Especialistas nessa ponte com os países vizinhos falam das oportunidades e dos desafios para tornar a proximidade duradoura
Por Nathália Pandeló, do Rio
Marina Sena, que faz incursão em diferentes gêneros latinos em 'Coisas Naturais', seu recém-lançado álbum. Divulgação
Os dados da maior plataforma de streaming de áudio do Ocidente deixam claro: o consumo de ritmos latinos no Brasil cresceu 170% nos últimos cinco anos. Bad Bunny, Karol G e Rauw Alejandro já não são nomes estranhos nas playlists brasileiras, em especial entre os usuários de 18 a 24 anos. E o aumento do consumo não vem sozinho: cada vez mais artistas e produtores daqui têm incorporado sonoridades latinas, criando gêneros híbridos que caem no gosto do público mais jovem.
O álbum “Coisas Naturais”, terceiro de estúdio de Marina Sena, é uma espécie de síntese dessa tendência. Ao abraçar do avassalador regggaeton de origem caribenho aos menos óbvios ritmos andinos, a cantora e compositora mineira já passa de 30 milhões de reproduções dessas faixas no Spotify nos 17 dias desde o lançamento.
Nem de longe ela está só. De artistas indie como a banda curitibana Tuyo e o cantor e compositor carioca ZéVitor a pesos-pesados como Anitta e Ludmilla, são cada vez mais os artistas do Sul e do Sudeste que vêm trazendo sons de países hispano-americanos para seus trabalhos. Algo que, defendem especialistas, sempre ocorreu no Norte e no Nordeste, sem alarde ou grande reverberação no resto do país.
Mas será duradoura esta nova onda de cruzamentos? O que ela traz de oportunidades para a nossa música? Três vozes ouvidas pela UBC —Mateo Piracés-Ugarte, músico da banda Francisco, el Hombre e do duo Baby; Priscila Bertozzi, editora do site LatinPop Brasil; e Dani Pepper, CEO da Urban Pop e vice-presidente da K2L — ajudam a responder a essas perguntas.
A GENTE É LATINO! (¿PERO NO MUCHO?)
Enquanto, movidos por uma língua comum, países como Argentina, Colômbia e México mantêm um diálogo cultural constante, o Brasil sempre se viu como uma ilha — de costas para os vizinhos de porta e os olhos fixos no Atlântico. Primeiro, nos navios que traziam influências europeias; depois, nas ondas de rádio que importavam o rock, o pop e o hip-hop do “primo rico” norte-americano.
A essa altura do campeonato, será possível equilibrar a balança dessas relações? Mateo Piracés-Ugarte, músico mexicano-chileno-brasileiro, acha que sim. E que a resposta pode ser mais simples do que parece.
“O ideal é que a educação tivesse um sistema que situa a história brasileira como parte de um continente latino-americano", reflete. "A gente aprende de pouco a nada sobre a história e cultura dos países vizinhos, e isso já nos situa ilhados, culpando o idioma por essa falta de troca.”
Mateo Piracés-Ugarte, da banda Francisco El Hombre. Divulgação
O resultado? Um mercado que, até há pouco tempo, só abria as portas para os latinos quando eles já eram fenômenos globais. Essa desconexão histórica se reflete na música. Priscila Bertozzi lembra que, mesmo antes da atual onda de reggaeton, havia trocas menos óbvias.
“Há um exemplo clássico desse intercâmbio histórico e pouco conhecido do público em geral: ‘À Sua Maneira', do Capital Inicial, é uma versão de um hit argentino, ‘De Música Ligera’, do Soda Stereo, banda que tinha como frontman Gustavo Cerati, morto em 2014. O rock oitentista bebeu muito da fonte latina, principalmente dos ‘hermanos' (argentinos).”
Mas por que essas pontes não se consolidaram?
“A falta de troca é uma conjuntura histórica imposta”, diz Mateo. “O mesmo motivo pelo qual não temos a troca entre artistas é o motivo por que fomos proibidos por anos de criar relações comerciais diretas com esses países”, resume.
Dani Pepper observa que o distanciamento reflete um viés geopolítico.
“Acho que essa visão é fruto de um eixo cultural muito centralizado no Sudeste, onde o ‘’novo’ só vira tendência quando é validado ali. O que vem do Norte e Nordeste, muitas vezes, é tratado como exótico ou folclórico”, descreve, lembrando, que nessas regiões mais próximas do Equador (e do Caribe), “a música brasileira já era ‘latina’ muito antes de a nomearmos assim. O carimbó, o brega, a lambada têm DNA latino-caribenho.”
Alguns desses gêneros beberam claramente da fonte da bachata, originária da nem tão próxima República Dominicana. Movida pelas ondas da AM, a canção caribenha sempre chegou com força ao Norte e a algumas zonas do Nordeste.
“Se você pegar uma cúmbia e um forró, são músicas facilmente assimiláveis. Um sertanejo e um vallenato colombiano também”, observa Mateo, citando ainda candombe, zouk e milonga como gêneros ouvidos em territórios do Rio Grande do Sul ao Pará, muitas vezes pela música periférica.
Anitta com o mexicano Peso Pluma, um dos inúmeros feats latinos da brasileira. Reprodução YouTube
O PAPEL DOS FESTIVAIS
Para o resto do país sem essa influência mais direta, um possível caminho de integração está nos festivais. Mateo destaca o Festival Mucho!, que traz artistas latino-americanos sem depender do sucesso prévio deles no Brasil:
"É um festival que eu admiro demais, porque faz justamente o trabalho de base de que eu sinto falta: criar um público que vai pelo festival, não só pelo headliner."
Esse modelo, comum na Europa e nos EUA, ainda é raro no Brasil.
"A gente vê festivais que sempre precisam de um nome gigante para levar pagantes, e não por uma construção de público do festival em si", critica o artista. "Esses festivais de world music fazem muita falta aqui", nomeando festivais Mimo e RecBeat como boas curadorias de ouvidos abertos a esses sons.
Dani Pepper destaca:
“O algoritmo quebrou barreiras linguísticas - muita gente ouve Bad Bunny sem saber o que dizem, mas conecta com a estética.”
Porém, ela alerta que a chave está na cultura do feat:
“Quando artistas brasileiros colaboram com nomes de fora, o público fica mais aberto. Mas tem que ser com respeito, envolvendo-se de verdade. Não basta jogar um dembow no fundo e achar que virou reggaeton.”
Ludmilla numa edição do Grammy Latino em que apresentou prêmio em espanhol. Foto: reprodução
‘HERMANOS' BEM-VINDOS?
Enquanto a incorporação de gêneros latinos por aqui vai crescendo pouco a pouco, o mercado brasileiro permanece um desafio para artistas latinos. Embora nomes menos comerciais, como o duo Hermanos Gutiérrez, formado por dois irmãos suíços de origem equatoriana, já venham ao país com ingressos esgotados, ainda há um longo caminho pela frente.
“Eu também não percebo uma abertura maior hoje para que artistas do Brasil circulem mais na América Latina”, diz Mateo. “O midstream, que viabilizava turnês por cidades menores, foi destruído na pandemia. Se a gente chama um artista latino para tocar em São Paulo, mas não em Bauru, Goiânia ou no Nordeste, como ele vai criar uma base aqui?”
Priscila Bertozzi afirma que é difícil fazer a música encontrar seu público quando os maiores players desse mercado — as gravadoras — não abraçam a causa por não verem potencial nessas conexões.
“Os movimentos sempre existiram, mas de forma regionalizada, ou menos divulgada. Sempre achei a indústria, que movimenta o mercado no Brasil, muito relapsa com esses movimentos regionais ou menos robustos, por assim dizer”, avalia. “Muitas vezes, todo o trabalho é feito pelos próprios staffs dos artistas e produtoras, alheio às gravadoras. Com investimento e um trabalho mais cuidadoso de curadoria, o cenário seria diferente. Certamente, o Brasil estaria inserido no mercado latino da maneira mais vigorosa. Kevin Johansen e Andres Calamaro virão a São Paulo nas próximas semanas para shows. Quantas são as pessoas que sabem disso? A divulgação é parca”, pontua.
O bom futuro dessa integração com tanto potencial por explorar depende de fatores que os entrevistados destacam com urgência. Mateo Piracés-Ugarte reforça que é essencial “situar o Brasil como parte da América Latina” através da educação cultural, rompendo com o isolamento histórico. Paralelamente, seria necessário aprofundar os circuitos acessíveis, com festivais e turnês que não dependam exclusivamente de grandes nomes.
Dani Pepper complementa ao ressaltar que as colaborações precisam de profundidade:
“Não basta surfar na onda do regional mexicano. Tem que estudar o movimento. Quando a conexão é real, o som fala por si.”
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