Projeto de lei vem na esteira de protestos contra o atual modelo de pagamento das plataformas, considerado injusto por muitos
Por Eduardo Lemos, de Bath, Inglaterra
Desde que o Spotify foi lançado, há 17 anos, o streaming nunca parou de crescer e, hoje, representa mais de 80% do lucro gerado pela música gravada. Só em 2023, a receita global da música digital chegou a US$ 19,3 bilhões, o maior valor já registrado. Muitas partes interessadas estão mais que felizes com esses resultados, a começar pelas plataformas, é claro, mas também grandes gravadoras e distribuidoras. Quem parece não ter acesso à festa é a imensa maioria dos artistas.
Em média, a cada vez que uma música é tocada, criadores e intérpretes recebem royalties que ficam entre US$ 0,003 e US$ 0,005 - uma taxa que, de acordo com a advogada estadounidense Rashida Tlaib, exige que alguém tenha mais de 800.000 plays por mês para receber o equivalente a um trabalho de US$ 15 por hora. Atualmente, um trabalhador nos Estados Unidos fatura quase o dobro desse valor, cerca de US$ 28 por hora.
Tlaib também é deputada pelo partido Democrata e representa o estado de Michigan no Congresso Americano. Em março deste ano, junto com o também deputado Jamaal Bowman, (democrata) de Nova York, ela apresentou um projeto de lei que estabelece um salário mínimo para compositores, músicos e intérpretes presentes nas plataformas de streaming de áudio.
"O streaming mudou a indústria musical, mas está deixando inúmeros artistas com dificuldades para sobreviver", disse a advogada em um pronunciamento.
Elaborado em parceria com a UMAW (Músicos Unidos e Trabalhadores Aliados, na sigla em inglês), o texto prevê que as plataformas criem um fundo separado que pagaria aos artistas um mínimo de 1 centavo de dólar para cada vez que uma faixa fosse tocada, com limite máximo de até 1 milhão de transmissões (ou US$ 10 mil) por faixa por mês — além dos royalties já pagos atualmente. O projeto de lei, no entanto, não propõe mudança em acordos ou contratos existentes entre as plataformas e seus representantes.
O dinheiro viria de duas fontes: primeiro, a partir de um aumento equivalento a 50% no preço atual da assinatura — hoje em US$ 12 nos EUA —, para "dividir entre todos" a conta do salário mínimo para os artistas. Em segundo lugar, 10% do que as plataformas arrecadam com anúncios, por exemplo, seria alocado para bancar o salário mínimo, de acordo com a proposta.
“Há muita conversa na indústria sobre como ‘consertar’ o streaming – mas as plataformas de streaming e as grandes gravadoras já se manifestaram por mais de uma década e falharam com os músicos. O Living Wage for Musicians Act [nome do projeto de lei em inglês] apresenta uma nova solução centrada no artista, para fazer o streaming funcionar para muitos e não apenas para alguns. Precisamos retornar valor às gravações, injetando mais dinheiro no sistema, e precisamos pagar artistas e músicos diretamente pelo seu trabalho”, disse à UBC o organizador da UMAW Damon Krukowski.
Damon Krukowski, da UMAW. Foto: Naomi Yang
Krukowski construiu uma carreira na indústria como baterista de bandas indie como Galaxie 500 e Damon & Naomi. A reportagem pediu que ele citasse casos de artistas que não conseguem viver do que recebem do Spotify mesmo com "bons números" de plays. Ele deu a si mesmo como exemplo:
"Minhas bandas somam cerca de 750.000 streams por mês, mas isso não dá nem um salário mínimo".
Em um artigo para o jornal inglês The Guardian, publicado em março deste ano, Krukowski foi taxativo: não há futuro para a música se ela continuar na mão de grandes corporações como Spotify, Apple, Amazon e Google. "Muitos dos músicos mais jovens que conheço — músicos no auge da carreira — não veem um caminho para ganhar a vida. Esses não são artistas com problemas para se conectar com o público; pelo contrário, eles estão lançando álbuns amplamente comentados, saindo em turnês e se comunicando (constantemente) com seus fãs via mídia social. Mas esse trabalho não está pagando o suficiente para que eles consigam sobreviver sem ter que recorrer a outros empregos e atividades paralelas", escreve.
Integrante da UMAW, a engenheira de mixagem e masterização Heba Kadry teme pela "destruição das cenas musicais locais" caso não haja uma mudança radical no modelo de pagamento dos streamings:
“Nossos músicos de classe média estão desaparecendo, nossos estúdios de gravação estão desaparecendo, e tudo isso leva nossas comunidades musicais e nossa cultura musical a se deteriorarem rapidamente em todo o país.”
A advogada e congressista americana Rashida Tlaib mostra o texto da lei de salário mínimo. Arquivo pessoal
A UMAW foi criada em 2020 e ganhou notoriedade ao lançar a campanha "Justiça no Spotify", em que chama a atenção para "os pouco mais do que centavos que os artistas recebem" da plataforma. Em março de 2021, a organização orquestrou manifestações na porta de diferentes escritórios da empresa sueca ao redor do mundo. Ao todo, foram registrados atos em 15 cidades, incluindo a sede brasileira da companhia em São Paulo.
Kruwoski diz que o Spotify nunca procurou a UMAW para conversar.
"Eles trabalharam duro para fingir e ignorar nossa última campanha, Justiça no Spotify, embora tenham criado um site em resposta a ela chamado Loud & Clear (em alto e bom som, numa tradução livre). Nós respondemos, por nossa vez, com um site chamado Louder & Clearer (em mais alto e mais claro som), mas os designers desse site receberam cartas do Spotify para retirá-lo do ar por violação de direitos autorais relacionados à sua aparência. Então sabemos que eles estão nos observando muito. Quanto às gravadoras, tivemos reuniões muito interessantes com grandes e pequenas, todas independentes, mas não estamos abordando as grandes. Temos certeza de que eles estão de olho nisso, mas não estamos pedindo seu envolvimento”, relata.
O projeto de lei segue em tramitação, e não há previsão de se e quando ele será votado pelo Congresso americano. As eleições presidenciais, que acontecem em novembro, pode deixar o texto ainda mais tempo na gaveta. Enquanto aguarda, a UMAW quer conquistar apoio tanto em público quanto nos bastidores - há um site para músicos e trabalhadores da música expressarem seu apoio ao projeto. Fãs também são convidados a escrever para seus representantes políticos. Segundo Kruwoski, mais de 12.000 cartas já foram enviadas ao Congresso.
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