Repetir fórmulas (preguiça), ter pouca generosidade com o público (avareza), desprezar certos artistas e cenas (ira), mirar só os intérpretes consagrados (soberba) e outros erros comuns cometidos por criadores novatos
Por Matheus Passos Beck, de Porto Alegre
Em “Rocketman” (Paramount Pictures, 2019), um jovem Reginald Kenneth Dwight, mais tarde conhecido em todo o planeta como Elton John, leva uma fita demo a uma gravadora de Londres — e é rejeitado. Consegue trazer consigo para casa, no entanto, algumas composições de um certo Bernard, novato como ele. A fortuita coincidência coloca as letras de Bernie Taupin nas mãos do pianista que viria a se tornar um dos grandes do pop. O resto, como se sabe, é história.
Uma das parcerias mais longevas e exitosas da música pop mundial nasceu ao acaso, mas é exceção se considerarmos a indústria por trás dela. Casos assim são raros, e mais raros ainda em um período em que as transformações são constantes e as fórmulas, nada infalíveis.
Para entender o que um compositor deve fazer — e, sobretudo, o que deve evitar a todo custo — na hora de se fazer conhecido (e gravado, claro), entrevistamos uma intérprete, um produtor e executivos de selos e editoras. Em comum aos discursos, a insistência pela busca de uma originalidade. Exatamente como sempre fez Pablo Bispo.
Há pouco mais de cinco anos, o carioca era gerente de banco e voluntário em hospitais no projeto Doutores da Alegria. Hoje, é o produtor e compositor que colocou “Essa Mina É Louca”, de Anitta, no topo das paradas da “Billboard Brasil”, em 2015, que transformou “K. O.”, de Pabllo Vittar, na música do ano, em 2017, e que produziu “Dona de Mim”, álbum de estreia de IZA e uma das sensações da última temporada.
“Não tem a maneira certa de começar a compor. A melhor maneira é a que melhor se adequa a você”, resume. “(Deve-se pensar em) qual o tipo de trabalho que quer ter, qual a postura de mercado, aonde você vai... Não se submeta ao que está fazendo sucesso. 'Se está todo mundo fazendo sertanejo, vou fazer sertanejo'. Ok, mas qual é a sua verdade?”, questiona.
A cantora Duda Brack é outra das intérpretes da nova geração que fogem de fórmulas. Em seu álbum de estreia, “É”, a gaúcha se associa a compositores novos e que compartilham de suas crenças na música. Por isso, afasta qualquer possibilidade de gravar algo embalada pelas regras do mercado: “Não tenho gravadora nem produtora. Eu me autoproduzo ou coproduzo com artistas com quem escolho trabalhar. Mas, mesmo que as tivesse, sinto que a escolha do repertório seria uma tarefa intransponivelmente minha.”
Players do mercado dito mainstream compartilham ideias semelhantes. Diretor geral da Sony/ATV, Aloysio Reis destaca que “todos os caminhos são difíceis, mas válidos”. O que não pode, segundo o executivo, é desistir ante o primeiro 'não'”.
Lena Lebendiger, editora da Fermata do Brasil, tem em seu catálogo nomes internacionais como Neil Young. Ela crava: a receita da fita demo colocada embaixo da porta da gravadora não existe mais, o que, de forma alguma, dificulta a introdução de um compositor no mercado. Mesmo que seja menos glamuroso, o caminho tradicional — começar procurando artistas locais e disponibilizar suas composições na internet — é mais eficiente.
Com base nas conversas que tivemos com esses especialistas, elaboramos uma lista dos sete pecados do compositor na hora de espalhar a palavra... e as melodias. Confira.
Não ser generoso com o público (avareza)
Um erro comum é escrever pensando só em artistas, intérpretes, bandas, produtores. É fundamental ter em mente e comportar-se sempre de maneira generosa com o público. O último ponto desta trama, afinal, é o mais importante. “A gente não faz música para o artista. Tem que tentar entender qual é o seu público”, diz Pablo Bispo. “Mesmo fazendo para o artista, é o público que vai consumir. Tem que encontrar a verdade do artista para ele amplificar esta mensagem.” Acredite: parece clichê, mas ter em mente o público em primeiro lugar faz toda a diferença, fica visível na obra.
Só mirar intérpretes consagrados (soberba)
A música não se submete a anacronismos, ainda mais em 2019. Apegar-se ao velho e fechar os ouvidos para o novo, para quem faz coisas interessantes concomitantemente a você, é erro crasso. A composição não deve mirar uma voz específica, por muito consagrada que ela seja. Ao contrário, pode estar em um intérprete desconhecido a assinatura que sua canção necessita. Seja humilde e saiba prestar atenção a gente que está começando, não desprezando-a em função de uma aspiração (legítima) a atingir os grandes medalhões. Aloysio Reis reitera que “um caminho interessante é buscar um intérprete também novo, que tenha as mesmas ambições de conquistar um lugar (no mercado), e estabelecer uma parceria com ele para gravar demos de forma simples e barata.”
Repetir fórmulas fáceis (preguiça)
O compositor deve buscar seu estilo, não importa o que creia que “o mercado” determine. O que faz sucesso em um determinado momento ou lugar pode não valer em outro espaço ou ocasião. Se você compões canções de rock ou samba, não mude de uma hora para a outra para o forró. Seja original! Duda Brack faz o alerta: “Ninguém deve fazer nada para (deliberadamente) chamar a atenção. (Como intérprete), costumo me interessar por pessoas autênticas, compromissadas com a sua arte, que procuram ir além. Mais do que qualquer outra coisa, isso gera um ponto de conexão e curiosidade.”
Desprezar artistas “diferentes” (ira)
Não se identifica com os artistas de sua cidade ou com o estilo do seu estado? Não os consuma, mas não os ignore ou, pior, hostilize. Muitas vezes, um festival com vertentes distintas pode realçar seu talento e até apresentá-lo a outros artistas que queiram compartilhar sua música.“Por que não se conecta com alguém que produz e está começando? Ou por que não chama outras pessoas que querem cantar e forma uma cena? Foi assim que fizemos com a Pabllo (Vittar), a Glória (Groove), a Aretuza (Lovi) e a IZA”, revela Bispo. “É importante ter esse direcionamento do espaço. Quanto mais consegue ser assertivo, mais consegue atingir. Às vezes vai aos poucos, às vezes de primeira, mas tem que fazer a sua verdade.” Sem se fechar hostilmente a nada ou ninguém.
Querer engolir o mundo todo de uma vez (gula)
Ser reconhecido nacional e internacionalmente é consequência. A origem de tudo está no som ao redor. Conheça quem compõe, interpreta e executa a música de seu nicho. Com conexões fortes localmente, será mais fácil expandir os nós para o país e o mundo. “Tem que apostar em networking, mas começar localmente”, sublinha Lena Lebendiger. “Tentar um artista consagrado é mais difícil. Se começar com alguém próximo a você, quando ele estourar, você vai junto.”
Usar as redes de forma desenfreada (luxúria)
As plataformas digitais são a nova fita demo, com o diferencial de que armazenam mais conteúdo, distribuem para o mundo todo e podem ser ouvidas simultaneamente por diversas pessoas, do empresário ao cantor. Distribua seu material na internet. “Mas da forma certa”, alerta Pablo Bispo. Há quem se exponha de modo desenfreado, exibicionista, sem tirar proveito das relações profundas e duradouras que podem surgir no ambiente digital. “Flertar” com o mundo todo no YouTube sem critério, por exemplo, não é uma panaceia. “Tem que entrar em contato com os núcleos de composição, com as pessoas que produzem. Os produtores estão ouvindo — ou deveriam ouvir. Eu escuto tudo. Tem sempre alguém de algum lugar do Brasil ou do mundo que tem uma ideia muito boa, e a gente tanta ouvir sempre”, diz Pablo. Ou seja, aposte em relações mais diretas, mais pensadas.
Desmerecer o trabalho alheio (inveja)
Se este for realmente seu sonho, não desista! Aloysio Reis destaca que o novo compositor, em caso de uma rejeição, não deve “achar que o mundo inteiro está errado e não reconhece seu valor.” Não se centre no sucesso alheio, faça o seu, tenha a humildade e o bom senso de escutar as opiniões de quem pode lhe agregar e fazer crescer. “Quem escolhe esse caminho deve entender que a luta é grande e os obstáculos são muitos”, conclui o executivo.
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