Um papo sobre mercado e futuro com o fundador do selo paulistano que lançou Nação Zumbi, Tulipa Ruiz, Luedji Luna e muitos outros
Por Alessandro Soler
Mauricio Tagliari. Foto: José de Holanda
Mauricio Tagliari é um dono de gravadora à moda antiga. Não que sua YB Music, que está celebrando 25 anos de dedicação à gravação, distribuição e edição de canções, tenha como foco competir com as majors. É na mentalidade que Tagliari se equipara a chefões de outros tempos da indústria. Antes de qualquer coisa, ele é um A&R de sensibilidade aguçada, que não dá bola para os ditames de um mainstream limitado a três ou quatro gêneros, não contrata consultoria para traçar os rumos de sua empresa nem teme que os algoritmos e a IA acabem com o trabalho ancestral de minerar, lapidar e lançar novos talentos, novas cenas.
“Sempre vou ser da intuição, da tentativa e erro. Essa minha forma de trabalhar está muito ligada ao prazer pelo que faço. Se não, iria para o mercado financeiro”, diz.
Para quem não está ligando o nome às pessoas, a YB foi a responsável por lançar ou dar um bom empurrão aos projetos artísticos de Nação Zumbi, Tulipa Ruiz, Luedji Luna, Nina Becker, Lulina, Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, As Bahias e a Cozinha Mineira, Alessandra Leão, Curumin e tantos outros. Em 2011, quando se falava no surgimento de uma cena — de sons, estilos e propósitos diversíssimos — então etiquetada de “Novos Paulistas”, foi da YB a maioria dos artistas que a Revista UBC entrevistou para uma reportagem de capa. Não foi planejado. Simplesmente, a YB estava mesmo no epicentro da coisa.
“Tínhamos um estúdio foda, fomos nos cercando de gente boa, fazendo um inventário de gente talentosa. Quando vimos, tínhamos uma seleção. Teve especial da MTV e tudo na época”, lembra o executivo, que também é músico, fundador da banda paulistana Nouvelle Cuisine, cofundador da ABMI - Associação Brasileira da Música Independente e criador de trilhas sonoras premiado.
Mauricio (à esquerda) e os sócios Carlos Lima, Luca Raele, Paulo Calia e Benoni Hubmeier. Arquivo pessoal
Neste papo com a UBC no dia em que foram anunciadas as indicações de “Ainda Estou Aqui” e de sua protagonista, Fernanda Torres, ao Oscar, ele falou sobre a indústria, a origem e o futuro da YB, uma avis rara que resiste há um quarto de século num panorama de crescente concentração no mercado brasileiro e mundial.
Vocês têm uma forte relação com o mundo das trilhas. Têm algo a ver com a de “Ainda Estou Aqui”?
MAURICIO TAGLIARI: Não. Mas trabalhei em publicidade com o Waltinho (Walter Salles, diretor do filme) há coisa de 30 anos. Fiz trilha para ele. A YB começou mesmo foi como produtora de (trilhas para) publicidade. Trabalhei com o pessoal da Conspiração, com um monte de gente. Foi só no ano 2000, de 1999 pra 2000, que começamos a fazer música para disco, um pouco por prazer, um pouco porque víamos uma galera sem muito espaço, num momento complicado do mercado, aquela transição das majors, a crise da pirataria… Foi num momento em que estava surgindo também a Trama. Fizemos um primeiro disco meio brincando, o primeiro disco do Otto. Nós fizemos tudo, produzimos, gravamos, e a Trama lançou. Demos de presente para eles (risos).
E o que veio depois?
O (falecido produtor Carlos Eduardo) Miranda dirigia um selo dentro da Trama, então teve contato com umas produções que a gente tinha e curtiu. Para não ficar só fazendo publicidade, fiz outra produção e vendi para a Abril Music, que estava bombando na época. O diretor artístico lá era o Greg Butler, casado com a Anna Butler, que então era diretora-geral da MTV. Começamos a ter contato com esse pessoal, a abrir essas portas, e o Miranda ficava me instigando: “cara, você tem estúdio. Faz. Lança.” E tinha um pessoal muito criativo que trabalhava pra gente fazendo trilhas, o Rica Amabis, o Tejo Damasceno. Propus a eles nos juntarmos, e lançamos um pacote já com cinco discos.
No susto?
No susto total. Fizemos uma festa gigante. Contratamos assessoria de imprensa, convidamos 2 mil pessoas achando que viriam 400… Vieram as 2 mil, foi uma loucura. No dia seguinte, cheios de ressaca, olhamos aquele monte de caixas de CD: “e agora? O que fazer com isso aqui?”. Por aqueles dias, saiu uma matéria gigante na Folha de S. Paulo sobre o nosso novo selo… Já não tinha volta (risos).
Tulipa Ruiz, que começou pela YB. Divulgação
Foi uma fase de muitos selos surgindo…
Muitos. Estava começando a se formar a ABMI (Associação Brasileira da Música Independente). Eu já entrei ali naquele meio, fui cofundador. Antes de ser ABMI, já éramos um grupo com uns quatro ou cinco selos, do Rio e de São Paulo. Muitos dos selos daquele embrião nem existem mais. E é curioso pensar que a gente, que nem tinha se consolidado como gravadora naquela época, ficou. Demoramos a engatar, por uns 10 ou 15 anos ainda mantivemos forte o negócio da publicidade. O selo só começou a ter vida própria lá para 2010. Um ano em que fizemos uma virada histórica. Começamos a olhar para nossos lançamentos, Nação Zumbi, Z’África Brasil, e, embora ótimos, não havia necessariamente uma conexão entre eles. Estávamos sem foco, precisávamos buscar uma lógica.
Tínhamos um estúdio foda, fomos nos cercando de gente boa, fazendo um inventário de gente talentosa. Quando vimos, tínhamos uma seleção. Teve especial da MTV e tudo na época. Aquilo deu o tom dos próximos anos.
O que aconteceu com aquele estúdio?
Era um megagalpão na Vila Madalena. E veio a especulação imobiliária, cara… Os caras pressionaram, e tivemos que sair. Eu tinha sido coincidentemente procurado por uma pessoa oferecendo um espaço, no Pacaembu, que estava meio abandonado. Era o antigo estúdio Mega. Essa pessoa estava usando um pequeno espaço, e tinha várias outras salas vazias. Foi num período em que começamos a pensar na celebração dos 20 anos, na virada de 2019 para 2020. Mas aí veio a pandemia, e tudo virou de novo.
Como foi isso?
O estúdio estava pronto para começar a trabalhar, e todo mundo teve que se isolar. Acabei fazendo produções aqui do meu home studio mesmo: publicidade, trilha para cinema e… dois discos meus. Eu tinha gravado como artista em 1989, 1990, tinha tido a Nouvelle Cuisine, lançamos discos pela Warner. Eu já tinha a visão do lado de lá, e agora do lado de cá também. Um pouco antes da pandemia, decidi voltar a fazer coisas minhas. O irônico é que não foi no estúdio grandão que tínhamos reformado. Foi em casa. E não só eu, claro. Todo mundo teve que fazer assim. Criamos um modelo de gravar minimamente bem nos homes studios dos artistas, para finalizar no nosso. O Rodrigo Campos gravou no celular o disco “Pagode Novo”. Saltamos para esse novo modelo, mas teve um inchaço. E chegou um momento que o meu papel de A&R ficou difuso.
Como assim?
Antes eu trabalhava como o A&R clássico, garimpando o novo artista, ajudando a construir o repertório, a pensar a carreira. Mas nesse modelo era uma coisa: “toma, o disco está aqui pronto, só finaliza.” Você diz: “o que eu faço?”. Era fisicamente impossível administrar tantos discos que recebíamos, perdi um pouco a coisa do A&R me relacionando com as pessoas. Então criamos modelo de produtores associados à YB. O cara chega com um disco maravilhoso. Uma semana depois, ele vem com outro disco maravilhoso. Eu digo: “você é um produtor e tem um selo, mas pode ser um parceiro da YB.” Hoje, temos 29 selos assim. Também dividimos o catálogo em áreas diferentes: criamos a YB Instrumental, a YB MPB, a YB Infantil etc. Eu continuo a ser o A&R, mas já não falo com cada um dos artistas, falo com esses selos. Um deles, para ficar num exemplo, é o QTV, do Rio, que está brilhando demais. Fazemos pra eles o label service, o digital, e cuidamos da sincronização (para trilhas sonoras). Eles têm um astral muito diferente (com nomes como Juçara Marçal, Negro Leo, Ramemes), que não necessariamente teríamos aqui. A gente curte muito ter esse papel de celeiro. Na origem da indústria fonográfica, os produtores sempre fizeram esse papel. O segundo disco até pode ir pra Warner, mas o primeiro da Tulipa e o primeiro da Luedji foi a gente que lançou (risos).
Luedji Luna, que Mauricio cita com orgulho como outro talento lançado pela YB. Divulgação
O jeito que você conta essa trajetória parece seguir exatamente a mesma lógica de como ela foi construída: de uma forma fluida, meio intuitiva…
Esse é o grande negócio. Sempre vou ser da intuição, da tentativa e erro. Essa minha forma de trabalhar está muito ligada ao prazer pelo que faço. Se não, iria para o mercado financeiro (risos). Agora, tem que ver o daqui pra frente. Tem amigo meu produtor que trabalha nos EUA, no mercado há muitos anos, e diz: “o A&R tem data de validade. Tem hora que a gente fica velho e já não fala com o público.” Eu concordo um pouco, mas acho que não é idade, tem mais a ver com as mudanças culturais. Todo o cenário político, empresarial e estético que foi se formando na música brasileira ao longo dos anos se tornou muito limitador. Agora, isso está mudando um pouco. Quando você pega o domínio do sertanejo e olha os gráficos, há não muito tempo os caras fechavam o círculo do gráfico, era domínio absoluto. Já não. Moro no Centro de São Paulo. Onde antes passava nas lojinhas, e só tocava sertanejo, agora tem uma pisadinha, tem um funk. A variedade é pouca, mas já não é monopólio. Para mudar ainda mais, vai precisar de mais caras que gostam de música de verdade, que não olhem só para números, só pra negócio. O livro do André Midani, de memórias dele, traz isso muito claramente: antes, quem tinha gravadora era gente que gostava de música. Agora é fundo de investimento. Estou mais próximo daqueles primeiros caras.
O mundo digital, com seus algoritmos, sua IA, é mais susto ou oportunidade?
Eu vejo que a relação público-artista está muito intermediada pelo digital, excessivamente. E não só os algoritmos das plataformas de streaming ou a criação por IA. É tudo. Hoje em dia, não tem show que não ofereça os ingressos tantos dias antes por uma Sympla da vida ou qualquer outra plataforma digital. Se uma semana antes não tiver vendido nem a metade, o show é cancelado, e pronto. Todo o ecossistema está assim.
A IA se soma a outras coisas que já estavam aí desde a pandemia, como o buy-out (compra total de direitos autorais futuros de trilhas sonoras, frequentemente imposta por grandes plataformas produtoras de audiovisual). Faz parte de uma contínua queda de braço (entre big techs e autores). E os algoritmos pode ser que quase acabem mesmo com aquele A&R que era uma mistura de businessman com descobridor de novos talentos. Mas quase. Sempre vai haver o nicho.
Te conto uma curiosidade, não sei se você sabe, mas escrevi um dicionário de vinhos em sete idiomas. Sou enófilo, frequentei muita degustação. E comparo a música com esse mundo: muita gente consome qualquer coisa que o mercado oferecer, mas sempre vai ter o cara que busca algo diferente, algo de excelência, artesanal, autêntico.
E quais os projetos da YB a curto e médio prazos?
Vamos apostar forte nesses segmentos internos que já criamos, esses selos dedicados à MPB, ao Instrumental… O YB Instrumental pode ser frutífero para a parte de sincronização, nossa ponte com o mundo das trilhas que a gente nunca abandonou. E nem vai. De um modo geral, vai ter uma continuidade dessa política de ir testando, ir fazendo na intuição. Tentativa e erro. Dadas as condições, vamos ter que continuar a improvisar. Mas os meus critérios vão sempre ser os mesmos: fazer música decente, remunerar decentemente quem faz música, me divertir enquanto der e buscar a próxima saída.
LEIA MAIS: Música independente é quase 50% do mercado, mas desafios são muitos
LEIA MAIS: ABMI elege nova diretoria e promete empoderar produtores pessoas físicas
LEIA MAIS: Parcerias entre selos brasileiros e internacionais vivem explosão