Levantamento feito pela UBC mostra desigualdade nas 50 mais tocadas nas rádios e nas 50 mais tocadas no streaming; especialistas analisam
Por Nathália Pandeló, do Rio
“E quando eu vou pro buteco / Agora eu levo ela / A minha nega veia”, cantam João Neto & Frederico com Eduardo Costa em “Nega Véia”. Enquanto isso, MC Tuto descreve, em “Barbie”: “Gata (gata) / Chique e charmosa de Valentino.”
Nos versos das músicas mais ouvidas do Brasil em 2024 elas ocupam o protagonismo. Já nos créditos desses hits, nem de longe.
As 50 músicas mais tocadas nas principais plataformas de streaming, segundo a Pró-Música, e as 50 mais executadas nas rádios, de acordo com o relatório da Crowley, deixam clara a desigualdade de gênero na música. É o que revela um levantamento feito pela UBC.
Na lista das 50+ das plataformas, só 17 (34%) têm mulheres entre seus compositores. As outras 33 (66%) foram compostas exclusivamente por homens. Já nas mais ouvidas das rádios, o cenário é ainda mais desigual: 16 (32%) das 50 têm participação feminina no time de compositores; e 34 (68%) são totalmente masculinas.
Mesmo na interpretação das faixas, área na qual as mulheres têm um suposto destaque há décadas, o cenário é desfavorável a elas, sobretudo nas rádios. Das 50 mais executadas nas emissoras de todo o Brasil, segundo a lista da Crowley, apenas 17 (34%) trazem mulheres como cantoras principais ou convidadas. No caso do streaming, a diferença é menor: 22 faixas (44%), das 50, têm alguma voz feminina entre os intérpretes participantes.
O relatório mais recente da USC Annenberg Inclusion Initiative, patrocinado pelo Spotify, confirma que a estagnação da representatividade feminina não é exclusividade do Brasil. O estudo analisou 1.300 músicas do Billboard Hot 100 Year-End Charts ao longo de 13 anos e constatou que, em 2024, só 37,7% dos artistas nas paradas eram mulheres, um aumento bem discreto em relação a 2023 (35%).
A presença feminina entre compositoras ficou em 18,9%. E, entre os produtores, elas foram somente 5,9%, números que pouco avançaram nos últimos anos. Além disso, a diversidade racial não só não melhorou como sofreu retrocessos: 44,6% dos artistas eram de grupos étnicos sub-representados (mas maioritários em termos numéricos) em 2024, frente a 61% em 2023.
O IMPACTO DAS CURADORIAS E DO PALCO
Mesmo entre as mulheres que conseguem espaço na lista das mais ouvidas, há padrões que se repetem. Muitas delas, como Ana Castela e Maraisa, assinam suas próprias composições, mas quase sempre em minoria diante dos compositores homens. E há ainda o caso de umas poucas compositoras que aparecem em várias faixas, concentrando sua atuação em um gênero historicamente masculino: o sertanejo. Lari Ferreira e Waléria Leão, por exemplo, estão por trás de diferentes músicas de Luan Santana, Simone Mendes e Matheus & Kauan.
Thabata Lima Arruda, pesquisadora musical, e Fabiane Pereira, apresentadora da Nova Brasil FM, integrante da bancada do programa Sem Censura na TV Brasil e colunista da Veja Rio, têm analisado de diferentes ângulos a exclusão das mulheres na música brasileira. Arruda, com quase uma década de pesquisa, vem mapeando a presença de mulheres e homens negros nos festivais de música do país. Pereira, com mais de 15 anos à frente dos microfones, observa de perto a realidade das rádios, onde a representatividade feminina também é limitada.
Thabata Lima Arruda. Foto: arquivo pessoal
Para Arruda, a relação entre a baixa presença de mulheres nos festivais e nas paradas está interligada.
“Embora, em alguma medida, números expressivos em plataformas de streaming e no rádio influenciem o palco, e o palco influencie a aderência das rádios e a expressividade dos números no streaming, essa relação envolve centenas de outros fatores implícitos”, comenta.
Ela destaca, por exemplo, que curadorias baseadas exclusivamente em métricas de streaming acabam por reforçar disparidades, ignorando critérios como diversidade e impacto cultural.
No streaming e no rádio, a estrutura da indústria também contribui para a exclusão feminina. Thabata Lima Arruda aponta que, mesmo com o crescimento da visibilidade de artistas mulheres, as barreiras são profundas.
“Ainda existe a crença de que mulheres ‘não vendem’, embora os números provem o contrário ano após ano. Para mim, as barreiras que afastam artistas mulheres do grande público são estruturais. Se vivemos em um país estruturalmente misógino e racista, a indústria reflete essa realidade”, pontua.
Fabiane Pereira reforça essa perspectiva ao analisar o cenário das rádios brasileiras.
“Apesar de o Brasil ser conhecido como um ‘país de cantoras’, as mulheres sempre foram sub-representadas nas programações”, avalia.
Para ela, a falta de pluralidade se deve ao perfil homogêneo dos diretores de rádio:
“Homens, 50+, brancos, heteronormativos… dificilmente teremos pluralidade nas programações das rádios brasileiras quando o perfil de quem programa permanece o mesmo.”
Fabiane Pereira. Foto: Maria De La Gala
CRITÉRIOS SEM TRANSPARÊNCIA
Arruda também critica a falta de transparência nos processos de destaque nas plataformas.
“No streaming, é difícil afirmar com certeza quais agentes determinam como as músicas são promovidas, já que não temos acesso ao funcionamento real dos algoritmos. Mas estudos baseados nos dados disponíveis oferecem um parâmetro”, explica a pesquisadora, citando o analista Glenn McDonald, que mostrou que apenas 23,1% dos streams são de artistas mulheres, apesar de mulheres representarem 31,9% desse consumo.
Para a especialista, os algoritmos não são neutros; refletem o viés de quem os criou e ajusta.
“O público também contribui com hábitos de consumo que reforçam desigualdades — como mostram os dados do Spotify, onde homens ouvem apenas 19,2% de músicas de artistas mulheres”, completa.
Pereira relembra a óbvia relevância do rádio no contexto da audição musical no Brasil. Uma relevância que acaba reforçando um panorama ruim para as mulheres.
“Segundo a pesquisa da Inside Audio 2024 (Kantar Ibope Media), o rádio é ouvido por 79% da população, e os brasileiros dedicam, em média, 3 horas e 55 minutos diários ao consumo desse meio”, diz.
Portanto, programadores com viés de gênero têm um impacto potencial profundo nos hábitos de escuta de milhões de pessoas, perpetuando a desigualdade.
CAMINHOS PARA A MUDANÇA
A solução para equilibrar o cenário, segundo a pesquisadora Thabata Lima Arruda, passa por uma mudança coletiva:
“As big techs precisam de equipes editoriais diversas e comprometidas em garantir ao menos 50% de músicas de mulheres nas playlists de maior alcance.”
Ela ressalta ainda que produtoras, selos e curadores independentes com playlists expressivas também precisam se envolver no processo.
Profissionais do mercado concordam que a única diferença entre compositoras e artistas mulheres é a oportunidade. Daí a importância de um compromisso que englobe todo o ecossistema musical. É o que defende Marcella Micelli, fundadora e head de Marketing/A&R da HQ Music, uma empresa de marketing e soluções para artistas.
“Para chegarmos à equidade de gênero no mercado, precisamos ativamente apoiar mulheres e incluí-las em todas as esferas. Mudanças estruturais são necessárias, mas o apoio no dia a dia, efetivamente com vagas, redes de apoio e contatos entre mulheres na indústria, cargos de liderança, projetos, espaços em line-ups de festivais, em songcamps, nas redes sociais e nas equipes artísticas, são as principais maneiras de mudar esse número”, enfatiza Micelli.
Marcella Micelli. Foto: Arquivo pessoal
Pereira complementa: a retomada do espaço das mulheres nas rádios, TVs e streamings passa pela colaboração entre diferentes frentes da indústria.
“Esse espaço para compositoras e cantoras pode ser retomado com um trabalho integrado entre inovação, visibilidade digital, diversificação de gênero, maior apoio institucional e, principalmente, sororidade. Sim, uma mulher que chefia qualquer departamento na indústria da música precisa entender que seu aval é importante para que outras ganhem espaço”, ela conclui.
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