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Evidências de um apagamento: por que compositores quase não são citados?
Publicado em 19/10/2023

Neste mês do compositor brasileiro, artistas e jornalista discutem razões da invisibilização dos criadores das músicas nas redes, TV e rádio

Por Kamille Viola, do RIo

José Augusto e Paulo Sérgio Valle, autores de 'Evidências'. Foto: reprodução GloboNews

Em setembro, o Brasil se emocionou ao ver o hit “Evidências”, famoso pela gravação de Chitãozinho & Xororó, sendo tocado pelo tecladista de Bruno de Mars, John Fossit, durante os shows do cantor no festival The Town, em São Paulo. A repercussão foi grande, mas trouxe também uma polêmica: a falta de citação aos autores da música, José Augusto e Paulo Sérgio Valle, em grande parte das menções ao tema, nas redes sociais, nos meios de comunicação profissionais e até na programação musical das rádios.

Neste outubro em que se celebra o Dia do Compositor Brasileiro, ganha nova força a discussão sobre um problema antigo: o ‘apagamento’ dos compositores. Que se insere em uma questão ainda mais profunda: a crescente desvalorização da autoria na nossa sociedade — um fenômeno que a expansão da criação por inteligência artificial generativa está prestes a acelerar imensamente.

 

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Para Fernanda Takai, compositora e diretora vogal da UBC, esse esquecimento é resultado de uma série de fatores.

“Penso que todos temos parte nesse processo de creditar corretamente os autores das músicas. Rádios, jornais… Os intérpretes também, eles estão ali com o microfone na mão. Podemos e devemos colocar as informações mais completas em nossas redes sociais, em programas de espetáculos, cuidar do envio correto ao Ecad do repertório executado ao vivo, legendas nas lives”, enumera ela. “Quando o Pato Fu surgiu e a gente, por acaso, gravava algo de um outro artista ainda menos conhecido, falávamos em todas as entrevistas: ‘Essa música é de uma banda gaúcha, contemporânea nossa, a Graforreia (Xilarmônica)’. Ou: ‘Quem escreveu isso foi o Rubinho Troll, que hoje vive em Londres’”, exemplifica.

Fernanda Takai

Cantor, compositor e instrumentista, Mú Carvalho, um dos fundadores do grupo A Cor do Som, conta que há bastante tempo vem batendo nessa tecla da importância de os devidos créditos serem dados aos compositores.

“Eu fico confortável para falar sobre isso, porque, além de autor, sou intérprete também. O crédito é fundamental e está na lei. Só que, como não existe punição, muitas rádios, TVs, jornais e outros veículos não cumprem”, critica, citando: “A lei autoral brasileira (9610/98) estabelece, em seu artigo 24, inciso II, que dentre os direitos morais do autor está o de ‘ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra’.”

Os fãs, muitas vezes, se irritam quando alguém chama atenção para o fato de que um intérprete não é o autor de uma música em questão.

“A gente tem que perdoar, porque eles não sabem o que estão dizendo (risos)”, diverte-se Mu. “Se tivessem essa informação quando a música toca no rádio, quando o intérprete aparece cantando na televisão, quando o jornal escreve sobre ela, acho que esses mesmos fãs iriam falar assim: ‘Então quer dizer que essa música é do compositor tal? Deixa eu ver o que mais ele fez’. E iriam descobrir mais sobre ele”, acredita.

Nesse sentido, ele chama atenção para a importância do papel da mídia na educação do público.

“Quando tem alguém assinando uma matéria, uma programação de rádio e tal, tem que ter um cuidado com isso. Porque é o nosso patrimônio, é a nossa história como país”, frisa Mú.

Mú Carvalho

Em entrevista recente ao site F5, do jornal Folha de S. Paulo, os autores de “Evidências” se manifestaram sobre a controvérsia.

“Creio que os apresentadores, jornalistas, radialistas e a mídia em geral deveriam informar antes de quem é a música. Assim, colocaríamos os pingos nos ‘is’. O intérprete não é obrigado a ficar dando crédito toda vez que for se apresentar”, defende José Augusto.

Procurada para comentar a quase ausência de citações aos compositores na programação dos canais TV nacionais e também da maioria das rádios, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) não retornou os contatos.

O jornalista e crítico musical André Barcinski, um dos que levantaram o assunto na internet, concorda que o fato de muitas matérias atribuírem um sucesso ao seu intérprete é um “desserviço”.

“A música não é do Chitãozinho & Xororó, ela foi gravada por eles e foi sucesso na voz deles. Isso tem que ser falado. E acho que os jornalistas têm que cobrá-los, na hora em que eles falam que a música é deles. A gente tem essa obrigação, porque ela não nasceu em árvore. Foi fruto da cabeça de dois caras, e não custa dar o mérito para eles. É uma coisa óbvia e tão triste ter que ficar falando esse tipo de coisa. E pior ainda é ver que muita gente acha que isso não é importante”, lamenta.

Ele observa, no entanto, que esse aspecto acaba esbarrando em outra questão: a precarização do jornalismo no Brasil.

“Um jornalista escrever uma besteira (como dizer que uma música é do intérprete) eu consigo creditar à crise nas redações e na nossa profissão. Muitas vezes, é gente muito nova, que ganha muito pouco, são pessoas que são colocadas em situações para as quais não são preparadas”, pondera. “Mas, para mim, os intérpretes não falarem é o mais grave.”

O jornalista observa que, historicamente, os grandes intérpretes costumavam jogar luz sobre os autores das músicas gravadas por eles. “A Elis vivia falando dos compositores. Quantas pessoas ela revelou, de João Bosco e Belchior a Fagner, só pelo fato de falar desses compositores em entrevistas e citá-los sempre”, exemplifica.

André Barcinski

Mú Carvalho lembra de quando Gal Costa gravou o disco “Gal Canta Caymmi” (1975).

“Além de ser um disco maravilhoso, é superdidático, ela está mostrando ali, entregando para as pessoas o nome do cara que fez aquelas músicas lindas. Eu acho que é meio por aí”, defende.

No fim das contas, o apagamento dos autores de músicas é algo que se insere em um problema maior: um crescente processo de desvalorização do produto cultural e da autoria, que vem ocorrendo no mundo nos últimos anos.

“A gente vive uma época em que você pode, com o valor que gastava em meio LP ou CD, acessar um mês de plataformas de streaming. Ou seja, tem acesso, por um valor muito pequeno, a uma quantidade imensa de música. Você assina um serviço de streaming de música ou de audiovisual e tem acesso a dezenas de milhares de produtos e conteúdo. Aliás, só o fato de a gente chamar obra de arte de ‘conteúdo’ já é uma prova da desvalorização da autoria, do mérito artístico”, analisa Barcinski.

Como virar esse jogo, num cenário crescentemente complicado para a autoria, é a grande questão.

História de um sucesso

Composta por José Augusto e Paulo Sérgio Valle no fim da década de 80, “Evidências” foi apresentada para um grupo de pessoas do mercado da música em 1989. A maioria torceu o nariz, mas o produtor e hitmaker Michael Sullivan (coautor de sucessos como “Me Dê Motivo”, gravada por Tim Maia, e “Deslizes”, por Fagner), que estava na reunião, gostou e colocou no disco que seu irmão, Leonardo Sullivan (que na época assinava somente Leonardo), lançaria meses depois, chamado “Veneno, Mel e Sabor”. A gravadora não trabalhou a faixa, e ela acabou ficando esquecida.

Convencido do potencial da canção, José Augusto gravou-a em fitas cassete e as encaminhou para diversos artistas, incluindo Chitãozinho & Xororó. A dupla estava selecionando faixas para um novo trabalho e acabou incluindo a música no álbum “Cowboys do Asfalto”, que saiu em 1990. Em dezembro daquele ano, a faixa estourou. O hit já foi gravado em espanhol, italiano, francês e japonês.

Em 2008, um tempo em que os feats entre artistas de gêneros diferentes não eram onipresentes, o programa Estúdio Coca-Cola Zero, da MTV, reuniu a banda emo Fresno, então no auge, e Chitãozinho & Xororó, já a maior dupla sertaneja do país. No repertório, quatro músicas de cada, incluindo “Evidências”, o que provavelmente contribuiu para que o sucesso da música atravessasse gerações e superasse fronteiras de gêneros musicais.

Para se ter uma ideia, em 2019, a entidade que organiza o campeonato mundial de karaokê fez uma pesquisa, divulgada pela GloboNews, que mostrou: em média, “Evidências” era tocada 5,2 vezes por noite em cada máquina. Uma música que, de fato, está na boca do povo.

 

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