Aprovada ano passado, data consolida o gênero como potência cultural e caixa de ressonância dos 26,9% de evangélicos do Brasil
Por Nathália Pandeló, do Rio
Juninho Afram, do Oficina G3, Sérgio Lopes e Rose Nascimento. Fotos: divulgação
Nesta segunda-feira, 9 de junho, o Brasil celebra pela primeira vez o Dia Nacional da Música Gospel, instituído pela Lei nº 14.998, do ano passado. A data, criada para valorizar o gênero e reconhecer sua importância cultural, espiritual e econômica, reflete uma realidade incontornável: o gospel é hoje um dos segmentos mais fortes e em expansão da música brasileira.
Esse crescimento pode ser visto tanto nas ruas quanto nas plataformas digitais. Em 2024, o Spotify registrou um aumento de 46% no número de ouvintes de músicas gospel no Brasil, e as buscas pelo gênero cresceram 93% desde fevereiro de 2022, segundo a própria plataforma. Ao mesmo tempo, o gospel tem ganhado espaço em grandes veículos de comunicação, como a TV Globo, que vem ampliando a presença de artistas evangélicos em seus programas de variedades e incorporando músicas de louvor às trilhas sonoras de novelas, como aconteceu com "Vai na Fé".
Entre os artistas que acompanharam de perto essa transformação está o cantor e compositor Sérgio Lopes, ativo desde os anos 1980 e com um vasto catálogo de louvores que acompanham as transformações tecnológicas que vêm moldando os rumos do mercado musical.
"As grandes mudanças no mercado gospel ocorreram com a popularização da internet, e foi consolidada pela evolução do streaming. Mesmo em 2025 o nível do giro econômico do segmento no mercado digital, apesar de bons números, continua muito abaixo do mercado de música popular", avalia Lopes.
Nos últimos anos, o crescimento do consumo de música gospel nas plataformas digitais tem sido evidente. Segundo levantamento do YouTube Brasil, entre os dez vídeos musicais mais assistidos no país em 2024, dois são de artistas do estilo: Kailane Frauches, com “Passa Lá Em Casa, Jesus”, e Isadora Pompeo, com “Bênçãos Que Não Têm Fim”. O segmento também se mantém entre os mais ouvidos em diversas regiões do país.
O exemplo disso é a pesquisa Cultura nas Capitais, realizada pela JLeiva Cultura & Esporte, que revelou: o gospel é a terceira preferência musical entre os cariocas, ficando atrás apenas da MPB e do pagode. O dado indica que o consumo vai além da comunidade evangélica, e não é por acaso. Músicas de louvor e adoração são comumente compartilhadas por atletas, celebridades e tocadas em espaços públicos.
GÊNERO E MERCADO
A distinção entre gospel como gênero musical e como mercado é um ponto importante para entender sua atuação. Musicalmente, o gospel abrange uma variedade de estilos, do pop ao rock, passando pelo pentecostal tradicional, black music, sertanejo e até influências de trap e eletrônico. Do ponto de vista mercadológico, é um setor que envolve gravadoras, produtoras, editoras, eventos e estruturas de comunicação próprias, como rádios e canais digitais especializados.
O gospel se mantém como um gênero de forte propósito espiritual, mas cada vez mais se estrutura como indústria, o que tem levado muitos artistas a refletirem sobre como conciliar os princípios da fé com as exigências práticas de um mercado competitivo.
Há boas novas, no entanto. Para Sérgio Lopes, o cenário atual é mais democrático:
“Você produz como quer, sobe para o YouTube ou plataformas e, se o trabalho for interessante, você será encontrado facilmente.”
Entre os muitos artistas que acompanharam de perto a transformação do mercado gospel está o Oficina G3, uma das bandas mais influentes do segmento e conhecida por integrar o rock de forma consistente à música cristã nacional. Para Juninho Afram — guitarrista, vocalista, compositor, produtor e um dos fundadores do grupo —, o crescimento do gênero traz consigo responsabilidades.
“Agora existe um terreno mais receptivo e fértil para a música gospel florescer. Mas precisamos garantir que, com o aumento da visibilidade, oportunidades e principalmente ganhos, a essência da mensagem que carregamos não se dilua nem se perca”, diz.
Esse processo de abertura para diferentes estilos e identidades musicais dentro do gospel, visível hoje, contrasta com o cenário vivido pelo grupo em seus primeiros anos de atividade, a partir de 1987. Afram também reflete sobre o lugar do rock dentro do gênero:
“Quando começamos com o Oficina G3, enfrentamos muita resistência, não apenas pelo som pesado ou visual diferente, mas pelo preconceito em relação ao estilo. Hoje, há mais abertura, mas também é inegável que o rock perdeu muito espaço na cena atual.”
Essa pluralidade estética inclui desde grandes corais e baladas pentecostais até rap, pagode, pop eletrônico e outras influências urbanas, com artistas de diferentes perfis dialogando com públicos diversos. Uma variedade que tem ganhado projeção também fora do país. O próprio Oficina G3 está com turnê marcada nos Estados Unidos e lança, em breve, o projeto audiovisual “Nadoq Indy”.
No mesmo caminho, artistas como Thalles Roberto têm se destacado no cenário latino. Assim como Juninho Afram, Thalles também vive nos Estados Unidos e ganhou em 2024 o Latin Grammy de Álbum de Música Cristã em Língua Portuguesa do Ano.
NOVAS ESTRATÉGIAS
O avanço das plataformas digitais também tem alterado a forma de trabalho dos artistas, ampliando o alcance e exigindo novas estratégias para se destacar. Em meio a esse novo cenário, vale lembrar que artistas gospel têm alcançado audiências comparáveis às dos grandes nomes da música popular brasileira.
Ana Paula Valadão, por exemplo, tem mais de 1,1 milhão de ouvintes mensais no Spotify — um pouco menos que Barão Vermelho ou Fafá de Belém. Aline Barros soma cerca de 3 milhões, o mesmo patamar de Ivete Sangalo, Zeca Pagodinho e Gilberto Gil. O fenômeno recente Isadora Pompeo já passa dos 5 milhões de ouvintes, tal qual os pagodeiros Thiaguinho e Belo. Números como esses ajudam a dimensionar o tamanho de um mercado que, muitas vezes, passa despercebido por quem não o acompanha.
O avanço das plataformas digitais também tem alterado a forma de trabalho dos artistas, gerando novas demandas tanto para os novos talentos quanto para quem já atua no meio há décadas.
“Exigiu de mim o que exigirá sempre de todos no trabalho para o meio gospel: música boa, produção musical com bons profissionais, marketing de imagem atrativo e muito impulsionamento”, diz Sérgio Lopes.
Com uma visão semelhante, Afram completa:
“Hoje lidamos com uma geração extremamente conectada, que consome conteúdo de maneira constante e que busca mais do que entretenimento. Eles querem autenticidade, profundidade e relevância”.
Essa transformação no comportamento do público afeta também as formas de compor.
“As experiências pessoais, as mudanças culturais e o contexto atual sempre influenciam de alguma forma o processo criativo. Mas, no final das contas, são apenas novas roupagens para uma mensagem que continua a mesma: o amor transformador de Deus”, completa Juninho Afram.
NAS RUAS E NOS PALCOS
Não é só de stream que vive a música gospel. A presença de seus artistas tem sido cada vez mais comum em grandes eventos. Um dos momentos simbólicos foi o Réveillon de Copacabana de 2024, que, pela primeira vez, contou com um palco exclusivamente dedicado ao gênero. A Marcha para Jesus, um dos maiores eventos cristãos do país, reuniu cerca de 30 mil pessoas em sua primeira edição em São Paulo, em 1993 — número que saltou para mais de 2 milhões na edição de 2025 na capital paulista; no Rio, o evento também cresceu, chegando a atrair 500 mil pessoas este ano.
Para Rose Nascimento, que tem mais de três décadas de carreira, a chegada do gospel a novos espaços não anula o valor das formas de divulgação de outrora:
“Antigamente trabalhávamos com a famosa divulgação 'boca a boca', que para aquele tempo era a forma mais eficaz. Hoje conseguimos alcançar um número ainda maior de ouvintes.”
Rose destaca que a tecnologia potencializou o alcance da mensagem. Mas, ao mesmo tempo, ela acredita que muitos talentos ainda aguardam visibilidade.
“Se é justa (a visibilidade atual), eu não sei. Mas sabemos que existem muitos talentos necessitando de reconhecimento”, pondera.
Ao falar do que a move, ela é direta:
“O amor pelo que faço! Reconheço que só tenho uma vida e quero explorá-la ao máximo, para continuar fazendo o que me foi ordenado por Deus.”
AUDIÊNCIA CRESCENTE
Segundo dados do Censo 2022, recém-consolidados e divulgados pelo IBGE na semana passada, os evangélicos representam 26,9% da população brasileira. O crescimento expressivo desse grupo nas últimas décadas tem relação direta com a expansão do mercado gospel, mas o público do gênero vai além dos templos.
Com uma audiência ampla e fiel, artistas profissionais, estrutura industrial e um catálogo musical que se reinventa sem perder sua mensagem central, o gospel segue conquistando novos espaços. Hoje, a indústria internacional já reconhece esse movimento: há anos o Grammy Latino conta com categorias dedicada exclusivamente à música cristã, em português e espanhol.
Todo esse contexto deixa claro que a criação do Dia Nacional da Música Gospel não é meramente simbólica. Depois de conquistar espaço nas plataformas, nas ruas, nos palcos e nas premiações, o segmento também passa a ser reconhecido oficialmente no calendário nacional. Há muito a ser comemorado, porque mudar a visibilidade desses artistas não depende de milagre, mas de oportunidade, estrutura e acesso.
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