Trio curitibano comenta criação do notável álbum 'Paisagem', inscrito para o prêmio, e fala de composição e planos futuros em papo com a UBC
Por Alessandro Soler
Lio, Jean e Lay, o trio que forma a banda Tuyo. Foto: Walter Firmo
Hoje é o último dia para os membros da Academia Latina da Gravação votarem no Grammy Latino 2024. E a banda Tuyo tem boas razões para acreditar que repetirá o feito de 2021, quando seu anterior álbum de estúdio, “Chegamos Sozinhos em Casa” (dividido em duas partes), foi indicado ao prêmio de maior visibilidade da música em espanhol e português.
Com “Paisagem”, lançado em abril deste ano, o trio paranaense formado por Lio e Lay Soares e por Jean Machado dá uma chacoalhada no clima introspectivo dos trabalhos anteriores, abraça com força os sons eletrônicos dançantes e aprofunda sua experimentação com gêneros brasileiros variados — além de lançar mão, mais uma vez com desconcertante naturalidade, daquela que talvez seja sua principal marca: as letras, tão bem elaboradas em forma e conteúdo.
Nelas, versam sobre amores e (sobretudo) desamores, refletem e fazem refletir e lançam um olhar cirúrgico sobre si mesmos. E, como o escritor russo Liev Tolstói ensinou, falando de si, se tornam universais. Não é por outra que o Tuyo vem chamando a atenção não só dos prêmios internacionais, mas também dos meios de comunicação que acompanham suas performances em megaeventos como o South By Southwest (SXSW), no Texas (EUA).
Na edição de 2021, o show do trio foi eleito um dos 15 melhores do SXSW por um dos principais críticos musicais do diário “The New York Times”; na edição seguinte, em 2022, eles voltaram ao evento, e a apresentação foi descrita como “simplesmente arrebatadora” por uma jornalista do “The Austin Chronicle”. Agora em 2024, no Brasil, “O Globo” incluiu “Paisagem” entre os álbuns “imperdíveis” do ano. E, no geral, é bastante comum a acolhida comovida — da imprensa, do público — a esta banda indie cuja aspiração internacional é mais típica de artistas do midstream.
“A gente busca se expandir. Estamos vivendo um momento na canção em que o que importa é a votação, a popularidade, (fugir do) flop (fracasso). O comportamento do fã, hoje, é de verdadeira torcida. E ninguém quer torcer pro azarão. Ser um azarão já foi visto de outra maneira, era assim quando a gente quis ter banda. Mas já não mais”, disse Lio durante um papo com a UBC, há uns dias, por videochamada, do qual também participaram Lay e Jean.
Os três artistas falaram sobre a concepção de “Paisagem”, seu processo criativo, o bom, o mau e o feio das premiações y otras cositas… entre elas, a ainda pendente integração entre artistas brasileiros e hispânicos na América Latina, um movimento tantas vezes ensaiado mas que não acaba de decolar nunca.
É muito evidente que vocês estão numa fase mais solar. O disco é mais dançante, as letras são mais leves. Essa nova paisagem que vocês criaram tem a ver só com um momento pessoal de vocês? Ou é algo da coletividade, do país, também?
LIO: É assim com qualquer artista: as circunstâncias da vida acabam nos empurrando para certas escolhas estéticas. Ou melhor, escolhas de método. Para nós, antes, era natural que os métodos fossem de combate, de uma energia combativa. A ideia de ter algo pra negar, pra provar, a escassez de recursos daquele período, tudo acabava impondo o método. Agora já não existem aqueles obstáculos. Existem outros (risos).
JEAN: Tem tudo a ver com o momento coletivo, sim. A gente vinha de um ciclo que era muito repetitivo, intenso. Uma sequência de notícias ruins, de vários anos, e a gente se acostumando… Então, criar algo que fugisse disso era um imperativo, quase um rolê autoterapêutico, de criar a própria paisagem mesmo. O que te machuca vai doendo, doendo, até não doer mais.
LAY: Direta ou indiretamente, a coletividade te afeta, tudo é política. E a música tem muito de coletivo. De quem faz, produz… O que a gente consegue registrar em cada momento é sobre nós, mas não só sobre nós. Então, sim, a energia do disco é nossa, mas acho que é também a de mais pessoas.
E como chamar essa paisagem que vocês propõem no disco?
LIO: É um processo de pós-pandemia, de confluência de desejos antigos. A gente foi se realinhando de referências, de moods, de uma paisagem que conseguimos reciclar, com rolês da música brasileira, muita música eletrônica, sons cheios de texturas… Sempre com a cabeça no show, na casa de shows, no teatro, na apresentação ao vivo.
LAY: É curioso pensar que o disco anterior, lançado na pandemia, tinha sido pensado com o intuito de tocar, ir pra show. Tivemos que mudar tudo, fizemos se desdobrar e dizer coisas semelhantes ao que queríamos dizer no palco, mas pela internet. Teve decepção, mas teve uma reconfiguração interessante de expectativas. E agora, finalmente, estamos lançando um disco com aquela energia.
O resultado vem chamando a atenção e poderia render uma nova indicação ao Grammy Latino. O que significaria pra vocês?
LIO: Nossa estratégia de difusão é essa. A gente encontra em múltiplas plataformas a oportunidade de expor uma audiência inédita à nossa linguagem. Quando o fazemos, nos movemos imediatamente a outra, pra expô-la também à nossa linguagem. Como convencer essa audiência que já me conhece mas ainda não cativei? O Grammny é muitas coisas, boas e ruins. Mas é também uma plataforma. Pra realidade da gente, a gente olha pra ele como uma grande convenção de músicos da América Latina que conversam entre si e trocam entre si de alguma maneira. Mas a gente também estará nos editais da sua cidade. E os emails das rádios terão na caixa de spam um email meu dizendo ‘boa tarde, senhor, quero apresentar minha música.’ Nosso atrevimento de buscar todas as plataformas é saber as movimentações políticas que marcam o Grammy e tantos outros prêmios. O primeiro degrau, o segundo, o terceiro, o teto… Por muito que haja forças querendo que a música não seja democrática, ela é o nosso maior idioma, então é impossível elitizá-la. É nisso que a gente acredita.
É um pouco usar as estruturas do mercado a seu favor…
LIO: Tenho milhões de críticas à internet. Mas, se não fosse por ela, jamais estaríamos dando esta entrevista à UBC agora. Nossos ancestrais sempre usufruíram de plataformas impenetráveis, a rádio tinha a voz poderosa, total. A inscrição do ‘Paisagem’ no Grammy Latino tem muito a ver com usar as estruturas, sim. E também com nosso desejo de construir algo perene.
JEAN: Não há dúvida de que os prêmios são coisas validativas. Desde o início da carreira a gente passou por experiências de validação. A nossa estética e o nosso esforço na produção da música não são suficientes pra que algumas pessoas se identifiquem e reconheçam no que estamos fazendo. Aí fomos dando checks: ‘olha, são músicos; são bons; posso ouvir; são indicados a prêmios.’ Uma vez que a gente está ali, é uma chance de se ver numa plataforma. É importante.
Falar do Grammy Latino, especificamente, me faz pensar no eterno divórcio entre o Brasil e os países vizinhos. A língua parece nos separar, mas, no final, as sonoridades se repetem, têm proximidade. O som de vocês lembra um certo som contemporâneo chileno, por exemplo…
LIO: É interessante pensar em como seria a integração entre os povos originários da América Latina antes da colonização. Será que tinha pontos em comum? E aí chegam uns invasores disputando territórios, quem fica com quê, qual o seu lugar nesse território… Não acredito que o Grammy Latino vai resolver questões de séculos, nem acho que ele está tentando. Mas tem outras subquestões em que pensamos: qual música brasileira chega ao Grammy Latino? Não tenho certeza se a amostragem que chega é a mais acurada. A gente, a Luedji (aluna), essas presenças trazem essa discussão, daí o nosso atrevimento. E, sobre o que você diz, sobre a similaridade entre nosso som e os de países da região, é isso. A gente anda bebendo de fontes caribenhas, fazendo misturas. Existe (entre nós) uma sensação de ser latino-americanos. E acho que não só pelos sons. Muito do que nos empurra para isso, no nosso caso, é a literatura, a literatura fantástica latino-americana nos marcou muito. Estamos sendo empurrados para as fronteiras, os vizinhos. Gosto do ‘Paisagem’ porque ele tem essa brincadeira com o comportamento de fronteira, como é que a gente escolhe o que de cada cultura vai permanecer nessa terceira linguagem que vai se criar a partir da mistura.
E como é que vocês decidem qual vai ser a pegada, quais serão os sons? Em outras palavras, como é o processo de vocês de compor juntos, ir desenhando uma música, um disco?
LAY: Devido à grande intimidade que a gente acabou construindo no decorrer das nossas vidas, não digo que é natural, porque todo processo de composição tem particularidades pra ser natural, mas sinto que se tornou mais fluido, sei lá. A gente não vive nada sozinho. As histórias que eu vivi a Lio acompanhou, o Jean viu de perto… Isso é muito legal entre a gente, porque conseguimos trocar e compreender o processo de cada um, quando pode ceder, quando pode deixar (o outro assumir o protagonismo da criação) ou quando deve pegar para si. Sobretudo, criar com eles dois me tira a pressão de ter que ter toda das respostas. É entender o valor das perguntas, de como elas geram grandes ideias e grandes discussões, porque sempre gostamos de conversar entre nós. Tudo isso me dá mais ferramenta, me sinto mais apta a botar a lupa nas possibilidades.
LIO: Os algoritmos contaminaram completamente a feitura da canção, levaram muitos a entenderem a música como ciência exata. Mas a verdade é que não há respostas exatas na música, não há fórmulas. A brincadeira é perguntar e ver a variedade das respostas. É falar das coisas em que estamos interessados, pelas quais estamos curiosos, mesmo que massacrados pelos tentáculos do mercado e pela pressão de viver de arte no Brasil. É saber que, ainda que a pergunta seja a mesma, a resposta vai ser diferente.
JEAN: De uma forma prática, quando vai compor uma canção ou pensar um álbum, a gente fica criando mood, trocando… ‘O que você acha de colocar um house?’, ‘Vamos fazer um forró?’ E um dos primeiros passos também é delimitar a equipe para trabalhar com a gente, saber que não podemos fazer sozinhos. Para a produção desse álbum, trouxemos VHOOR, JLZ, Lucs Romero. No momento do esboço de moods e letras, determinamos que gêneros buscar etc. Tem sempre um momento de pesquisa forte, de montar beats. Tem as sessões (de criação, de gravação), tem a distribuição para os produtores. É troca o tempo todo, perguntas o tempo todo.
Que outras paisagens já estão no horizonte de vocês? Já estão criando para um novo disco?
LAY: A gente continua sempre perguntando.
JEAN: Se parar, perde o sentido.
LIO: A despeito de não fugir da discussão sobre a dinâmica insalubre de estar lançando o tempo todo, a gente o que faz é continuar perguntando. Agora mesmo, recebemos um convite e estamos fazendo um disco voltado para o mundo infantil. A gente continua a operar, a se movimentar. O show do ‘Paisagem’ também está sofrendo mil mudanças. O espetáculo quer recuperar coisas da nossa trajetória, porque é isso: é preciso sensibilizar toda hora uma nova audiência, tocar o tempo todo novas pessoas. Quando essas novas pessoas chegam, elas têm todo um trajeto pra observar, que é bem múltiplo, versátil, não ensimesmado. Um trajeto imparável.
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