Turnê de três décadas de “Da Lama Ao Caos” passa por Espanha, Alemanha, França e outros países, antes de seguir no Brasil nos próximos meses
Por Alessandro Soler, de Madri
Fotos de Daniel Brero
Público junto ao palco durante o show de Madri
Nos 30 anos daquele que um timaço de críticos classificou para o jornal O Globo, em 2022, como o melhor álbum brasileiro das últimas quatro décadas, a banda Nação Zumbi faz estes dias um movimento que dialoga diretamente com a energia do começo. Em turnê de celebração de “Da Lama ao Caos” na Europa, eles colhem, a cada apresentação, os mesmos aplausos e a mesma recepção calorosa que o mítico disco teve primeiro no exterior, quando saiu, em abril de 1994, para só depois estourar no Brasil.
Na época, a reação da crítica nacional àquela explosão de sonoridades energéticas e difíceis de catalogar que vinha do Recife foi mista, predominando uma certa frieza da imprensa baseada no eixo Rio-São Paulo. Com a fusão de funk, rock, maracatu, embolada e sons africanos longe dos olhares e das rádios do país, as vendas também foram modestas: só 30 mil cópias nos dois primeiros meses. Mas dois concertos, um no Montreux Jazz Festival (Suíça) e outro em Nova York (EUA), viraram o jogo, embasbacando o público e a crítica estrangeiros, ganhando menção positiva no jornal The New York Times e, finalmente, abrindo as portas para o nascente mangue beat no mercado nacional. A entrada de dois singles, “A Praieira” e “A Cidade”, em novelas da Globo foi o empurrão que faltava
Na semana passada, durante uma apresentação em Madri, o vocalista Jorge Du Peixe relembrava um pouco dessa história.
“Este disco foi nosso primeiro grito, onde tudo começou. Mas é a primeira vez que estamos nos apresentando em Madri. É uma honra. Essa turnê aqui na Europa está sendo especial”, disse.
Além da capital espanhola, já houve apresentações na Alemanha (Berlim e Koblenz), na França (Paris), na Bélgica (Gent) e em Portugal (Sines). Nesta segunda (28) é a vez de Amsterdã, nos Países Baixos; e ainda virão Dublin (Irlanda), Londres (Reino Unido) e Brno (República Tcheca). Na volta ao Brasil, a turnê seguirá ao longo dos próximos meses.
Sempre coalhadas de brasileiros, as apresentações por aqui têm sido marcadas por momentos catárticos e um festival de orgulhosos pernambucanos vestindo bandeiras do estado. Foi assim, mais uma vez, em Madri.
“Esse disco mexe com muita coisa, com um sentimento de pertencimento, com a memória coletiva. A gente sente muito orgulho de ter criado isso em Pernambuco, de ter ido para o mundo. (Esta turnê) é a primeira em que a gente toca o disco inteiro depois de 31 anos”, celebrou Du Peixe, que divide o palco com os demais integrantes desta banda lendária: Dengue (baixo) e Toca Ogan (percussão).
As apresentações dos 30 anos também têm tido a participação dos músicos convidados Marcos Matias e Da Lua (tambores), Tom Rocha (bateria) e Neilton Carvalho (guitarra).
Orgulho pernambucano
UMA PRESENÇA CONSTANTE
A memória de um dos cérebros de tudo, Chico Science, foi evocada a todo instante. Especialmente, e de uma forma emotiva, quando, em silêncio, o atual vocalista colocou sobre o microfone o célebre chapéu coco de palha do anterior, morto num acidente de trânsito em fevereiro de 1997, menos de três anos depois do lançamento do álbum de estreia da Nação.
“É uma presença constante”, resumiu Du Peixe.
A apresentação tem seguido a ordem das canções do disco, fazendo um passeio que mexe com diferentes estados de ânimo: das rajadas de crítica social — com “Banditismo por Uma Questão de Classe”, “Rios, Pontes & Overdrives” e “A Cidade” — à exaltação à cultura litorânea em “A Praieira”, ao companheirismo na criação musical em “Samba Makossa” e às reflexões sobre a existência, a arte, a tecnologia, em “Da Lama Ao Caos”, “Maracatu de Tiro Certeiro” e “Computadores Fazem Arte”.
Finalizada a sequência do álbum, ao redor de uma hora de show, um novo estado de ânimo se impõe: sons caribenhos na percussão fina liderada por Toca Ogan e Da Lua, dando passagem a uma nova etapa, com canções não integrantes de "Da Lama Ao Caos". A primeira delas, em Madri, foi “Futura”, presente no álbum homônimo, de 2005. E gerou um momento ecumênico, uma dança de roda em que couberam todos: os pernambucanos envoltos em suas bandeiras, brasileiros de outros estados, espanhóis.
Outro momento do show
POGO, ABRAÇOS
Com o clima mais quente, veio “Meu Maracatu Pesa Uma Tonelada” (de 2002), dando início a uma roda de pogo, característica das apresentações da banda.
Já fervendo, o público se dividia quase igualmente: enquanto uns aceleravam o pogo, chocando-se convulsivamente, outros dançavam num fluxo único em “Manguetown” (lançada em 1996 no álbum “Afrociberdelia”). Em seguida, uns e outros explodiram em “Maracatu Atômico”, a genial composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina de 1974 que ganhou versão definitiva, em 1996, na voz de Chico Science e Nação Zumbi.
Com a plateia completamente entregue, os membros dessa banda sempre potente, sempre relevante, se uniram num abraço. E, solenes, lançaram uma derradeira mensagem, que o solo estrangeiro onde estavam e o caráter eternamente político dos seus membros tornaram particularmente simbólica:
“Free Palestine (libertem a Palestina)!”, gritou Du Peixe, erguendo o punho fechado, sob os aplausos da diáspora brasileira em Madri.
Sob aplausos, a banda encerra o show em Madri
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