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Há 20 anos, OCDE previu o futuro da música. Então, surgiu o iPhone
Publicado em 05/08/2025

Especialistas analisam relatório publicado pelo ‘clube dos países ricos’ em 2005 e comentam o que se realizou e o que não

Por Ricardo Silva, de São Paulo

Em dezembro de 2005, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), também chamada de 'clube dos países ricos', publicou um relatório ambicioso sobre as oportunidades e desafios da música digital. O documento previa mudanças estruturais profundas na cadeia produtiva da música, o crescimento de modalidades de venda de música online e o aumento da diversidade musical por meio da tecnologia. Mas o que realmente se concretizou 20 anos depois?

Analisamos o relatório com a ajuda de André Izidro, CEO da Atabaque, empresa especializada em marketing e gestão de carreiras musicais, e de Elaine Brandão, advogada e consultora de investimentos com foco na música. Ambos destacaram, de cara, algo que não estava no foco da OCDE, e que mudou tudo de uma maneira muito rápida: o advento do modelo atual de smartphones.

Para contextualizar um pouco: menos de dois anos depois do relatório, a gigante Apple lançou o primeiro smartphone “contemporâneo”, o iPhone, abrindo as portas do mercado para uma nova era. É verdade que 13 anos antes a IBM já havia apresentado o IBM Simon, que acumulava funções de telefone celular, calendário, calculadora e aplicativo de e-mails integrado. E que a Nokia, em 1996, tinha estreado em seu aparelho um navegador de internet. Mas foi o iPhone, que coincidiu com a chegada da internet 3G, o produto mais bem acabado, o que, com seus inúmeros aplicativos independentes, melhor surfou a nova era da conectividade fora de casa, libertando as pessoas do desktop na hora de acessar músicas e variadíssimos conteúdos.

Ainda não era o fim da lógica da posse de arquivos, uma cultura muito arraigada e de longa data, que atravessou os LPs, CDs, fitas cassete, VHS, DVDs e outras mídias físicas. Mas esse novo tipo de smartphone representado pelo iPhone, que pegou todo mundo de surpresa, deixou a bola na frente do gol para que novas formas de consumo, como o streaming, pudessem surgir.

“As pessoas saíram do P2P (personalizado na popular tecnologia Torrent), que estava vinculado à conexão discada através do telefone, ao uso do computador de mesa, e foram para o celular. O streaming só foi possível por essa convergência da internet 3G com o smartphone. A constatação de que não haveria espaço físico suficiente para armazenar tantos downloads de arquivos levou, pouco a pouco, à aceitação cultural do acesso no lugar da posse”, diz Izidro.

LICENCIAMENTO

Se, por um lado, falhou ao não prever com exatidão a era dos smartphones, o relatório da OCDE foi “ousado” ao cravar que a legalização e o licenciamento de músicas e audiovisual se tornariam o caminho predominante. Afinal, naquele momento (começo dos anos 2000), a indústria ainda se debatia para encontrar saídas para a crise da pirataria da virada do milênio.

“Se pararmos para pensar, era natural pensar que as coisas se acomodariam depois da pirataria. A música, o audiovisual e outros produtos culturais precisam da estrutura de uma indústria, de licenciamentos, de trocas legais, para prosperar. Mas, naquele momento em que as gravadoras haviam encolhido e lutavam para sobreviver, naqueles primeiros anos da década de 2000, foi uma previsão visionária”, pondera Brandão.

Para Izidro, ainda hoje há provas reiteradas de que mesmo modelos bem-sucedidos nascidos sob outra lógica tendem a se acomodar em torno da ideia de licenciamento e legalização:

“Pegue, por exemplo, o caso da Sua Música, uma das maiores plataformas nacionais, que surgiu num contexto de publicação de muitos conteúdos sem licença, com custo zero para o usuário e receitas obtidas através de publicidade. Esse modelo perdeu o sentido, já não pode prosperar. Atualmente eles regularizaram o pagamento de direitos autorais, fecharam acordo com o Ecad e têm expandido sua base de assinaturas premium.”

A CHEGADA DO STREAMING

Embora tenha previsto que o licenciamento seria predominante, o relatório não imaginou completamente um futuro de consumo de arquivos de áudio e vídeo através de repositórios como as atuais plataformas. Prevalecia a ideia de que as pessoas continuariam a fazer downloads indefinidamente. Enquanto isso, experiências em diversos países iam mostrando que a transição para um modelo de consumo no lugar da posse seria mais viável.

O próprio Napster, do bilionário Sean Parker, tentou deixar para trás a pecha de “epicentro da pirataria” trazida pela troca descontrolada e ilegal de arquivos no estilo P2P entre usuários, e fez experiências pioneiras de licenciamento. Como o Napster ToGo, já em 2004, uma assinatura por 15 dólares permitia às pessoas acessar conteúdos legalmente. No Brasil, o projeto Escute, da Som Livre, surgiu em 2008 (mesmo ano de lançamento comercial do Spotify) com conteúdos legalizados.

“Foi um pioneiro ‘Spotify’ nacional. Mas foi cedo demais, ao menos para o mercado brasileiro. Talvez não tenha tido também a melhor das comunicações. Mas a lógica era perfeita”, elogia Izidro.

Brandão lembra que, na segunda metade dos anos 2000, começou uma febre de acordos com gravadoras para tentar licenciar os catálogos — passo fundamental para pavimentar o streaming como hoje o conhecemos.

“Foi uma convergência feliz. Campanhas bem-sucedidas antipirataria fizeram os downloads legais começarem a perder popularidade em diversos países. Paralelamente, crescia na indústria a percepção de que não era sustentável o modelo de posse, mesmo com o lançamento de iPods cada vez mais robustos. E a sacada de que era inteligente negociar os catálogos com as gravadoras e reuni-los num repositório único, uma plataforma, oferecendo o acesso através de uma assinatura foi a cartada final. Todo mundo correu nessa mesma direção.”

O preço dessas assinaturas iniciais, bem mais baixo do que então custava um único CD, foi o argumento final para convencer o público a aderir.

“Você não sente que está gastando tanto, pois paga bem menos na assinatura. E mais gente passa a gastar. Vira hábito cultural, ninguém quer estar fora”, sentencia André Izidro.

EXPLOSÃO NAS RECEITAS

Fosse através de downloads, fosse através de um não inteiramente previsto streaming, um ponto acertado pelo relatório da OCDE foi a explosão das receitas digitais. Em 2005, elas representavam de 1% a 2% do total. Hoje, ultrapassam 80%. E o documento, de certa maneira, previa esse salto.

“Mas nem todos, claro, ganharam com essa transformação. Compositores e músicos acompanhantes perderam. Antes, já recebiam um fixo alto de cara. Hoje, recebem mais parcelado, e dependendo de plays. O produtor, por exemplo, agora precisa brigar para ter royalty”, aponta Izidro, que pondera: ao mesmo tempo, a digitalização também permitiu maior autonomia para artistas independentes. “Metade da receita paga pelo Spotify no ano passado foi para artistas independentes. Hoje, você negocia diretamente com distribuidoras. Em alguns casos, o artista pode ficar com até 70%.”

DIVERSIDADE MUSICAL

Sobre diversidade, o relatório acertou ao prever que o digital, pelo menos num primeiro momento, ampliaria a variedade de gêneros e nichos. Mas, com o tempo, a tendência é que fórmulas de sucesso se repitam de maneira exponencial, ainda mais do que antes da era digital.

“É a aposta mais fácil e barata para a gravadora. Até há muita diversidade nas plataformas, claro, cabe tudo ali. Mas as músicas mais consumidas, e que mais recebem royalties, são aquelas que repetem certo padrão. Se a indústria não se cuidar, vai acabar morrendo de tanto repetir fórmulas de sucesso”, provoca Brandão.

Para evitar isso, Izidro pede mais regulação e políticas públicas:

“Uma política que garanta a aplicação de (parte da) receita (das plataformas) no desenvolvimento da música, de novos nichos, gêneros, artistas. A indústria musical formal, em muitos sentidos, virou banco, só faz aposta sem risco. Antigamente a gravadora apostava em 30 artistas para 3 darem certo. Hoje, só se investe no que já deu certo. Isso é perigoso. O futuro da música depende de inovação constante.”

A visão da OCDE de que a música anteciparia transformações que alcançariam outras indústrias de conteúdo também se confirmou. Streaming de vídeo, podcasts, games online: todos seguiram a lógica do acesso. Até que uma nova transformação, a ser prevista (ou não) num novo relatório, mude tudo completamente outra vez.

 

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