Como foi o licenciamento dos 40 mil fonogramas, 300 produtos audiovisuais e milhares de livros desse app que já nasce internacional
Por Alessandro Soler, de São Paulo
Cena do filme 'As Hiper Mulheres', de Takuma Kuikuro, Leonardo Sette e Fausto Carlos, parte do acervo da plataforma
Uma mistura de Spotify com Netflix e foco exclusivo na riquíssima — e sub-representada — produção cultural dos estados que compartilham a maior floresta tropical do mundo. É ambicioso o projeto Sommos Amazônia, que já nasce com um acervo de 40 mil músicas, 300 filmes, três mil livros e mil obras de artes visuais, resultado de um trabalho de curadoria que envolveu grandes players nacionais e internacionais (editoras, agregadores digitais, produtoras audiovisuais) e, não menos importante: a garimpagem feita ali mesmo por agentes culturais locais.
Idealizada pelo time do produtor audiovisual e musical carioca Alexandre Agra, a plataforma já está funcionando, em sistema de soft opening, com assinaturas promocionais a R$ 9,99 mensais. Como já nasce global, o projeto ganhou versões em inglês e espanhol e preços adaptados aos mercados locais fora do Brasil: € 9,99 euros na União Europeia, £ 9,99 no Reino Unidos, US$ 9,99 nos Estados Unidos, e por aí vai.
“A ideia é que os assinantes gringos subsidiem os brasileiros. Há um interesse muito grande do mundo pela cultura da Amazônia e, ao mesmo tempo, um grande desconhecimento. O que se produz por lá sequer chega direito ao Sudeste do próprio Brasil”, diz Agra. “O problema da cultura brasileira nunca esteve relacionado à quantidade ou à qualidade da sua produção, mas sim à distribuição, à acessibilidade. É isso que a gente quer ajudar a solucionar.”
Alexandre Agra. Arquivo pessoal
Como não há solução simples para problemas complexos, a plataforma precisou de um processo de mais de três anos para desenvolver sua própria tecnologia, pensar o acervo, obter as licenças de distribuição, fechar os contratos. Na lista dos parceiros de audiovisual figuram instituições como Cinemateca Paraense, Itaú Cultural, Aruac Filmes, Arte1, EmbaúbaPlay. Para a música, desde agregadores digitais nacionais como ONErpm e Tratore a agentes locais como Alter do som, Baque Mirim, Prêmio Amazônia de Música, Amazônia Stock, Na Music, Uka Uka Records.
São dezenas de nomes e uma ideia fixa na mente.
“O criador é o protagonista, não existe indústria criativa e cultural sem ele. Nestas primeiras parcerias com os players do mercado estamos usando os padrões de contratos já existentes. Mas a evolução do nosso negócio é que a gente quer virar uma integradora, uma distribuidora digital, para os novos entrantes, os independentes da região. Vamos montar um repertório próprio, para que a plataforma sirva de portal de entrada de inserção desses novos artistas no mercado formal. E, ao fazer isso, a gente vai remunerar melhor. Vamos fazer isso diretamente. Queremos montar outra equação financeira que coloque o criador no centro”, afirma Agra, que tem no currículo as produções de álbuns para Ney Matogrosso, Marina Lima, Jorge Ben Jor e Guilherme Arantes, bem como programas de TV (“Armação Ilimitada”, “Plunct Plact Zum” e “Domingão do Faustão”), além de ter fundado, no início do século, a iMúsica, pioneira plataforma de música digital no país.
Nesta entrevista com a UBC, o executivo detalha como surgiu o projeto da Sommos Amazônia, para onde ele vai e como espera que será esta viagem.
Por que uma plataforma de música, audiovisual e outros conteúdos focada na Amazônia?
Há um interesse muito grande do mundo pela cultura da Amazônia e, ao mesmo tempo, um grande desconhecimento. Esta plataforma é o primeiro produto da Sommos Arte Cultura Brasileira, empresa que eu fundei em janeiro de 2013, a partir de determinadas premissas, sendo a primeira delas: a cultura brasileira é uma riqueza imensurável, inesgotável, e que tem dimensão e equivalência próximas à mineração, ao petróleo e ao próprio agrobusiness. Tem essa potência de gerar divisas equivalentes para o país. E, assim como essas outras três áreas, tem um problema de logística e distribuição.
No século passado, o Brasil e outros países do Sul global perdemos o campeonato das mídias físicas. Para encontrar produtos brasileiros, principalmente música e audiovisual, era muito difícil, principalmente no exterior. Porque a gente ficava restrito a uma prateleira de uma área específica, a world music. Por outro lado, a hegemonia norte-americana, principalmente, prevaleceu. Quando comecei a trabalhar na indústria, em 1977 - e a primeira coisa que fiz foi rádio -, de cada 10 músicas executadas nas rádios brasileiras, oito eram internacionais. Passados 45 anos, essa proporção se inverteu. Mas ainda tem o problema da distribuição fora daqui. É isso que a gente quer ajudar a solucionar.
Capa do single 'Jambu e Dendê', do associado UBC Jeff Moraes, presente no acervo. Reprodução
Como foi o processo pra colocar tudo em pé?
Ainda somos uma start-up. Levamos um tempo para captar os recursos necessários para o desenvolvimento das tecnologias necessárias. Porque nossa tecnologia é proprietária, toda criada por nós, abarcando diferentes conteúdos numa só plataforma. A Sommos é a única que eu conheço que agrega artes tão diferentes num mesmo app, e com uma só assinatura que permita consumir todos os conteúdos.
Foram três anos, a partir de 2022, quando conseguimos os primeiros aportes, para viabilizar tudo. Os acordos de licenciamento consumiram grande parte disso. E têm um aspecto inovador: todos eles são globais. Assinantes em qualquer parte do mundo conseguirão ver os conteúdos. A interface está em diferentes línguas - na fase inicial, em português, inglês e espanhol. Naturalmente vamos expandir. A gente tem total certeza e convicção de que o Brasil pode e deve se reposicionar no mercado global da economia criativa.
Como fazer isso?
O mercado das indústrias culturais e criativas, que abarca música, filmes, videogames, TV, gira hoje algo próximo a US$ 2,8 trilhões por ano. Como esse dinheiro é dividido? 50% da receita ficam com China, Estados Unidos e Reino Unido. A América Latina e a África, juntos, detêm 4%. Quando a gente se depara com esses números, fica evidente que estamos diante de uma imensa oportunidade de negócio, que se traduz no reposicionamento do Brasil. A participação do nosso país, hoje, é perto de 1%. E temos convicção de que podemos crescer muito. A Amazônia corresponde a 50% do território nacional. É, talvez, a região que mais representa a imensa diversidade cultural do Brasil. E está no foco do mundo. Como exercício de difusão da cultura nacional para o mundo, é a área ideal.
Então, depois de desenvolver o aplicativo proprietário e o desenvolvimento tecnológico, iniciamos a busca por conteúdos fazendo licenciamentos. Com a ONErpm, por exemplo, fomos lá e vimos o que é que eles tinham de produção amazônica. Licenciamos. Com as produtoras de filmes locais, mesma coisa. Com o Itaú Cultural, a Cinemateca Brasileira… Nosso projeto é de longo prazo, é uma aposta estratégica. Muito antes da volta do Lula, muito antes da decisão de sediar a COP-30 em Belém este ano, já tínhamos a ideia de colocar a Amazônia como nosso primeiro recorte curatorial. A COP-30 vai passar, e a Sommos quer continuar.
Como garantir a correta representatividade de todos os gêneros, de artistas e cenas de diferentes expressões?
A plataforma, por definição, tem por missão ser o mais abrangente e ecumênica possível. Não tem vetos a nada. Pra poder representar as diferentes etnias, as diferentes manifestações, as diferentes cenas de um conjunto de 30 milhões de habitantes composto por urbanos, periféricos, indígenas, quilombolas, caboclos. De um lado, o produtor, o artista, tem que ser ver representado. De outro, o usuário também. Ele quer poder ouvir o carimbó, o tecnobrega. E vamos entregar.
A plataforma vai se customizando e personificando conforme o usuário navega nela. A nossa missão é prover todas as possibilidades. Inclusive, e principalmente, de surpreender. Esse é um dos slogans, uma Amazônia que você nunca viu. Nessa jornada descobrimos que os próprios amazônicos não se conhecem tão bem. O acreano não sabe muito o que está acontecendo no Maranhão. Nem o rondoniense sabe o que rola no Amazonas.
E o acervo das grandes multinacionais? Vocês tiveram acesso a ele?
Tem uma questão cretina de as multinacionais criarem dificuldade de licenciamento dos conteúdos brasileiros para brasileiros. Mas não é que queiram ser meus concorrentes, eles certamente não pensam em fazer nada parecido com a Sommos. Conheço a indústria pelo avesso e posso dizer que estão se lixando para a cultura brasileira. Não pensam estrategicamente a cultura brasileira. Estou entrando através de acordo com empresas brasileiras, que me dão o catálogo. E o catálogo é tudo, você tem que ter massa crítica mínima. Mais caro do que trazer o usuário é trazê-lo de novo. Eu esperei fechar uma massa crítica que na música, por exemplo, é de 40 mil fonogramas agora. Mas queremos chegar a 200 mil até julho.
E existem planos de ampliar para os outros países da Amazônia?
Sem dúvida! Queremos incluir na plataforma a produção de Peru, Bolívia, Venezuela, Colômbia, Bolívia... A vocação da Sommos é ser, antes de tudo, inclusiva. Já nasce, pelo nome, com esse conceito. É impossível ser feliz sozinho, já cantava o João Gilberto. Da mesma maneira que vamos falar sobre a Amazônia Legal brasileira agora, a evolução vai incluir a Amazônia internacional inevitavelmente. Este ano vou participar de um evento em Medellín já iniciando esse processo. O propósito da Sommos é que o Brasil seja a locomotiva, seja o país que vai puxar esse movimento de reposicionamento no mercado da economia criativa global, de outros países do Sul global. América Latina, África, Ásia. E a própria Península Ibérica.
Como tem sido o trabalho de curadoria com produtores locais?
A Sommos, antes de tudo, é uma rede de redes. O tempo todo estamos dialogando com festivais de música e de cinema da região. Eles já têm curadoria, estão perto, estão lá observando e trazem coisas novas, nos ajudam com o processo. Tenho sócios como Ricardo Ribenboim (artista plástico, ex-diretor do Itaú Cultural), Mariana Dupas, que também vem do mercado das artes visuais é nossa diretora-executiva. E temos diálogo direto com gente como Genilson Guajajara, um fotógrafo indígena do Maranhão que fala comigo pelo telefone, negocia direto. É muito bacana ver a reação desses artistas ao perceberem que estamos construindo juntos uma plataforma dedicada à produção cultural deles. A gente vai gerar um dinheiro que hoje não existe. Nem nunca existiria. Porque esse repertório estaria diluído dentro do Spotify ou da Deezer, ninguém acessaria. A gente está criando uma plataforma dedicada a gerar visibilidade e renda para esses artistas, produtores, empresários.
E existiu uma preocupação com uma remuneração melhor aos artistas, com um tratamento melhor para os direitos autorais?
Essa discussão existe, claro. Agora tivemos que trabalhar com o que está normatizado no mercado, os percentuais de editoras, o label pool (gravadoras). Nestas primeiras parcerias com os players do mercado estamos usando os padrões de contratos já existentes. Mas a evolução do nosso negócio é que a gente quer virar uma integradora, uma distribuidora digital, para os novos entrantes, os independentes da região. Vamos montar um repertório próprio, pra que a plataforma sirva de portal de entrada de inserção desses novos artistas no mercado formal. E, ao fazer isso, a gente vai remunerar melhor. Vamos fazer isso diretamente. Queremos montar outra equação financeira que coloque o criador no centro. O criador é o protagonista, não existe indústria criativa e cultural sem ele.
O grupo Suraras do Tapajós, que também está no acervo. Foto: Derso Oliveira
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