Criador do Facebook sugere que criadores de canções sem sucesso comercial ‘sobrevalorizam’ suas obras; falas desatam polêmica no mercado
Por Nathália Pandeló, do Rio
Enquanto o mundo debate maneiras de remunerar os criadores das obras varridas para treinar os sistemas de inteligência artificial generativa, um importante player do setor mostra claramente o que o conglomerado que dirige pensa do tema. Em entrevista semana passada ao podcast Decoder, do site The Verge, Mark Zuckerberg, criador e diretor-executivo da Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), sustentou que muitos compositores de música e outros criadores de conteúdos “sobrevalorizam” suas obras e que o valor destas está diretamente ligado ao seu consumo pelo público. Em outras palavras, canções sem sucesso comercial valeriam menos e não necessariamente deveriam gerar remuneração aos criadores ao ser usadas para treinar a IA.
“Se eles (criadores) exigirem que não usemos seus conteúdos, simplesmente não usaremos. Não é algo que vá mudar muito o resultado das coisas”, ainda completou Zuckerberg, alçado na última sexta-feira ao posto de segundo homem mais rico do mundo, sobre as exigências de transparência (na hora de revelar quais músicas foram usadas nos treinamentos dos sistemas), autorização prévia dos titulares de direitos e pagamento.
Uma opinião tão crua e mercantilista sobre a criação artística causou um pequeno terremoto no mercado. Uma das vozes mais engajadas no tema no Brasil, Bruna Campos, especialista em direito autoral e representante da UBC em Campo Grande, resume a polêmica:
“Eu vejo como uma piada. Ainda mais vinda de quem não deixa que ninguém dite o preço do produto que ele oferece. É impressionante como ainda temos que lidar com esse tipo de declaração numa época em que a criação intelectual se mostra cada vez mais importante no treinamento das máquinas.”
‘USO JUSTO’
Zuckerberg evoca em suas falas o conceito de fair use, ou uso justo. Presente na legislação dos EUA, ele permite a utilização de conteúdo criativo sem necessidade de autorização prévia em alguns casos pontuais, como em pesquisas acadêmicas e em situações educacionais e sem fins lucrativos.
O chefe da Meta argumenta que essas exceções precisam ser “revisitadas” (e ampliadas) para incluir o treinamento das máquinas da sua empresa que, depois, gerarão conteúdos para competir com autores humanos. Para ele, com o avanço tecnológico, as noções de controle que os criadores podem exercer sobre suas obras mudaram.
Já no Brasil, a legislação não prevê nada parecido ao conceito de “uso justo”. Quem usa obras alheias, via de regra, deve obter licenças (pagas ou não) e discriminar detalhadamente o que está sendo usado. Existem exceções, mas sobre ela não se menciona qualquer ideia de “justiça”.
“O ‘uso justo’ é um conceito típico de outros sistemas jurídicos, como o estadunidense. No Brasil, apesar de haver vozes na doutrina que o defendam, não há disposição clara na legislação, que prevê tão somente hipóteses em que excepciona a regra geral de proteção do direito de autor. Todo o debate envolvendo Inteligência Artificial apenas serve para resgatar o tema do ‘fair use’, uma vez que, para o treinamento desses sistemas, é preciso recorrer a uma grande quantidade de conteúdo, que pode ou não estar sendo protegido por direitos autorais ou outros direitos, como o direito à imagem/voz”, explica Filipe Medon, professor de Direito Civil da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade da mesma instituição. “No Brasil, em princípio, não parece compatível com a legislação defender o treinamento de IA com músicas protegidas por direitos autorais sem a observância dos requisitos legais."
Dani Ribas, doutora em Sociologia pela Unicamp e diretora da Sonar Cultural Consultoria, destacou a importância de entender como as grandes plataformas moldam o mercado musical. Na última semana, ela colocou a questão em pauta em um vídeo publicado em suas redes sociais. Nele, faz a distinção entre o valor de uso e de troca, trazendo uma visão da Sociologia para explicar o valor das coisas no mercado capitalista. Para Ribas, Zuckerberg tenta reduzir o valor da música ao seu uso e audiência nas plataformas, desconsiderando seu significado cultural e simbólico.
“Ele precisa fazer com que o valor da música seja muito baixo a quem ele remunera, o que seria útil apenas para si, para seu negócio. Enquanto governos e estados têm compromisso profundo com a cultura do seu país, elaborando políticas públicas para estruturar esses ecossistemas produtivos e criativos, a empresa dele não tem compromisso nenhum com a produção cultural e com os processos que levam à elaboração dos símbolos, à elaboração das identidades, das culturas e das comunidades”, pontua a especialista, que em 2023 ganhou o Prêmio Profissionais da Música na categoria Projeto de Pesquisa com o trabalho “Techs, Algoritmos e Segmentação de Público”.
EUROPA, EUA E AMÉRICA LATINA EM DIFERENTES VELOCIDADES
Enquanto a União Europeia discute a regulamentação de sua Lei de IA, tentando fazer valer a tese de que são necessárias autorização prévia, discriminação detalhada dos usos e remuneração por eles, na América Latina o debate está menos avançado.
“A União Europeia regula, os Estados Unidos criam tecnologia, e a China copia. Na América Latina, ainda estamos deslumbrados com essa tecnologia e deixamos de questionar como ela afeta a vida de todos”, opina Ribas.
A indústria fonográfica, que há anos enfrenta (sem uma boa resposta) o desafio de remunerar melhor aos titulares de direitos pelas músicas executadas no streaming, agora lida com o uso de criações para fins que vão além do consumo musical tradicional.
Bruna Campos ressalta a urgência de tornar esse processo de negociação mais transparente:
“Há uma década estamos abrindo mão de parte dos nossos direitos para conseguir fechar acordos mais vantajosos para empresas que querem oferecer música em seus serviços. Se os parâmetros (de remuneração e contratos) usados fossem os mesmos da época dos produtos físicos, temos consciência de que muitas redes sociais e plataformas seriam inviabilizadas”, admite. “Agora, com a inteligência artificial, empresas ainda querem treinar suas máquinas com a nossa música, com o objetivo de criar novas músicas livres de royalties.”
A LUTA COLETIVA DOS CRIADORES
Num contexto em que cada vez mais músicas geradas por IA competirão no mercado com as criações humanas, a MatchTune anunciou ter desenvolvido uma tecnologia capaz de identificar, com 90% de segurança, quando uma canção foi elaborada através de algoritmos e de forma automatizada. Vale, por ora, apenas para a Suno, a mais popular plataforma de criação por IA generativa, mas a MatchTune promete estender essa decodificação também à Udio e outros apps.
Pelo lado das sociedades de gestão coletiva, a poderosa Gema, da Alemanha, anunciou na semana passada ter elaborado um modelo de licenciamento para músicas usadas no treinamento da IA. Uma das principais correntes pró-remuneração atualmente defende que uma soma única seja paga uma vez por tudo o que foi usado até hoje na alimentação das máquinas. A Gema discorda e crê que esses pagamentos devem ser contínuos.
Essa abordagem, defende a entidade representante de milhares de compositores, tem como objetivo equilibrar a proteção dos direitos dos criadores com o avanço tecnológico. É apenas um dos muitos caminhos possíveis para garantir que a revolução tecnológica respeite os direitos autorais e preserve o valor cultural da música.
Filipe Medon elenca o que já é possível para artistas que desejam proteger suas obras contra o uso não autorizado por plataformas de IA.
“Em primeiro lugar, identificar a violação. E, na sequência, pedir a cessação da atividade ilícita e a eventual responsabilização civil dos envolvidos. No entanto, ainda é uma questão aberta a dificuldade operacional em se realizar a exclusão de um conteúdo protegido que tenha sido utilizado para treinar uma IA, o que certamente pode servir de entrave à efetivação dos direitos das pessoas afetadas”, analisa.
Mas, segundo lembra Bruna Campos, é preciso estar atento, e não apenas à Meta.
“Muitos compositores usam apps como Suno ou Udio sem ler os termos de uso e os alimentam com suas criações. Não existe nenhuma lei no Brasil que proteja o autor em caso de um uso indevido da plataforma quanto a essas obras inseridas na IA, não até o momento”, aponta.
Em meio às múltiplas mudanças trazidas pela IA, Dani Ribas defende que o valor cultural da música não pode ser reduzido apenas à audiência ou à etiqueta de preço que as plataformas atribuem.
“O valor cultural é construído coletivamente”, ressalta Ribas, para quem a preservação dessa dimensão simbólica da música e da cultura depende de ações coordenadas entre governos, associações e coletivos culturais.
A combinação dessas perspectivas demonstra que, embora existam avanços na busca por soluções, o debate ainda está longe de um consenso. O uso de IA no setor musical exige uma reavaliação profunda de como os direitos autorais são protegidos, além de como o valor da arte é medido, tanto no aspecto econômico quanto no cultural.
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