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Alceu Valença, Prêmio UBC 2022
Publicado em 07/10/2022

Compositor, músico e cantor pernambucano é homenageado com troféu pelo conjunto da sua obra

Do Rio

Fotos de Leo Aversa

Alceu Valença é o ganhador do Prêmio UBC 2022. O anúncio é feito pela associação nesta sexta-feira, 7 de outubro, Dia do Compositor Brasileiro. O troféu para o compositor, músico e cantor pernambucano pelo conjunto da sua obra reconhece um trabalho fora de série e consistente, cujo marco inicial no mercado fonográfico foi há exatos 50 anos, com o lançamento de "Quadrafônico", álbum gravado em parceria com Geraldo Azevedo.

A entrega do prêmio será realizada com uma grande festa presencial, na Casa UBC, no Rio de Janeiro, no próximo dia 8 de novembro.

No perfil a seguir, o jornalista e curador artístico Bruno Albertim reconstrói passagens da trajetória de Alceu, mestre da música popular, fusionador de estilos e fiel defensor das suas raízes nordestinas. 

 

Alceu, menestrel de mundos

Por Bruno Albertim, de Olinda (PE)

 

Filho do ex-deputado e jurista Décio de Souza Valença com a culta dona Adelma, Alceu Paiva Valença nasceu no primeiro dia de julho de 1946 em São Bento do Una, celeiro de cultura popular no Agreste de Pernambuco, e, na década de 1970, já era o que se anunciava: o inteligente aluno de Direito que preteria códigos civis pela música. Unia em si a rica cultura nordestina testemunhada nas suas primeiras infâncias — nas cantigas de cegos, xotes, baiões, cordelistas, circenses e poetas de feira — ao frevo, aos maracatus e caboclinhos, à poesia urbana do Recife, ao cinema do neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague Francesa, ao pop-rock e outras petulâncias da cena underground pernambucana. 

Com olhos para além das retinas, fartas cabeleiras graúnas e a voz agreste, Alceu vinha para acabar com o bom-mocismo da música popular brasileira.

Embora rejeite e até mesmo se irrite com qualquer comparação feita pela crítica entre sua trajetória e o Tropicalismo, ele também sempre carregou consigo a união de musicalidades: das mais densas do Nordeste e de outros brasis às rajadas do pop. 

“Mas eu tinha uma relação muito mais com o fado, com a granada, a música espanhola, o tango argentino, o bolero, com (Edith) Piaf e a música francesa... Porque era a música que tocava no rádio na minha época. Aí, eu digo que a melhor coisa do mundo foi não ter tido radiola porque, se eu tivesse tido, teria seguido as coisas da moda”, atesta Alceu, do alto dos seus 50 anos de uma carreira pontuada por diversos prêmios, mais de 40 discos e uma infinidade de hits que foi enfileirando no rádio, na TV e na mente de milhões de brasileiros. 

“Quando você pega o Tropicalismo com a musicalidade do (maestro Rogério) Duprat, isso é uma coisa. Mas, quando você pega essa relação com a anglofonia que os tropicalistas procuravam, é outra coisa completamente diferente”, compara Alceu, que só foi ter seu primeiro toca-discos depois de passar no vestibular para Direito.

“Papai também não queria violão, por causa de um tio Rinaldo, músico, que tocou até com Orlando Silva, mas não deu certo na carreira. Tinha medo que a gente trocasse os estudos pela música. Minha mãe fazia cinema em casa. Pegava fotos e projetava na parede. Até esse momento, eu não tinha qualquer relação com o violão. Um dia minha me levou para a Rua da Imperatriz, no centro do Recife. Eu tinha 16 anos, ela disse que ia fazer umas compras, mas na verdade, ia me dar um violão. Papai também viu que eu estava metido a intelectual e articulou esse presente junto com mamãe.”

Não que Alceu não tenha crescido num ambiente literário e musical. Na Fazenda Riachão, propriedade da família em São Bento do Una, além das manifestações populares da cidade, havia sempre saraus musicais e tertúlias poéticas: 

“Vinha gente até da cidade vizinha, Pesqueira, participar. Na primeira vez que subi num palco, tinha 4 anos. Perguntaram a uma tia se ela conhecia algum menino que cantasse, e ela me levou. Fiquei dando cambalhotas antes de cantar.” 

Já morando na Rua dos Palmares, no Centro do Recife de sua adolescência, passou a frequentar o cinema e a conviver com o maestro Nelson Ferreira e o poeta Carlos Pena Filho, vizinhos e amigos de seu pai. “Eu digo que ali era uma rua ‘carnavalódroma’, porque tinha as cirandas e os desfiles de maracatus e blocos de frevo do Recife”, lembra.

Depois de se formar em Direito, como queria o pai, Alceu começou enfim a inscrever as primeiras composições nos festivais da canção. Em 1970, arrumou a viola no bisaco e mudou-se para o Rio de Janeiro. Uma noite, o amigo Wilson Lira dava uma festa em sua casa, aonde Alceu foi na companhia do irmão Decinho. 

“Geraldo Azevêdo estava lá. Wilson pediu para eu tocar, e tive vergonha. Eu já conhecia o Geraldo de tocar com Naná Vasconcelos na TV Jornal do Recife. Fiquei com medo”, lembra. “Mas, antes de ir ao banheiro, eu toquei rapidinho, e ele me chamou: ‘Bicho, que porra é essa que você tem nessas mãos?'”

Geraldo chamou Alceu num canto, lhe mostrou uma melodia e, na hora, surgiu a primeira parceria e um grande clássico da música nordestina contemporânea. De um só fôlego, Alceu pariu a letra de "Talismã".

Como se o casamento entre ambos parecesse indissolúvel de véspera, em 1972 Alceu e Geraldo gravam, juntos, "Quadrafônico", o primeiro disco de suas vidas. Curiosamente, um disco arranjado pelo maestro tropicalista Rogério Duprat – de música nordestina “tradicional” e sem guitarras. 

“Por entender de música, foi Geraldo quem sugeriu Duprat, sob a concordância do produtor Cesare Benvenuti”. "Talismã", naturalmente, estava no repertório — o que lhes presentearia com o primeiro problema com a censura oficial brasileira, por conta dos versos “Joana, me dê um talismã/ Você já pensou em mais eu viajar?”. O censor acreditava numa alusão à maconha no nome da musa evocado na letra, metáfora desmentida diante do servidor pelo próprio Alceu — que alterou o nome para Diana.

Mais ou menos pela mesma época, um pouco antes, Geraldinho e Alceu decidiram convidar o lendário e, então, meio esquecido Jackson do Pandeiro para com eles tocar a embolada "Papagaio do Futuro" no Festival da Canção de 1970. 

Um dia, os dois se mandaram para a casa de Jackson, em Olaria, na Zona Norte do Rio. Recebidos por um irmão do artista ao portão, foram convidados a entrar e se depararam com Jackson com os pés molhados numa bacia, a mulher fazendo as unhas dele. “O que vieram fazer aqui?”, mandou um Jackson ressabiado com os “cabeludos”. 

“Ele nos disse que não gostava de cabeludos, porque a Jovem Guarda tinha acabado com o trabalho dos músicos brasileiros”, lembra Alceu. 

Ao ouvir a canção, Jackson vaticinou que a dupla lhe apresentara a embolada do futuro e aceitou o convite:

“Vocês são dois cabeludos que não são cabras safados.”

Mais que prestígio, estava em jogo um bom dinheiro. Ao saber que a canção vencedora sairia do certame com uma bolada de US$ 30 mil, Eneida, então mulher de Alceu e mãe do primogênito Cecéu Valença, acabou por convencer o marido a ir a um centro de umbanda que andava na moda entre as cabeças ilustradas da Zona Sul carioca. 

“Eneida dizia: 'Vamos lá, com esse dinheiro a gente vai criar Cecéu com tranquilidade'”, diz o pernambucano.

Alceu pensou diversas vezes em desistir. Mas atravessou o Túnel Rebouças em direção àquela casa neocolonial aos pés da Floresta da Tijuca. “Estava o povo todo grã-fino e intelectual recebendo o santo”, ri Alceu. De chapéu, voz afetada e barriga postiça sob a camisa, lhe esperava uma mulher. Alceu titubeou em voltar. “Pensa nos trinta mil”, lhe empurrou Eneida. 

A entidade, conta o cantor, lhe perguntou quanto ele ganharia e propôs um acordo: “Eu fico com 80%, e senhor com 20%”. Alceu encerrou a negociação na hora: 

“Como é que é? Eu faço a música todinha, e a senhora fica com oitenta por cento! De jeito nenhum!”

Como se lhe faltassem argumentos, o tal espírito deu um grito e “subiu”. A médium ficou no chão, deitada. Em alguns minutos, voltava com uma nova proposta: “Eu fico com setenta e o senhor, com trinta por cento”. O pernambucano manteve-se firme: “Mas eu vou pagar aos músicos, vou pagar a Jackson do Pandeiro, vou pagar a Geraldo Azevêdo! De jeito nenhum: eu fico com oitenta", encerrou Alceu. A entidade concordou.

O acordo, contudo, pareceu não ter sido para valer. Ao chegar ao ginásio do Maracanãzinho, Alceu avistou muitos dos frequentadores do centro na plateia. A torcida tampouco o ajudava. Com a música toda “atravessada”, o número conquistou corações e mentes da juventude transviada – para usar o termo da canção de seu amigo Luis Melodia – ali presente, mas foi um pouco mais que um fiasco. "Papagaio do Futuro" acabou desclassificada.

Logo veio a repercussão do álbum "Quadrafônico", porém, e o músico e cineasta bissexto Sérgio Ricardo convidou Alceu para protagonizar um filme seu, o clássico contracultural "A Noite do Espantalho"cuja trilha seria convertida em LP pela Som Livre, abrindo espaço para o lançamento, também pela gravadora, em 1974, de "Molhado de Suor", primeiro LP solo de Alceu Valença.

Enquanto isso, numa volta a Pernambuco, ele mergulhava de cabeça na cena underground. “Lula Côrtes era do rock, mas queria sair também um pouco disso. E, juntos, descobríamos o Nordeste das influências mouras. Ele pegava o tricórdio e tocava essas canções”. Por essa época, conheceu Paulo Rafael: haviam trocado olhares na Rua das Ninfas, Centro do Recife, e, por coincidência, encontram-se mais tarde no Alto da Sé de Olinda.

“Quando Paulinho Rafael foi tocar comigo, aos 17 anos, ele tinha preconceito com a música brasileira e nordestina. Era ligado ao rock progressivo do Yes”, lembra Alceu, sobre o guitarrista responsável por eletrificar a música do menestrel pernambucano em mais de 40 anos de parceria. 

Morto ano passado, aos 66, em decorrência de um câncer, Paulinho chegou a gravar um último disco com Alceu, no confinamento da pandemia de Covid-19. 

“Quando veio para o Recife, Alceu conheceu os ‘doidões’ da época e mergulhou naquele som. Tanto que só foi usar guitarra no segundo disco. Ele pegou essa loucura, o som do udigrudi daqui, conceituou e melhorou esse som”, diz o crítico e jornalista José Teles. 

“Para falar de Alceu Valença, é preciso falar dos arranjos do guitarrista Paulo Rafael. Paulo trazia toda a alquimia da musica popular pernambucana para as músicas que Alceu cantava. Fazendo referências bem comportadas das músicas da cultura popular nordestina, numa alquimia de maracatu, afoxé e baião para uma nova roupagem que se unia ao rock dos anos 1980”, descreve o cineasta pernambucano Jura Capela, diretor do recente e premiado documentário "Manguebit", vencedor do 14º In- Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical. 

E a década foi passando, com Alceu entre o Rio e Pernambuco, até que, em 1978, decidiu ir para uma temporada "existencial" em Paris. De lá, trouxe na bagagem a composição "Coração Bobo", baião de grande impacto responsável pelo primeiro grande sucesso massivo de Alceu — e porta de entrada para a gravadora alemã Ariola, recém-chegada ao Brasil sob a direção do produtor Mazola, com o disco de mesmo nome. O álbum tinha faixas como "Na Primeira Manhã", prestes a virar hit na voz da baiana Maria Bethânia. 

Em 1982, ele tomou o país de assalto com "Cavalo de Pau", recheado por sucessos imediatos como "Tropicana" e "Como Dois Animais". “Soube depois que 'Cavalo de Pau' vendeu mais de 2,5 milhões de cópias, e eu não era informado disso”. O prestígio das vendas revertia-se em regalias como ser convidado para gravar na Holanda o LP "Mágico" (1984), com temas como "Dia Branco" e a regravação de "Na Primeira Manhã".

Com o estrondoso sucesso de sua participação no primeiro Rock in Rio de 1985, Alceu capitalizou o prestígio, aceitando o convite para gravar na BMG-RCA com orçamentos que jamais teve. Logo percebeu que, maior o dinheiro, maiores as pressões. 

“A RCA começa a querer moldar na música dele, e, como ele não aceita, passa a escantear Alceu, a mandar tirar músicas das rádios. Na época, a música brasileira estava dividida entre o rock e o popularesco. Tim Maia, por exemplo, grava com Gal 'Um Dia de Domingo', lindíssima, mas bem popularesca. A própria Gal passa a gravar discos bem românticos populares, com composições de Michael Sullivan”, comenta Júlio Moura, jornalista e pesquisador da obra de Alceu, prestes a lançar a biografia do artista pela Cepe - Companhia Editora de Pernambuco.

“Eles queriam uma americanização total da música brasileira. Pegaram todo mundo que estava estourado na MPB, gente que estava fazendo sucesso com música brasileira até na Europa, e queriam que gravassem canções com aquelas melodias e baladas americanizadas”, lembra Alceu. 

Na época, ao saber que teria sido chamado de cangaceiro pela direção da gravadora, botou um chapéu de couro típico do bando de Lampião na cabeça e invadiu a sala do diretor artístico. 

“Ele queria que eu gravasse uma música chamada 'Coração Besta'. E eu disse que não, não ia gravar aquela besteira. Já tinha gravado uma música chamada 'Coração Bobo'", ri. 

A rinha que começou foi grande, mas Alceu, cangaceiro de sua música, menestrel de mundos, seguiu acertando ao obedecer seus instintos. 

Neste 2022, aos 76 de vida, está indicado ao Grammy Latino com o álbum "Senhora Estrada". A categoria: Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa. Tem, portanto, novos motivos para tirar o velho chapéu de couro do armário. 

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