Especialistas ouvidos pela UBC discutem cláusulas abusivas e detalham os cuidados necessários ao utilizar estes serviços
Por Nathália Pandeló, do Rio
Enquanto cresce o uso de plataformas de inteligência artificial (IA) generativa para criar música, disparam também as queixas, entre compositores e produtores que as utilizam, sobre as cláusulas impostas por esses serviços. Três das mais utilizadas, Suno.AI, Udio.AI e Loud.Me, obrigam os usuários a renunciar parcial ou totalmente a alguns de seus direitos, aquecendo o debate sobre a insegurança jurídica de quem experimenta as ferramentas de criação algorítmica.
Nada que impeça seu uso de crescer sem parar. Afinal, o que as muitas plataformas disponíveis no mercado oferecem é sedutor, numa era de produção massiva: elas geram composições musicais inteiras, de linhas melódicas a letras completas; em alguns casos, sugerem arranjos de instrumentos e harmonizações. Tudo a partir de uns simples comandos inseridos pelos usuários.
Mulú, DJ e produtor musical, é um dos que exploram essas novas tecnologias, mas sempre tomando cuidado para não utilizar apps que exijam a concessão de direitos autorais. Ele vê a IA como uma ferramenta útil para tarefas técnicas e repetitivas.
“Costumo usar ferramentas de IA que me poupam horas de trabalho, como por exemplo para a separação de voz e instrumentos, masterização etc. Mas, para a parte criativa, prefiro não usar, pois, para mim, é a hora da diversão”, afirma.
Nem todo mundo pensa como ele. Compositores que inserem suas próprias letras, por exemplo, para que uma plataforma crie a melodia podem, de acordo com os termos de uso de algumas delas, perder os direitos sobre o material total produzido — o que inclui, claro, a letra que inseriram.
Na Suno.AI e na Udio.AI, por exemplo, o contrato é claro: os usuários renunciam irrevogavelmente a quaisquer “direitos morais” que possam existir em relação ao conteúdo. A Suno explicita ainda que pode monitorar, alterar, editar ou remover qualquer conteúdo, bem como divulgá-lo conforme julgar necessário.
Já a Udio estipula que os usuários mantêm os direitos patrimoniais sobre os conteúdos que submeterem à plataforma. Porém, quem utiliza o serviço automaticamente concede uma licença mundial, não exclusiva e livre de royalties, para que a plataforma possa usar, reproduzir, modificar, adaptar, publicar, traduzir, criar obras derivadas, distribuir e exibir o conteúdo. Na prática, é uma cessão quase ilimitada de direitos.
Aviso similar aparece no contrato da Loud.Me: na descrição dos termos, os usuários da ferramenta mantêm os direitos autorais, mas concedem uma licença irrevogável à plataforma para utilizar sua criação, parcial ou totalmente, como desejar.
DJ Mulú. Divulgação
Para especialistas, é fundamental ler o contrato todo, em cada uma das plataformas que for usar, para evitar dores de cabeça futuras.
“Em se tratando de termos de uso, ninguém deve partir do princípio de que ‘leu um, leu todos’. Uma excelente ferramenta, do ponto de vista técnico, pode esconder sérios riscos jurídicos e comerciais, e isso deve ser considerado para avaliar sua adequação a determinado projeto. Utilizar uma plataforma digital equivale a contratar um serviço, só que online. Termos de uso são contratos. E ninguém deve assinar contratos sem ler e compreender plenamente suas cláusulas”, alerta Cláudio Lins de Vasconcelos, advogado especialista em direito autoral e professor da PUC-Rio.
Além da leitura cuidadosa, é necessário colocar em perspectiva o que essas concessões significam. Afinal, a maioria dos termos de uso se submetem à legislação americana, e o Copyright Office já decidiu que conteúdos gerados automaticamente por ferramentas de IA não são passíveis de proteção autoral. Neste caso, o mero conceito de “propriedade” entra em colapso.
“Em princípio, se uma criação não é protegida por direito autoral, é porque está em domínio público e não pode ser apropriada por ninguém. Nem pela plataforma nem por quem escreveu os ‘prompts’. Os Termos de Uso tentam diferenciar ‘direito autoral’ de ‘propriedade’ sobre a música, mas não deixam clara a base jurídica dessa diferenciação”, complementa Vasconcelos.
O especialista recomenda que, uma vez tomada a decisão de utilizar uma plataforma, o ideal é que o artista mantenha ao máximo sua autonomia criativa, usando a IA apenas como ferramenta auxiliar, não como “parceira artística”.
“Nada impede que a plataforma seja usada para testar ideias, criar referências gerais, mas seu ‘output’, que é a música gerada automaticamente pela máquina, não deve ser tratado como uma obra acabada. Até porque não é, mesmo, segundo entendimento majoritário da doutrina, até aqui confirmado pela jurisprudência”, explica o advogado.
Dessa forma, a ferramenta torna-se uma fase da etapa de composição, não o processo criativo em si. Quem trata o resultado de um comando como obra acabada corre o risco de perder o controle econômico sobre o fruto do seu trabalho e investimento. E entrar em disputas judiciais com plataformas estrangeiras, com base em leis estrangeiras e em jurisdições estrangeiras, não parece ser uma boa ideia.
Cláudio Lins de Vasconcelos. Arquivo pessoal
O marco legal atual
As recentes mudanças na legislação mundial sobre o uso de IA trazem alguns avanços, mas revelam que ainda há um longo caminho para pacificar o tema. A Lei de Inteligência Artificial da União Europeia, por exemplo, sobre a qual falamos em diferentes ocasiões aqui no site, inova ao proteger os conteúdos criados por pessoas e usados no treinamento dos sistemas, mas não traz nada definitivo sobre a quem pertencem os conteúdos gerados algoritmicamente.
Ainda em debate no Senado, a futura lei brasileira sobre o tema dá um passo além. Há uma preocupação no texto por assegurar que os artistas mantenham os direitos sobre suas criações, ainda que utilizem ferramentas automatizadas. Mesmo assim, e a exemplo do que ocorre na lei europeia, o projeto brasileiro tampouco estabelece expressamente qual a natureza jurídica da arte gerada por meio de um comando a uma inteligência artificial.
O cenário mais comum é uma obra gerada em parte por uma pessoa e em em parte pela inteligência artificial. Porém, ao concordar com os termos de uso, um compositor cede sua “parte humana”, que acaba incorporada ao resultado gerado pela máquina — submetido, então, ao contrato imposto pela plataforma.
“Os usuários não só arcam com a assinatura para poder fazer o uso comercial dessas criações, como estão colaborando com o aprendizado de máquina sem receber nada em troca. Muito pelo contrário, estão pagando por isso!”, denuncia Bruna Campos, especialista em direitos autorais e representante da UBC no estado do Mato Grosso do Sul.
Para ela, há outras condições abusivas em alguns contratos. Como assinante, o usuário pode usufruir comercialmente das músicas criadas na plataforma. Depois que deixa de ser assinante, perde o direito de utilizar o conteúdo comercialmente.
“Não podemos esquecer que, em muitos casos, a letra é uma criação intelectual do usuário, e ele não poderia ser proibido de continuar fazendo uso dela, mas os termos de uso fazem com que ele licencie em caráter perpétuo e abra mão dos direitos morais, impedindo que o usuário negocie, por exemplo, uma futura exclusividade de uso com um artista”, exemplifica Campos.
De acordo com ela, a própria redação dos contratos deixa ainda aberta a possibilidade de mudanças futuras que venham a prejudicar os compositores que as utilizam:
“Não deixam muito claro se no futuro esses termos serão modificados e se o conteúdo criado por usuários free ou assinantes serão reivindicados em plataformas digitais de áudio e vídeo ou redes sociais, através de algo semelhante ao content ID ou ao melody match do YouTube”, questiona Bruna Campos.
Bruna Campos. Arquivo pessoal
Porém, o que fica claro é que estas plataformas não dialogam especificamente com o mercado brasileiro, embora ofereçam seus serviços em nível global. Para conseguir acessar seu suporte, é necessário enviar e-mails em inglês e aguardar muitos dias pela resposta. A reportagem da UBC também não conseguiu localizar as assessorias de imprensa de maioria delas – e as que atendem demandas da imprensa apenas o fazem em inglês.
Foi assim que a Udio nos informou, por meio de sua assessoria:
“Concedemos aos nossos criadores 100% da propriedade das músicas que geram na Udio. Nossa missão é capacitar os artistas a expandir tanto seus horizontes criativos quanto suas oportunidades de receita. Embora não exista um padrão estabelecido para os direitos autorais de músicas geradas por IA, acreditamos que eles merecem créditos de publicação quando nossos criadores usam a Udio como ferramenta em seus processos criativos.”
Futuro perigoso — e potencialmente positivo
A inteligência artificial passou a fazer parte de todos os debates no negócio da música, e isso não deve mudar. A nova tecnologia já vem sendo absorvida nas mais diversas etapas do fazer musical e, agora, requer atenção e regulamentação.
Um caminho, segundo os especialistas, para ampliar a transparência desses serviços seria oferecer atendimento ao usuário no Brasil e em português. Também é importante que essas empresas traduzam seus termos de uso, além de produzir conteúdo educativo.
“Entendemos que a tecnologia avança muito mais rápido do que a legislação, mas, se não começarmos a discutir isso logo, deixaremos o criador em uma situação de vulnerabilidade muito grande, o que desestimula a criação como um todo. Isso não é bom para ninguém”, reflete Bruna Campos.
Mulú concorda com ela. Mas prefere lançar um olhar positivo sobre o cenário.
“Acredito que a arte humana jamais será substituída, mas os artistas terão que se manter um passo à frente, criando o que a IA ainda não assimilou. Num futuro próximo, a IA poderá criar músicas personalizadas com base em inputs além do verbal. Imagine chegar na academia e pedir para a IA criar uma trilha de malhação ajustada ao seu humor, às condições climáticas e até ao seu ritmo cardíaco. A interação entre a tecnologia e o ser humano vai permitir uma personalização cada vez mais sofisticada em experiências musicais”, ele diz.
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