialmente empresas nacionais que oferecem streams falsos. O mercado já não pode ficar de braços cruzados."