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João Carlos Martins: luzes e sombras de uma vida extraordinária
Publicado em 24/06/2024

Biografia escrita por Jamil Chade traz boas histórias sobre a trajetória do maestro e um reencontro sincero dele com velhos fantasmas

Por Eduardo Fradkin, do Rio

Fotos de arquivo pessoal

Jornalista especializado em política internacional e crises humanitárias, Jamil Chade foi pego de surpresa por um telefonema do pianista e regente João Carlos Martins para saber se gostaria de escrever sua biografia. Aceitou sem hesitação, com a promessa de que o músico falaria abertamente sobre seus erros, e não apenas suas glórias. O resultado de um ano e meio de trabalho chega agora às livrarias nas 171 páginas de "Indomável - João Carlos Martins Entre Som e Silêncio" (Editora Record).

"Pela primeira vez, ele decidiu que estava disposto a contar tudo, inclusive a sua passagem pela política e a tentativa de esconder o seu problema de saúde. Se você ler os jornais dos anos 1990, a história contada ali é diferente da que se sabe hoje. Houve uma camuflagem em relação ao real problema que ele enfrentava", afirma Jamil, referindo-se à distonia focal, distúrbio neurológico que afetou profundamente a carreira do pianista e o levou a uma nova trajetória como regente orquestral.

Como apurou Jamil, o maestro fez um pacto com seu empresário americano para que a condição não fosse revelada à imprensa.

"Então, a doença foi camuflada durante décadas. Diferentes versões foram surgindo, algumas alimentadas pelo próprio João. O empresário tinha medo de que, caso viesse à tona que o artista tinha um problema crônico e sem solução, ele perderia valor de mercado e muitos contratos. Então, essa mentira foi proposta pelo empresário. Ele pediu que, até o dia de sua morte, João não contasse a verdade. Esse relato é uma das novidades do meu livro", continua Jamil.

As famosas próteses usadas pelo maestro, que lhe devolveram a capacidade de tocar piano

Não são poucos os livros e filmes que documentam a extraordinária trajetória de recuperação e reinvenção de João Carlos Martins após o diagnóstico. Ele já foi tema de dois documentários europeus, "Rêverie" e "Die Martins-Passion", e da cinebiografia brasileira "João, o Maestro", longa no qual foi vivido pelo ator Alexandre Nero. Na literatura, foi tema dos livros nacionais "A Saga das Mãos", "Maestro - A Volta por Cima de João Carlos Martins e Outras Histórias..." e "João de A a Z".

No entanto, ele se diz insatisfeito com os três, incluindo o último, cujo autor é ele mesmo.

"Pediram para eu fazer um livro escolhendo um tema para cada letra do alfabeto. Eu fiz, mas seria melhor terem convidado o Leandro Karnal ou o (Mário Sergio) Cortella", brinca o músico.

Ele só poupa de críticas o livro "Conversas com João Carlos Martins", do americano David Dubal, que não se pretende uma biografia.

"Como eu queria contar, pela primeira vez, a minha vida com os meus erros e meus acertos, optei por falar com um grande escritor que é também um jornalista investigativo. Eu queria que ele checasse tudo que eu falasse e corrigisse qualquer vírgula errada que encontrasse. De fato, o Jamil Chade fez uma pesquisa minuciosa e conseguiu muitos jornais e documentos antigos. Como também é um grande escritor, acabou fazendo do livro um poema sinfônico. Quando eu recebia cada capítulo e lia as últimas frases, ficava com lágrimas nos olhos", revela João Carlos.

Um prodigioso João Carlos pré-adolescente ao piano

O jornalista faz questão de dizer que não se trata de uma "biografia oficial", mas que teve a colaboração fundamental do pianista e não sofreu qualquer pressão ou censura no processo de escrita. De fato, se, por um lado, estão os grandes momentos da arte de João nos palcos do mundo e as histórias sobre os trabalhos sociais desenvolvidos pelo maestro — responsável pela inclusão social e a educação musical de milhares de crianças —, há menções também aos métodos pouco ortodoxos que seu pai, José, usou para estimulá-lo a melhorar suas performances.

Tipógrafo português, José da Silva Martins teve um polegar decepado por uma prensa, o que o impediu de continuar a se dedicar ao piano, instrumento pelo qual tinha verdadeira devoção. Acabou transferindo a paixão aos filhos. E, como descreve o livro, chegou a administrar sulfato de benzedrina, um tipo de anfetamina, a um ainda menino-prodígio João Carlos para lhe dar mais energia para praticar.

"Naquela época, o pai dele conseguia comprar esse estimulante em farmácias, sem controle algum. Isso causava sérios distúrbios do sono no João", conta Jamil. 

Entre as passagens complexas da vida do músico presentes nesta nova obra, uma dá orgulho ao autor por estar, pela primeira vez, "contada de forma integral": trata-se do envolvimento de João Carlos Martins com o controverso político paulistano Paulo Maluf.

"Numa das vezes em que João Carlos parou de tocar por causa das mãos, ele virou empresário e teve uma companhia chamada Paubrasil. Foi um fracasso. Quando ele ia fechar a empresa, recebeu uma proposta de usá-la para o financiamento ilegal da campanha de Paulo Maluf. Uma novidade do meu livro é que, pela primeira vez, João reconhece que, desde o começo, sabia o que estava acontecendo e que aquilo era errado. Eu fui atrás dos documentos da Justiça e consegui a comprovação de que a Paubrasil foi, no fundo, ocupada pela campanha do Paulo Maluf. Ele colocou dentro da empresa 50 funcionários, que a transformaram num rio de dinheiro para a campanha", detalha Jamil.

Com o pai, José Martins, na década de 1940

João Carlos Martins fez questão de levantar ele mesmo este tema na conversa com a UBC. E explica por que não quis interferir no livro, deixando que episódios assim estivessem presentes.

"Essas histórias desconfortáveis estão ali por causa de um filme que eu assisti, 'The Golden Boy', sobre o (pugilista) Oscar De La Hoya, em que ele conta todos os erros da sua vida. Eu só fico revoltado quando conto essa história da Paubrasil e falam que é um caso de corrupção. Aquilo foi uma coisa de empresa para empresa, e não com dinheiro público", diz o maestro, que afirma ter consentido com o esquema de financiamento ilegal de campanha em troca do cargo de secretário de Cultura no governo do candidato que apoiou e cujo nome ele sequer cita hoje em dia.

O biógrafo do pianista atesta o que ele diz:

"Eu comprovei, com documentos da Justiça, que não houve enriquecimento ilícito da parte dele.”

O livro também traz histórias leves e divertidas, como o encontro de João Carlos, então muito jovem, com o já consagrado compositor Heitor Villa-Lobos, promovido pelo professor de piano José Kliass, que dava aulas ao menino.

"Ele toca uma peça de Villa-Lobos para o próprio compositor e, num determinado trecho, muda completamente a dinâmica da música. O professor toma um susto e dá um grito, mas Villa-Lobos pede que o menino continue a tocar até o fim. Quando acaba, Villa-Lobos diz: 'menino, você é muito ousado, mas ficou bem melhor do jeito que você tocou'. Acho que esse episódio revela muito sobre o caráter ousado do personagem que biografei", resume Jamil, que também estudou música na juventude e tocou flauta em orquestras e conjuntos de câmara: "Com esse livro, eu cruzei duas partes da minha vida, a jornalística e a musical.” 

Com Heitor Villa-Lobos em foto da década de 1950

Jamil já está trabalhando no seu próximo livro, sobre a extrema direita no Brasil. Por sua vez, João Carlos mantém o seu foco no trabalho social, seu maior motivo de orgulho, e na preparação para um concerto de despedida que fará no Carnegie Hall (em Nova York) no dia 9 de maio do ano que vem, regendo Bach e Villa-Lobos e executando, ao piano, uma cantata composta por André Mehmari.

"A coisa mais positiva da minha biografia são as milhares de crianças em situação de vulnerabilidade que eu trouxe para o universo da música clássica; são as 600 cidades que já percorri pelo Brasil, incluindo as favelas. Com a mesma garra que eu entro no Carnegie Hall, eu entro numa favela", define ele. 

 

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