Executivo, advogado e professor, o criador da ORB Music comenta tecnologia, compras de catálogos e tendências da indústria
Por Alessandro Soler, de Madri
Muita coisa mudou desde que, em 2018, Daniel Campello falou à Revista UBC sobre o novo modelo de negócio da sua empresa, a carioca ORB Music, que completava seis anos na época. O uso de tecnologia própria para liberar créditos retidos e prestar serviços editoriais aos seus clientes continua firme, mas os horizontes da ORB — e do mercado como um todo — se abriram exponencialmente desde então. Vendas de catálogos, a explosão da inteligência artificial (IA) generativa e o mundo ‘pós-streaming’ estavam no radar de pouca gente naqueles tempos, mas hoje ocupam o centro das conversas sobre os rumos da indústria musical.
“Desde o início do século, estamos vivendo várias revoluções. A primeira foi a das plataformas, que vieram salvar o mercado afetado pela pirataria. A segunda foi a entrada do mercado financeiro, com a aceleração das aquisições, algo que sempre existiu. A IA generativa é a terceira revolução do mercado musical. E a maior delas”, disse esta semana à UBC, por videochamada, o executivo, advogado especialista em propriedade intelectual e professor na escola Música & Negócios.
Como lá atrás, Campello continua a crer e apostar na expansão do cenário independente, movido, como descreve, pelo “sonho de tantos de se tornarem artistas da música”. A plataformização do mercado, que oferece cada vez mais soluções fora dos domínios das megacorporações da música, seria um indício dessa tendência. Mas ele vê algo mais: um mundo no qual todo mundo vai poder gravar, editar, distribuir e fazer chegar ao público sua obra de uma maneira extremamente pulverizada, com a grana dos superfãs impulsionando os artistas de uma maneira mais direta, sem a mediação de majors e outros players históricos.
“O grande desafio é encontrar uma maneira melhor de distribuir as receitas, atualmente muito concentradas com esses players. O modelo de distribuição atual não pode continuar ou matará o independente”, afirmou.
Confira os principais trechos da entrevista.
O que mudou essencialmente entre aquela entrevista de 2018 e hoje?
DANIEL CAMPELLO: Começando pela ORB Music, mudou muita coisa. A gente cresceu 1.000% desde que surgiu, há 12 anos. Em 2017, conseguimos a liberação de R$ 3,4 milhões em retidos e R$ 3,7 milhões em ajustes. Ano passado, foram R$ 40 milhões e R$ 27 milhões, respectivamente. Abrimos um setor de tecnologia e começamos a investir muito na análise de dados. Ao cuidar com atenção da identificação, dos dados, entendemos que muita gente estava vendendo (catálogos) e também nos lançamos a isso. Já negociamos a venda de R$ 45 milhões em catálogos de artistas.
Essencialmente, entendemos que, como qualquer negócio que quer sobreviver numa indústria em rápida transformação, precisávamos diversificar. Temos, hoje, um motor 1, a ORB Music Rights, e um motor 2, a ORB Music Tech. Abarcamos todos os serviços de antes, sobre retidos, edição, distribuição, e mais os direitos conexos de audiovisual/TV, com a marca Batuque, a parte de infraestrutura e tecnologia de dados, além de toda a perna dedicada ao capital, à venda de catálogos.
A venda de catálogos continua a ser um bom negócio? Há sinais contraditórios, os investidores parecem mais reticentes. A Hipgnosis, maior compradora dos últimos anos, experimentou recentemente uma forte crise de liquidez…
Sempre houve vendas de catálogos, pontuais. Houve episódios emblemáticos como a transformação do catálogo do (David) Bowie em ativos através dos chamado Bowie Bonds (no final dos anos 1990). Mas há alguns anos isso começou a ficar mais estruturado. A novidade da Hipgnosis foi a parte de marketing, a construção da mentalidade, no mercado, da música como um asset lucrativo. Mas eles erraram ao precificar os catálogos muito acima do que valiam ou podiam rentabilizar. E o mercado financeiro não tem o mesmo tempo do mercado da música. Quando os investidores viram que estavam jogando muito dinheiro em algo que vai demorar demais para render, tiraram a liquidez (da Hipgnosis), a empresa acabou vendida para um fundo. Mas outras empresas vão muito bem.
Agora, tem uma coisa: o mercado da música nunca gostou de participantes externos, e a realidade mostra que pouca gente de fora da nossa indústria sabe bem como ela funciona. Não basta comprar o catálogo, é fundamental geri-lo, fazê-lo render. A música precisa ser trabalhada, e é um projeto nosso na ORB administrar os catálogos dos compradores para os quais intermediamos as vendas. (A venda de catálogos) continua a ser um filão lucrativo, mas precisa de gente que entenda dele para dar certo.
As grandes gravadoras, através de suas editoras, também estão comprando catálogos.
Mas muitas mais empresas emergentes também estão. Este é um modelo que democratiza os ganhos e o poder, descentraliza. E isso também é o que está por trás da era da plataformização da economia, que se instalou com força na música. Se trata de pulverizar os serviços, a distribuição, as ferramentas de produção, as receitas, os ganhos, tudo. As plataformas, em muitos casos, superam o mercado tradicional. Uber é melhor que táxi, Airbnb, muitas vezes, é melhor que hotel. No audiovisual, as plataformas de filmes e séries, Netflix, HBO, trouxeram uma expansão enorme na produção, concorrendo com velhos players.
A ultrapulverização é o que alimenta o sonho de tantos de se tornarem artistas da música. As distribuidoras digitais entenderam isso. CD Baby, Tune Core, todas têm em comum uma aposta no DIY (do it yourself, ou faça você mesmo). Ofertando um monte de soluções para o artista cuidar de todas as etapas. A gente na ORB também pensa assim. Acabamos de lançar uma ferramenta, o ISRC App, que permite que o artista gere seu próprio ISRC (o número de identificação único de um fonograma, ou canção gravada). É uma democratização também, uma mudança: agora o código não pertence mais necessariamente ao produtor fonográfico, ele também pertence ao artista, que pode subir sua canção através de uma agregadora e gerar ele mesmo seu ISRC. Muito artista, esse pessoal do MTG, das cenas emergentes, estava publicando música sem ISRC. A gente realmente acredita na democratização de todas as etapas. O grande desafio é encontrar uma maneira melhor de distribuir as receitas, atualmente muito concentradas com os grandes players. O modelo de distribuição atual não pode continuar ou matará o independente.
Falando de grandes players, é certo que o mercado tende sempre à concentração. Se os pequenos começam a fazer algo bem, os maiores vêm e os compram. Isso preocupa vocês?
Já tivemos oferta de compra, mas não era vantajosa. A gente não tem resistência a movimentos de mercado para se capitalizar e ter mais força. O mercado sempre se ajusta e mantém a competitividade. O que acontece é que o mercado do Brasil ainda não está olhando tanto para essa parte de infraestrutura, as startups que oferecem soluções tecnológicas próprias pra gestão de dados ainda não são tão competitivas ou atraentes para investimentos assim. Estamos plantando sementes aqui, como qualquer empresa. Se vier um grupo maior para somar, estamos abertos. Avaliamos catálogos de artistas para vender, como é que iríamos nos fechar a isso?
Que outras tendências, ligadas ou não à plataformização, você vê agora?
A próxima etapa de plataformização do mercado vai ser a da infraestutura. A gente teve a plataformização do acesso, com o Spotify e outras; depois, a da distribuição, com os agregadores. Agora chegamos à infraestrutura, ou seja, mais players oferecendo tecnologia própria pra gestão de dados. A gente, com a ORB Music Tech, está se colocando nisso também. Temos softwares complementares para gerir royalties, no qual atendemos a clientes como a GR6, e agora o ISRC App, que dá uma liberdade enorme para o próprio artista ou a produtora, que pode, por exemplo, jogar os percentuais de royalties de cada um no fonograma, entre várias outras coisas.
Essa mentalidade de muitos dando sua contribuição também acontece do lado de lá, de quem consome. Hoje, todo mundo está entendendo o poder dos superfãs, as pessoas que estão dispostas a pagar mais por serviços diferenciados, por uma experiência especial com o ídolo. Então, acho que um cenário imediato, como fonte de receitas, vai ser explorar as possibilidades do superfã como alguém disposto a pagar mais.
E tem muitas outras coisas acontecendo também. Desde o início do século, estamos vivendo várias revoluções. A primeira foi a das plataformas, que vieram salvar o mercado afetado pela pirataria. A segunda foi a entrada do mercado financeiro, com a aceleração das aquisições, algo que sempre existiu. A IA generativa é a terceira revolução do mercado musical. E a maior delas.
Que possibilidades vê para a IA na música, no curto e médio prazos?
Antes a gente precisa lembrar que existem vários tipos de IA. O primeiro tipo, que são os robôs de machine learning, já é usado há muito tempo no mercado. O que vem com muita força agora é a IA generativa, que é capaz de produzir conteúdo. E aí acho que a gente tem duas pernas, a primeira na parte do direito conexo. A IA é capaz de fazer uma imitação perfeita do tom da voz do Zeca Pagodinho e fazê-lo “cantar” igualzinho. E aí ferrou, porque ainda não tem proteção pra isso. Vamos ter que nos debruçar sobre uma fronteira regulatória pra ter proteção. Já no autoral eu vejo um quadro mais otimista, na verdade. A IA não é capaz de criar uma obra da qualidade do Chico Buarque. Tem algo inexplicável no processo criativo, que é o que o Da Vinci falava, de uma ligação com o espírito mesmo. Como eu disse na minha participação no Rio2C, acho que, para o autoral, a IA pode ser ferramenta, mas não substituição. Não tem máquina capaz de aprender a fazer como um grande compositor. E acho que não vai ter.
Mas a IA de dados pode ser usada na plataformização. Tem muito espaço pra IA resolver questões que são muito básicas ainda, no Brasil principalmente. Não existe uma base centralizada de fonogramas que esteja correta, com título, ISRC e autores. O básico. O metadado bem feito pro dinheiro chegar aos titulares corretamente. Outra: eu, Daniel, assino pessoalmente os cue-sheets das trilhas que a gente representa, um a um, e uma equipe humana precisa conferir cada episódio de cada novela ou série para entender qual uso está sendo feito naquela obra e quanto recebe por isso. Tudo isso acho que, em breve, a IA de dados poderá fazer.
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