Assim avalia o produtor Julio Cesar JC, responsável por trilhas de várias emissoras de TV, que repassa sua carreira e dá dicas a quem começa na área
De São Paulo
O compositor e produtor em seu estúdio. Foto: arquivo pessoal
Julio Cesar Silva, o Julio Cesar JC, é um homem de talentos, mas talvez o principal deles seja sua disposição para continuar a aprender. Um dos grandes nomes da produção de trilha sonora original para audiovisual em atividade, ele está prestes a completar 35 anos de carreira (e 48 de vida), uma trajetória sólida na qual assistiu a inúmeras transformações tecnológicas, viu surgirem novas mídias e incorporou novas formas de fazer que o mantêm ativo e relevante no mercado.
Com uma boa formação (piano popular na Fundação das Artes de São Caetano do Sul/SP e composição musical no Centro Universitário FMU), conta ter ganhado na prática, em décadas dentro da TV Record, uma série de conhecimentos — musicais, técnicos, de gestão — que o tornaram bem equipado para surfar esta “nova onda crescente” da criação de música original para séries, filmes, novelas, redes sociais e games, como descreve.
“Ao mesmo tempo em que o mercado cresce, ele se pulveriza cada vez mais. De um modo geral, o foco já não é mais o mesmo, já não é mais 100% na TV aberta. Tem TV paga, tem streaming, tem mil usos de música original na internet. Tem, claro, esse mercado gigante dos games. Muita gente está vivendo disso, e tem espaço pra muitos mais”, afirma o produtor, que produziu ou coproduziu trilhas para novelas como “Alta Estação”, “Bicho do Mato”, “Os Dez Mandamentos” e “Gênesis”, além de jornalísticos como “Fala Brasil”, “Cidade Alerta” e “Balanço Geral”.
Hoje sócio de outro grande nome da trilha sonora, Daniel Figueiredo, e de Luiz Helenio na produtora Music Solution, continua a fornecer música original para as produções da Record, além de mirar muitos outros clientes de diversas mídias:
“Vale a pena, as oportunidades são muitas, mas você precisa aprender a olhar para todos lados”, resume neste papo com o site da UBC através de videochamada, no qual relembra o começo da sua trajetória, conta boas passagens dos seus anos de criação e dá dicas a quem quer se aventurar nas trilhas.
Em que momento a produção musical pra TV e sonorização entrou na sua vida?
JULIO CESAR SILVA: Não venho de uma família de músicos, ninguém da área, zero. Sou de uma família humilde de um bairro igualmente humilde de Santo André (SP). Sempre gostei de música e comecei a estudar depois de insistir muito com a minha mãe. Ela me colocou para ter aulas de órgão com uma senhora do próprio bairro. Comecei a estudar com 9. Com 13 pra 14, achei que o processo com essa professora estagnou, não tinha mais pra onde ir. Fui procurar outros cursos e comecei a dar aulas de iniciação. Além de dar aula, eu já tocava em baile, na noite, com a mesma idade. Meu pai, claro, não gostava muito... ‘Vai beber, vai virar uma tranqueira’ (risos). E teve uma noite que confirmou essa percepção dele. Voltando para casa de um show, na mesma kombi que transportava os instrumentos, o motorista bateu. Meu pai teve que ir me buscar de madrugada, eu lá no acidente. Ele se virou para mim e disse: ‘então, é esta a vida que você quer para você?’. Eu respondi: ‘é’ (risos).
Fui seguindo. Um dos alunos para quem eu dava aula numa escola em Diadema já trabalhava num estúdio, o EBSR, e me apresentou ao dono. Acabei virando arranjador. Comecei a tocar com grupos de pagode, enquanto ainda estudava piano popular na Fundação das Artes de São Caetano. Queria ser pianista de jazz, compor e tocar por aí, acabei entrando num grupo chamado Cateretê, que conseguiu emplacar uma trilha numa novela da Record. As instrumentais foram compostas por mim. A pessoa responsável ouviu, perguntou quem tinha feito, quis me conhecer. Quando fui lá, para minha surpresa, me ofereceu um trabalho.
E foram quantos anos lá?
Quase 20! Bom, num certo sentido, entrei lá e nunca mais saí, porque continuo a fazer as trilhas para eles através da Music Solution. Mas, dentro da emissora, foram mais de 17 anos de muito aprendizado. Eu não tinha nada da parte técnica, de operação, aprendi na raça. Eu tinha que operar, tocar, fazer de tudo. Trabalhava num departamento de criação chamado Sala do Maestro, era o técnico dele, e podia tocar algo. Num certo ponto, o maestro faleceu. Era o Hareton Salvanini, e o departamento era dele, praticamente. Então, tive que passar para outra função, a de sonoplasta. Eu, que tinha ainda o sonho de criar música, viver da minha criação, não podia aceitar virar um cara que coloca música na cena, que pensa em trilha criada pelos outros…
Até hoje, agradeço por ter exercido essa função. Quando sentei na cadeira pra ser um sonoplasta, minha cabeça de músico mudou. Eu aprendi que nem tudo é deixar a imaginação e a criatividade soltas: a música, na trilha sonora, tem que fazer sentido, tem que ajudar a cena, tem que encaixar com o que se quer contar. Foi como sonoplasta que finalmente pude entender isso.
Acho que a minha disposição para estar sempre aprendendo me ajudou demais a ir me adaptando a cada situação que surgiu no meu caminho. O que não significa que você não perde coisas. Perdi aquela agilidade como pianista que eu tinha nos meus tempos de big bands. Mas ganhei agilidade para mixar, arranjar. Até que deixei de fazer só isso e perdi também essa agilidade. Eu já não toco tão bem, não mixo tão bem, não produzo tão bem, mas faço tudo isso. E não é pouco (risos).
E como começou a fase da criação de trilhas, depois depois dessa experiência como sonoplasta?
Num determinado momento, a Record decidiu investir num departamento musical e trouxe o Márcio (Vip) Antonucci, que tinha sido da Globo, para dirigi-lo. Ele começou a perguntar quem é que já estava na casa e fazia música. A galera sabia que eu tocava e comentou com ele. Alguns chegaram a me dizer que era um erro sair de operações e ir para o artístico, que era um terreno incerto, que eu podia ficar sem trabalho se algo não desse certo. Eu pensei: ‘bicho, isto está muito mais perto do que eu sempre quis fazer, que é criar’. Foi uma grande escola trabalhar com o Márcio. Era um italianão brabo, batida na mesa, falava alto. E viu em mim essa pessoa que gosta de aprender. Foi por essa época que conheci o Daniel Figueiredo. Ele fazia as novelas, no Rio, surgiu uma amizade que levou à criação da Music Solution.
Depois de um tempo, eu fui realocado no departamento de jornalismo, e começou uma experiência totalmente nova, de criar trilhas para os jornais da emissora.
E é muito diferente criar trilha para ficção/entretenimento e para jornalismo?
Do ponto de vista estritamente do fazer musical, não. O jornalismo com o qual trabalhei tinha uma peculiaridade: era hard, aquele popularmente conhecido como ‘espreme e sai sangue’ (risos). Então, a pegada da criação busca isso, o suspense, a emoção que complementa as imagens, a cena que está sendo mostrada. Mas, se for pensar, na linha de shows não deixa de ser parecido: você precisa desenhar o som que vai ajudar a levar a uma determinada emoção. Só que, claro, na linha de shows tudo era mais lúdico, tem uma série de luzes, cores e fantasias que complementam o clima que a música traz. É preciso saber transitar entre esses mundos.
Ou seja, ter feeling é um pré-requisito fundamental para a função?
Exato, tem que ter o feeling de saber o que funciona e o que não. O feeling é o pulo do gato, e é complicado (desenvolvê-lo). Porque vai mudando também, porque os tempos mudam. Antigamente, a voz cantada junto com a falada numa cena de novela funcionava. Agora, o diretor manda tirar. A música cantada foi perdendo força, dependendo do tipo de trilha. Hoje, você vê séries em que a trilha é um pad, uma nota… (risos) Cadê a música, pô? Só uma nota?? É mais simples, mas, ao mesmo tempo, quando você é músico, é muito difícil fazer o simples. Porque claro, você quer explorar, quer colocar uma inversão, algo que enriqueça. Mas os espaços pra isso estão se reduzindo, e é preciso acompanhar a mudança. Acho que consigo (acompanhar). Além de gostar de aprender, eu tento manter a galera nova junto comigo, puxar o olhar deles, para entender a cabeça e estar sempre antenado. A coisa que eu mais tenho medo é de envelhecer musicalmente.
Para se manter tantos anos, em qualquer carreira, é fundamental não parar quieto...
Acho um barato descobrir coisas novas. A parte que mais me encanta, claro, é a música, mas a parte tecnológica também me fascina. Fui um dos primeiros a usar ProTools na Record. ProTools! (risos) Lembro uma vez que um jornalista voltou da rua depois de ter gravado uma externa com o microfone do outro lado da calçada, com os sons da rua, com ônibus barulhento passando, e veio me pedir pra limpar aquilo, tirar o ruído. Milagre eu não faço, bicho (risos). Claro que o ProTools não permitia. Mas hoje dá! Hoje tem ferramentas e recursos que parecem mágica, que me deixam abismado. Tem uma cena em que o sino está tocando e, na montagem, o produtor e o diretor acham que está alto demais. Você abre ali o espectro e limpa unicamente aquele sino, sem distorcer nem mexer em nada mais. Antes era uma traquitana para fazer algo assim. É fantástico que a gente tenha esses recursos, mas acho importante também que as novas gerações saibam sobre como se fazia, como era preciso ter muita criatividade em dobro para solucionar coisas que, hoje, um software faz facilmente para você. Porque acho que estão ficando muito preguiçosos, já não se preocupam em gravar tão bem porque defendem o pós com a tecnologia. E, com isso, vai se perdendo a arte da coisa.
Além deste, que outros conselhos você dá para quem quer se aventurar no mundo da composição de trilha original?
O principal seria estar aberto a todas as situações. E abrir mão da vaidade. A pessoa que estuda música quer expor todo o conhecimento que estudou. Mas a trilha original não é a tua realização como artista unicamente; ela é uma das inúmeras peças de um produto. O que vale, sempre, é o que for melhor para o produto. Então, esteja aberto à opinião e ao olhar do outro. Beleza, teu som é maravilhoso; mas, se não serve para este produto, guarda pro teu disco (risos). Precisamos entender que somos ferramentas para um trabalho coletivo. Desenvolva o feeling de saber o que funciona ou não. Saiba ouvir e saiba comunicar, saiba ser ponte. O que eu mais vejo é diretor que não consegue traduzir com palavras o que quer para a cena. Saiba captar a mensagem, interpretar e transmitir isto aos teus músicos, aos que criam contigo. Saiba tocar, mixar, desenvolva um bom ouvido. E, claro, estude muito, sempre. Informe-se sobre a parte técnica, sobre o que outros estão fazendo, sobre o que tem disponível no mercado. Nunca pare de aprender.
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