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Artigo: “Tão generosos que eles são”
Publicado em 28/08/2024

Administradora da portuguesa SPA comenta ideia do CEO da OpenAI de um ‘rendimento mínimo’ para compensar efeitos do ChatGPT

Por Paula Cristina Martins Cunha, de Lisboa*

Publicado originalmente no diário português Público usando a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

Paula Cristina Martins Cunha. Foto: reprodução/LinkedIn

Sam Altman, CEO da OpenAI (empresa detentora do ChatGPT), preocupado com o impacto que a inteligência artificial (IA) irá ter no mercado de trabalho, resolve o assunto através da atribuição de um “subsídio” generalizado. Uma espécie de “Rendimento Mínimo Garantido” para todos os cidadãos.

Para provar a sua teoria, a Open Research, que ele lidera, financiou um estudo em larga escala nos Estados Unidos junto de 3.000 pessoas, com idades entre os 21 e os 40 anos e que recebiam menos de 30.000 dólares por ano. Divididos em dois grupos, por mês a um eram dados 1.000 dólares e ao outro, apenas 50.

Embora os resultados, apresentados em julho, não apontem para uma vantagem clara da proposta, creio que o assunto merece uma reflexão mais profunda, pois a ideia – aparentemente generosa – poderá mascarar intenções no mínimo inquietantes.

Em 20 de março de 2023, foi publicado um estudo sobre o impacto do Chat GPT4 (6 dias após o lançamento deste) no mercado de trabalho norte-americano que aponta para o fato de cerca de 80% da população ativa poder ver, pelo menos, 10% das suas tarefas profissionais afetadas, e 19% dos trabalhadores sofrerem no mínimo em 50% da sua atividade.

Um estudo da Microsoft, no mesmo mês, concluiu que os profissionais mais afetados serão, ao contrário do que aconteceu em períodos históricos anteriores, os chamados “colarinhos brancos” ou, dito de outro modo, as profissões intelectuais.

Temos, assim, um cenário a curto prazo no qual os profissionais cujas tarefas exigem respostas complexas e intelectualmente exigentes enfrentarão dificuldades aumentadas no mercado de trabalho e serão forçados a aceitar trabalhos – caso existam – com reduzidos níveis de complexidade intelectual.

Já em maio de 2017, num artigo publicado no jornal The Guardian intitulado “O sentido da vida num mundo sem trabalho”, Yuval Harari defendia que uma nova classe de pessoas iria surgir em 2050, a classe inútil, que não só estaria desempregada como não seria “empregável”, adiantando a urgente necessidade de se pensar o que deve ser feito com essas pessoas, sob pena de correrem o risco de enlouquecer. E este pensador antecipou a criação do tal “subsídio de IA” generalizado como uma das soluções que poderiam vir a surgir.

Se juntarmos essa redução forçada da atividade intelectual à proposta generosa dos senhores da tecnologia de ser dado a todos um “subsídio de IA” para ajudar a suprir as necessidades de sobrevivência, poderemos estar perante um cenário de adormecimento intelectual.

Com efeito, as neurociências há muito tempo já explicaram a importância das sinapses (ligações entre neurônios) para o bom funcionamento do cérebro e também nos ensinaram que quanto mais este for estimulado, mais se desenvolve. O inverso também se aplica, visto que as sinapses preguiçosas tendem a ser expulsas.

Uma questão se impõe desde já: a quem interessa e por qual razão a promoção de um processo potencialmente atrofiador da inteligência humana? E quais as consequências sociais? Bem, uma resposta pode ser que a destruição em massa dos postos de trabalho, e não substituída por novos empregos – contrariando a destruição criativa de Schumpeter –, originará uma tal onda de contestação social generalizada que assusta e que obriga a cuidados redobrados.

Além disso, há o fato de que pode haver uma população, provavelmente a nível mundial, entorpecida, desligada, vazia de pensamento, conformada com ir vivendo do subsídio, numa primeira fase iludida com as vantagens do ócio, mais facilmente manipulada e controlada.

Isso nos faz lembrar de algo?

Não só é necessário criar novos empregos nos quais os humanos sejam competitivos com a IA, como encontrar formas de manter os desempregados ocupados em atividades com significado. E sem nunca deixar de prestar atenção ao impacto cognitivo. O ChatGPT e os seus sucessores são incrivelmente mais potentes do que o cérebro humano, mas não nos podemos deixar atrofiar, por mais fácil que a oferta assistencialista possa parecer.

As dores da mudança de paradigma são imensas. Resta-nos a confiança na alma e na engenhosidade humana, cuja centelha mágica ilumina as nossas escolhas e saberá nos tornar únicos e indispensáveis. E sempre inteligentes.

 

*Paula Cristina Martins da Cunha é administradora da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), parceira da UBC

 

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