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Leo Middea, o 1º  brasileiro que pode representar Portugal no Eurovisão
Publicado em 06/03/2024

Se vencer o Festival da Canção, este sábado, ele fica com a vaga; tema provoca orgulho entre imigrantes, mas também xenofobia no país

Por Eduardo Lemos

Leo Middea. Foto: Rita Paiva

Há cerca de um mês, Leo Middea começava uma série de shows na livraria Morocco Bound, no centro de Londres. Foram três dias de apresentações, todas com ingressos esgotados, para um público de diferentes nacionalidades: brasileiros e portugueses predominavam, mas também estavam por lá espanhóis, gregos e, claro, ingleses. Em todas aquelas noites em que cantou e tocou canções próprias, munido apenas de voz e violão por quase duas horas, pairava acima de sua cabeça o título da prateleira de livros mais próxima do palco: non-fiction (não ficção). Essa imagem daria um bom resumo da trajetória do músico, cantor e compositor carioca de 28 anos, e que vive na Europa há oito.

Só que a história desse fã de Caetano Veloso, Jorge Ben Jor e Gilberto Gil ganhou ares de mais estranho que a ficção no último sábado (3). O artista era um dos semifinalistas do tradicional Festival da Canção de Portugal, um concurso anual promovido desde 1964 pela emissora estatal RTP. Quem vence o festival vai representar Portugal no Eurovisão, o show de talentos mais importante da Europa. Pois bem: Leo apresentou a sua canção “Doce Mistério”, recebeu uma votação expressiva e está classificado para a grande final, que acontece este sábado (9). Ele é o primeiro brasileiro a conquistar tal feito. 

Do Rio para Lisboa, com escala na Índia

Leo só ouviu falar sobre o Festival da Canção quando se mudou para Lisboa, em 2017.

"Foi uma ano importante para Portugal, em que (o cantor e compositor lisboeta) Salvador Sobral ganhou o Festival e, logo em seguida, ganhou o Eurovisão. Eu nunca acreditei que um dia poderia participar. Acho que por essa questão de ser brasileiro e por achar uma competição muito distante da minha realidade naquele momento", reconhece. 

Leo precisou de sete anos para encurtar essa distância. Em 2017, o artista deixou o bairro da Taquara, na Zona Oeste carioca, para fazer um retiro de silêncio na Índia. Foi ali, segundo ele, que veio a ideia de se mudar para Portugal, algo que até então nunca havia passado pela sua cabeça. Voltou ao Rio, fez as malas e desembarcou em Lisboa. Chegou à capital portuguesa com uma carreira ainda em ascensão, com dois discos lançados no Brasil sem muita repercussão. Passou meses se apresentando nas ruas da cidade. Em 2020, chegou a gravar um disco financiado apenas com moedas de 1 euro que ele pedia nas ruas e, aos poucos, foi criando público, conquistando programadores de rádios e festivais e furando parte da bolha do mercado local. 

Hoje, ele enfim consegue viver exclusivamente dos shows que faz por todo o país e também pela Europa. Em fevereiro deste ano, num período de duas semanas, Leo chegou a fazer 10 shows em 4 países diferentes: Holanda, Bélgica, Inglaterra e Portugal. Todos com ingressos esgotados. 

 

VEJA MAIS: A apresentação de Leo no último sábado, quando passou à grande final do Festival da Canção

‘Já pedi grana na rua, agora eu quero glamour’

Para a brasileira Thais Pimenta, diretora geral na agência de comunicação Café8 Music, com base no Brasil e em Portugal, a chegada de Leo à final do concurso "é consequência de um trabalho que vem conquistando o público local há alguns anos, um processo de construção muito interessante, de saber chegar, ter paciência, se interessar genuinamente pela cultura local e dar um passo por vez.”

Sem o apoio de um selo ou gravadora, o mais recente disco de Middea, “Gente”, lançado no ano passado e produzido pelo brasileiro radicado em Paris Breno Viricimo, já ultrapassou a marca de 2 milhões de plays no Spotify. O hit é a folk-reggae-pop “Efeito Borboleta”, que conta com a participação de Mallu Magalhães e tem os versos "já pedi grana na rua / agora eu quero glamour / não há problema, eu sei / na minha frente só luz". 

Foi durante uma pausa nos shows no ano passado que Leo recebeu uma ligação da produção do Festival da Canção.

"Eu quase caí pra trás", recorda. "Eles me pediram uma música inédita, e eu tinha feito uma música na noite anterior. Achei algo astral, uma coincidência bonita", diz ele, sobre “Doce Mistério”, uma canção de amor com tempero baiano e que cita Caetano Veloso na letra. 

Discurso de ódio 

Em novembro de 2023, ele foi anunciado como um dos participantes da edição que marca os 60 anos do concurso. Em meio a muito apoio e elogios, tanto da comunidade imigrante como de portugueses, seu avanço nas diferentes etapas do Festival também vem provocando uma onda de xenofobia e comentários negativos.

"Imaginei que o fato de eu ser brasileiro levantasse algumas criticas, como de fato aconteceu. Mas eu leio esses comentários com um certo distanciamento. Fico feliz de ter muito mais comentário positivo do que negativo", diz. 

Mesmo assim, as falas xenofóbicas mexeram com ele. Em um texto publicado em seu perfil do Instagram nesta terça (5), Middea diz que "os discursos de ódio têm aumentado muito". Ele lembra que algumas de suas canções mais famosas, como “Lisbon, Lisbon", “Banho de Mar”, “Freguesia de Arroios" e “Bairro da Graça”, tratam de temas portugueses.

"Cantar Portugal para o mundo é bonito, como também canto o Brasil para o mundo, com toda a mistura de ritmos que existe dentro do meu próprio país. O multiculturalismo é de uma beleza sem tamanho, e o intercâmbio entre ritmos e sotaques é valioso", escreveu. "O amor pela música é maior que qualquer ataque.”

Segundo um balanço da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial de Portugal publicado em 2023, as denúncias de xenofobia contra brasileiros cresceram 505% entre os anos de 2017 e 2021. Atualmente, cerca de 400 mil brasileiros vivem em Portugal de forma legalizada, o que representa quase 5% da população do país. O número, porém, é maior, já que o registro oficial não leva em consideração os brasileiros que não estão com a documentação em dia ou que possuem uma segunda cidadania europeia. 

Para a portuguesa Mariana Bessa, manager do artista há cerca de um ano, é inegável que há implicações políticas na conquista de Leo.

"Acho que é muito melhor quando vamos pela via da cultura, da troca intercultural, até que não se perceba o que é o quê. E isso o Leo faz de forma muito coerente, sensível e real. (A sua passagem para a final]) chega à comunidade brasileira e de outros povos, como os afrodescendentes de países de língua oficial portuguesa. Bastava dar uma volta na cidade no domingo, dia seguinte à vitória do Leo no Festival da Canção, e para ver que as pessoas estavam contentes. Sem colocar grandes bandeiras nas costas do Leo, porque isso seria injusto com ele, mas a presença dele vai fortalecer a comunidade brasileira e de imigrantes que vivem em Portugal", opina. 

O artista no palco: busca pela integração com a cena portuguesa. Reprodução

Uma cena que se expande cada vez mais

A estrada que liga a música brasileira a Portugal ficou muito mais movimentada nas últimas duas décadas, quando diversos artistas deixaram o Brasil para viver em Lisboa e Porto, principalmente. Marcelo Camelo, Mallu Magalhães, Madu, Barbara Eugênia e Domenico Lancellotti são alguns dos nomes mais conhecidos, mas há muitos músicos e produtores brasileiros fazendo a vida no país. 

"A cena de brasileiros aqui em Portugal cresce pois, cada vez mais, artistas vêm morar aqui e começam a entrar no circuito e a fazer música com nomes locais também. Há um outro lado que eles impactam também, que é provocar mudanças, fazer coisas novas aqui", observa Andréia Martins, jornalista brasileira radicada em Lisboa desde 2020 e autora da newsletter Indie Lusitano. 

Andréia diz que muitos artistas brasileiros têm dominado a cena cultural do país - entre eles estão, por exemplo, o Coletivo Gira, formado apenas por mulheres, e que levou o samba para Alfama, tradicional reduto do fado em Lisboa, além de nomes ligados à cena LGBTQIA+, como Ágatha Barbosa (aka Cigarra), Tita Maravilha e Di Candido. 

"Eles estão sempre em festivais e festas daqui", afirma. "Não há uma cena de brasileiros querendo fazer um movimento apenas de brasileiros, o que sinto é que eles querem se misturar. Há também uma abertura muito grande para artistas que vêm fazer show aqui.”

Ela lembra ainda que Portugal sempre está na rota de artistas indie, como Tim Bernardes, Taguá Taguá e Bia Ferreira, e também dos medalhões, como Caetano Veloso, Edu Lobo e, recentemente, os Titãs. 

Conquistar o público e a mídia portuguesa "não é difícil, mas também não é tão simples", segundo Thais Pimenta, da Café8: 

"Precisa ter algo que se conecte ao país de alguma forma - ou um show marcado, alguma parceria com artistas portugueses, alguma familiaridade, enfim. Isso sempre ajuda a abrir mais caminhos. Além disso, é importante o artista procurar sempre voltar ao país para manter uma agenda de shows a cada um ou dois anos. Senão, fica uma relação muito fria, difícil de desenvolver.”

Vencedor ou não da grande finalíssima, o certo é que a história de Leo Middea pode até parecer ficção, mas deve inspirar mudanças reais na relação entre Brasil e Portugal.

"A cultura brasileira, sobretudo através da música, sempre foi muito presente em Portugal. Portanto, ter um representante do Brasil que encarna tão bem essa ligação entre os dois países é muito representativo, além de passar uma bela mensagem de integração", resume a jornalista luso-carioca Giuliana Miranda, radicada em Lisboa desde 2014. 

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