Obra do criador de “Garçon”, um artista menosprezado por certa intelectualidade, é revisitada: “Um dos maiores que conheci”, diz Otto
Por Alessandro Soler, de Berlim
Fotos: Otto/Arquivo pessoal
O cantor e compositor Otto num momento do show: "Quero mostrar o cantor, o frontman, sedutor"
Brega. Cômico. Exótico. Ao longo de uma sólida trajetória de meio século na música, com mais de 170 canções compostas, o recifense Reginaldo Rossi foi frequentemente rotulado e não teve reconhecida suficientes vezes a sofisticação das mensagens que transmitia de forma simples, poética e verdadeiramente popular. Há algum tempo, isto começou a mudar: teses acadêmicas, livro e, neste 2023 em que se comemoram os dez anos da sua morte, um especial da Globo (o filme “Reginaldo Rossi – Encantos Mil”) e um show todo dedicado a ele vêm ajudando a fazer justiça a um dos grandes do nosso cancioneiro.
O show em questão ficou a cargo de Otto. Conterrâneo de Rossi, ele já vem rodando o país, com apresentações em Belo Horizonte e São Paulo — Rio e capitais nordestinas vêm aí. A empatia vai além da origem comum. Otto, como Rossi, se diz pertencente à “periferia da MPB” e relembra como o homenageado sempre se ressentiu de jamais ter sido bem recebido pela elite intelectual do Sudeste.
“Ele não entendia a razão de não ser admitido no 'clube'”, diz “Era educado, sábio. Mas não quer dizer que não sentia uma tristeza por essa (segregação) estrutural. Ser afastado dói”, diz Otto, que respondeu a cinco perguntas da UBC sobre Rossi e o projeto, feitas por um aplicativo de troca de mensagens.
Por que Reginaldo Rossi justo agora? Está mesmo havendo um resgate desse cantor e compositor tão autêntico como pouco compreendido por seus contemporâneos?
OTTO: Eu quis dar uma mexida na minha carreira, depois da pandemia. Senti vontade de conhecer mais e evoluir mais na interpretação. E Reginaldo tem essência, alma e espírito de cantor contemporâneo. É um ídolo em que quis mergulhar. Tem uma genialidade popular, é um mestre do pop, do rock... Suas informações musicais os verdadeiros intelectuais devem compreender. Só os mais chatos não admitem (risos). Na verdade, ele era um negro nordestino misturado, sedutor, ousado, sensível e falador. Era demais para competir num mercado tão preocupado com seu quintal. Trazia Beatles, Rolling Stones, bossa nova, tropicália, baião. Era informação global, erudita. Um noite, aqui em casa, comecei a ouvir a sua obra e chorar, sorrir... Pedi permissão (para o projeto), ele deixou.
Ele se ressentia demais por não ter sido admitido no clubinho da MPB, não?
No Nordeste, somos assim. Muitas vezes, nascemos pensando demais, contando muitas histórias, cantando a alma... Acho que, quando ele falava que nunca entendia (a ausência de respeito de uma certa intelectualidade), era uma forma de ironia. Ele entendia tudo, tentava furar a bolha, reverter as dificuldades. Seu pecado sempre foi falar as coisas do coração, do sentimento, essa compreensão maior da alma humana. Popular demais até. Romântico, um homem de alma linda, um dos maiores artistas que conheci. Já são alguns meses em que vivo esta imersão na obra de Rossi, uma obra de intensidade profunda. Suas composições têm uma potência incrível, os temas abordados são realmente verdadeiros. A poesia não carrega culpa. Reginaldo é um Roberto Carlos sem culpa.
Em foto sem data, Rossi canta num comício. À esquerda, Betão, seu assessor por décadas. Arquivo pessoal
“Garçon” foi toda escrita por ele. “A Raposa e as Uvas”, também. Mas outros megahits, como “Mon Amour, Meu Bem, Ma Femme”, “Em Plena Lua de Mel (Dina)”, “Jeito de Santa” e “Aquela Triste Canção”, entre vários mais, são da Cleide Lima, primeira mulher dele. Talvez isso ajude explicar o olhar “feminista” do Rossi em vários sentidos, que muitos pesquisadores vêm destacando recentemente. Ele fala de traição, de temas espinhosos, de uma maneira, digamos, igualitária entre os gêneros. Você concorda que havia nele algo feminista e à frente do seu tempo?
Quando ele canta, é difícil distinguir quem compôs. Ele se apropria, é dele. Sim, muito futurista. A (maneira de falar de) traição é bonita nele, é uma declaração de amor: ele continua a amar, a querer de volta. “Eu queria te odiar, mas vou te amar.” Uma obra que amansou muito macho. Antes, se matava no Brasil pela legítima defesa da honra. Regis foi de uma importância muito grande nesse processo. Foi positivo. Tenho certeza de que, se vivo, estaria nesta luta das políticas de gênero. Era um cara (simpático à causa) LGBTQIA+, como toda a humanidade deveria ser. Ele tinha compreensão humana. Não escondia a dor de ser gente.
Não era, claro, só a Cleide. Vários sucessos do Rossi eram de outros compositores. Parecia ser um cara muito aberto ao olhar alheio, ao novo, não?
Acho que Rossi queria cantar, contar histórias... Ele parecia uma máquina de interpretar músicas, coisas lindas. Tudo na interpretação dele cabia perfeitamente se viesse carregado de sentimentos, de dores, amores. Nada sai do seu domínio, música nenhuma. Um estilo único que contagiou milhões de pessoas neste país, (sobretudo no) Norte, Nordeste, Centro-Oeste. É precursor do grande pop que se faz hoje no país: o sertanejo com sofrência. No Sudeste isso virou cult. Mas no Nordeste ele é rei. Marília Mendonça, Anitta, todos têm algo dele.
Outro momento do show: banho de multidão, exatamente como fazia Rossi
Você disse ter ouvido quase 200 músicas gravadas por ele para escolher o repertório do show. As que entraram no set-list são as suas favoritas simplesmente? Ou usou algum critério de variedade de gêneros, de temas etc.?
O processo deste show foi muito bonito e bem solitário no começo. Comecei a ouvir, calado, nas noites reginaldianas. E foram muitas músicas (escutadas), muitas repetidas. Eu já tinha umas músicas da minha memória afetiva, essas estavam claras. Outras começaram a me pegar, eu pouco conhecia, mas elas começavam a me tocar cada dia mais. Num dado momento eu tinha 40 preferidas. De 40, reduzi a 30, tinha que ir cortando para caber num show com 18... Então dividi o repertório em “As Quatro Estações”, as fases dele: jovem, maduro, solar... Chamei minha banda, a Jambroband, perguntei se eles topavam vir comigo, eles amaram. Convidei mais quatro. Somos nove no palco. Os arranjos são os originais dos discos. Eu queria mostrar o Reginaldo que enxergo, que amo. Sem caricaturar, quero mostrar o cantor, o frontman, sedutor, criador, cheio de estilo, de sensibilidade. E atualíssimo.
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